Apagando seu cigarro, a
Gabriela pediu para que eu me sentasse, abrindo um chiclete logo em seguida.
Enquanto isso o Cauê e a Soraia aguardavam por mim na recepção. Embora eu
convivesse com pessoas que fumassem, nunca senti vontade de provar ou utilizar
qualquer droga para poder me divertir. É engraçado como o ser humano nunca está
satisfeito com o que tem. Várias vezes eu pedia para que meu pai não fumasse
perto de mim, pois a fumaça fazia-me mal, e ele, ao invés de se preocupar
comigo, só faltava me bater porque eu estava falando alguma coisa.
Tirando uns papéis de cima de sua mesa a Gabriela
perguntou:
-Em que posso ajudar você,
Rustom?
-Bem, o Cauê reconheceu um
dos garotos que o empurraram na piscina no dia do trote.
-Reconheceu?
-Sim... Agora já podemos
fazer a denúncia...
-Certamente... Mas eu
preciso que ele relate tudo detalhadamente como aconteceu.
-Ele está lá na
recepção...
-Sim, mas hoje não vai ser
possível.
-Por quê?
-Porque precisamos da
presença do reitor, só que ele estará aqui amanhã apenas.
-Certo...
-Vamos marcar para amanhã
então?
-Claro!
-Então tá bom, Rustom.
-Com licença...
Eu abria à porta quando ela chamou-me atenção:
-Rustom...
-Oi?
-Você sabe quem é o garoto
que o Cauê reconheceu?
-Sim... É o Cristiano do
terceiro A.
Dessa vez a Gabriela aceitou minha queixa sem contestar,
pois já sabia que eu provaria tudo que havia dito, como fiz no caso da Jéssica.
Aliviado, não via a hora de pôr aquele cretino na cadeia, e fazê-lo pagar pelo
mal que provocou na vida do meu amor.
Passando pela recepção, avistei o Cauê e a Soraia
sentados ao banco conversando com aquela recepcionista tonta. Ao aproximar-me
deles, disse:
-Soraia... Você acompanhar
o Cauê...
Levantando-se o Cauê perguntou:
-Por que, amor?
-Porque eu não poderei.
Preocupada ela quis saber:
-O que aconteceu, Tom?
-Nada demais... É que
esqueci de tirar uma dúvida com o professor...
-Ah...
-Depois nos falamos.
-Tchau, amor!
-Tchau!
Peguei o elevador e fui até o quinto andar, onde os
alunos do terceiro ano tinham aula. Embora o tempo da prova já tivesse
esgotado, parte dos alunos ainda estavam em sala, porém, o único que me
interessava era o Cristiano.
Ao entrar na sala, me dirigi até ele e em poucas palavras
falei:
-Quero falar com você.
Com um ar de deboche e pose de superioridade ele
questionou:
-Comigo?
-É.
-Tá... Fala?
-Acho que você não vai
gostar se eu disser na frente de todo mundo.
Levantando da carteira e pegando seus livros ele disse:
-Tudo bem. Para onde você
quer ir?
-Me acompanha.
Descemos até o térreo, em seguida seguimos para o prédio
de Educação Física, onde havia as piscinas. Descemos à escada das arquibancadas
em direção ao deck. O ambiente estava um pouco escuro, pois a única luz
que tinha naquele momento era a que transpassava de fora pelas portas de vidro.
Ao caminharmos, um eco soava. Curioso, ele parou de
caminhar à beira da piscina e perguntou:
-Para que você me trouxe
aqui?
Olhando fundo em seus olhos, respondi:
-Esse lugar não te faz
lembrar de nada?
-Não... Eu faço curso de
Direito, e não de Educação Física.
-Então eu vou te dar uma
ajuda...
Nesse momento eu o empurrei dentro da piscina com livros
e tudo. Furioso, ele começou a gritar:
-Você está louco, moleque?
-Será que agora você se
lembra do dia quatorze de fevereiro?
Calado, ele só me olhava. Aproximei-me da borda da
piscina e disse:
-Não pense que você ficará
impune pelo que fez. Amanhã sua ficha vai estar registrada na polícia, e um
cidadão que se preze jamais em sã consciência irá contratar um criminoso para
defende-lo... Sua vida profissional está acabada.
Deixei ele lá, boiando, como se fosse um nada, da mesma
forma como ele fez com o meu mozinho.
Peguei um ônibus e segui para casa, com um alívio enorme
na alma, além da satisfação de que a justiça seria feita. Ao chegar, subi
correndo para o meu quarto e telefonei para a Jéssica para certificar-me que
ela não estaria em casa:
-Alô?
-Por favor, eu quero falar
com a Jéssica...
-No momento a dona Jéssica
não se encontra.
-Que horas ela estará em
casa?
-Olha... Hoje ela foi ao
cabeleireiro... Eu acho que por volta das seis horas da tarde ela já esteja de
volta...
-Entendi... Tem algum
outro responsável pela casa?
-No momento não há
ninguém. Deseja deixar algum recado?
-Não, não. Obrigado!
-De nada.
Logo em seguida telefone para a Soraia. Quatro toques
depois ela atendeu:
-Alô?
-Miguxa... Tá ocupada?
-Não... Acabei de sair do
banho... O que aconteceu?
-Vou precisar da sua
ajuda.
-Vai?
-Sim... Vai ser necessário
alguma prova para incriminar aqueles bandidos.
-Ah... Se você quiser eu
posso depor como testemunha...
-Não adianta, uma só não é
suficiente.
-Então em que posso
ajudar?
-Você lembra que no dia do
trabalho na casa da Jéssica eles estavam comentando sobre o que eles já
aprontaram?
-Uhum.
-Pois é, provavelmente ela
deve ter as fotos e os vídeos no computador dela.
-E como você pretende
consegui-las?
-Indo até lá.
-Quando?
-Agora.
-Mas agora ela não deve
estar em casa...
-Por isso mesmo. Já liguei
lá e falei com a empregada. A Jéssica foi ao cabeleireiro e deve voltar lá
pelas seis horas... Vou te contar o que você deve fazer.
-Tudo bem.
Após explicar o que ela deveria fazer, começamos a
colocar em prática o meu plano. Tínhamos tudo para dar certo, e a Soraia, com
seus dotes artísticos, sabia interpretar muito bem, graças às suas aulas de
teatro, e isso nos ajudaria muito naquele dia.
Assim que desliguei o telefone ela ligou para a Jéssica,
pondo em prática o nosso plano:
-Alô?
-Jéssica? É Soraia...
-Fala?
-Desculpa estar te
incomodando, mas é que eu perdi um dos cabos do meu notebook e o último lugar
em que o usei foi naquele dia em sua casa...
-Tá... Você está achando
que eu roubei o cabo do seu computador?
-Longe de mim pensar
isso... O que eu quero dizer é que provavelmente ele deve ter caído pela sala.
-Tudo bem, se a empregada
encontrar algo eu te aviso.
-Mas Jéssica... Eu estou
precisando com urgência... Será que eu poderia ir até lá falar com ela?
-Não estou a fim de me
aborrecer hoje... Vou ligar pra ela e dizer que você vai até lá...
-Obrigada!
-Tchau.
Passei na casa da Soraia para buscá-la com o carro da
minha mãe, para irmos até o apartamento da Jéssica tentar conseguir as provas
que provavelmente ela guardava.
-Você trouxe o notebook, Sô?
-Está aqui.
-E os cabos?
-Também.
-Ótimo!
Ao chegarmos, o porteiro pediu nossa identificação e após
confirmar com a empregada fomos autorizados a subir. Enquanto a Soraia utilizou
o elevador social, subi pelo acesso de serviço e fiquei aguardando por ela em
frente à porta da cozinha, conforme havíamos combinado no caminho.
-Olá! A Jéssica disse que
eu vinha...
-A sim... Dona Soraia?
-Isso!
-Por favor, entre.
-Obrigada!
-Olha... Eu olhei por toda
parte da sala, mas não encontrei nenhum cabo solto.
-Jura?... Eu tinha certeza
que havia perdido aqui...
-Se a senhora quiser eu
posso procurar novamente...
-Vou ajudá-la, então, mas
antes eu posso beber um copo d'água?
-Eu trago para a senhora.
-Não... Fique ai
procurando que eu mesma pego, eu sei onde fica a cozinha, já sou de casa...
-Tudo bem.
Enquanto a empregada permaneceu na sala, a Soraia foi até
a cozinha, e abriu à porta de serviço para que eu entrasse. Logo depois ela voltou
à sala, segurando na mão esquerda um copo com água pela metade. Com seu notebook
embaixo do braço, esquivei-me pelos cantos para não ser visto e caminhei até o
quarto da Jéssica. Ao encontrá-lo, fechei à porta para não chamar atenção e
liguei seu computador. Procurei fazer tudo rapidamente, pois não dispunha de
muito tempo pra tal façanha.
Para minha sorte, seu computador não possuía senha para
iniciar o sistema operacional. Conectei
o cabo nos dois equipamentos e iniciei a transferência de dados. O processo
todo levou nove minutos, e eu já estava ficando desesperado.
Depois de concluído, desliguei seu computador e o deixei
da mesma forma como havia encontrado. Com cuidado, abri à porta do quarto e
quando estava quase chegando à cozinha, percebi que alguém estava vindo em
minha direção. Para tentar salvar minha pele a Soraia derrubou o copo que
segurava ao chão, chamando à atenção da empregada com o barulho do vidro se
quebrando.
-Oh meu Deus!
-O que houve, senhora?
-Ai como sou estabanada...
Deixei cair o copo...
-Não tem problema, pode
deixar que eu limpo. A senhora se machucou?
-Por sorte, não.
Rapidamente atravessei a cozinha e saí pela porta de
serviço, a mesma por onde havia entrado, enquanto o tumulto na sala concentrava
as atenções. Peguei o elevador e desci até o térreo, telefonando para a Soraia
logo em seguida para informar que ocorrera tudo bem.
-Bom, acho que não está
aqui mesmo o cabo... Devo ter me enganado.
-Caso eu ache, peço para a
dona Jéssica lhe entregar.
-Você me faria esse favor?
-Claro!
-Mas você é mesmo um amor.
Muito obrigada!
-De nada!
Encontramo-nos no hall do elevador para deixarmos
o condomínio juntos e não levantar suspeitas no porteiro. Colocando seus óculos
escuros ela perguntou:
-Deu certo?
-Sim.
-Ótimo!
-Você me assustou deixando
aquele copo cair...
-Susto tive eu quando vi a
empregada indo pro quarto.
-Essa foi por pouco.
-O que pretende fazer com
isso agora?
-Preciso primeiro ver o
que tem aqui...
-Então fique com o notebook,
depois você me entrega.
-Posso?
-Claro!
Deixei a Soraia em sua casa e logo depois segui para a
minha, onde tratei imediatamente de checar tudo que havia conseguido e pudesse
ser utilizado como prova para comprovar as maldades daquela gente.
Após estacionar o carro na garagem de casa, entrei pela
porta da cozinha e subi direto para meu quarto. Imediatamente comecei a
vasculhar os arquivos, e não demorou muito para que as bizarrices começassem
vir à tona.
Vídeos, fotos, depoimentos, formas sarcásticas e
perversas de divertimento. Em um dos mais de dez vídeos aparecia a Jéssica e a
Amanda, rindo, tendo como fundo uma enorme janela. O clima parecia de uma
festa, encontro de amigos, onde ambas brincavam de repórteres entrevistando
algumas pessoas que lá estavam.
“-Já joguei muito ovo em
muita vagabunda...”
Gargalhadas eram ouvidas ao fundo.
“-Eu... Já coloquei fogo
na mendigada da Sé... Já espanquei dois travesti...” -
Disse um dos rapazes bêbado.
A violência era praticada como diversão, compartilhada
entre pessoas que nasceram, cresceram e receberam todo conforto e educação das
melhores possíveis.
Das ocorrências em que os jovens da classe média alta
estão envolvidos, as vítimas, em grande parte, pertencem à classes inferiores,
homossexuais, negros, prostitutas, índios, entre outros.
Contudo, não há como deixa de associar o preconceito às
agressões. Grupos racistas, neonazistas, estão crescendo cada vez mais nas
grandes cidades, tornando-se moda entre os jovens da classe média alta,
inspirados em grupos norte-americanos principalmente e ingleses. No Brasil, a
impunidade contribui para que esses grupos cresçam cada vez mais e disseminem
seu ódio gratuito diante de uma população diversificada, proveniente de várias
etnias.
Pouco tempo depois a Soraia entrou na internet e
começamos a conversar:
/// Srtº Tom \\\ diz: so...
tInA diz: oi tom!!!!!
/// Srtº Tom \\\ diz: miguxa... a koisa eh peor
du ke a genti penxavah...
tInA diz: pq?
/// Srtº Tom \\\ diz: ixtou assuxtadu cum tanta
maudadi...
tInA diz: bem... vindo da jessica e
do ciclo de amizades dela naum me surpreende...
/// Srtº Tom \\\ diz: naum sei u q leva alguem a
agir dexa forma... vo ti mandah u vidioOo
tInA diz: ta baum
No outro dia cheguei à faculdade ansioso para encontrar o
Cauê e assim oficializarmos junto à coordenação a queixa crime. Sentei-me à
carteira e logo em seguida a Soraia chegou, e com uma boa expressão facial ela
exclamou:
-Bom dia, Tom!
-Bom dia!... Uau... O que
aconteceu pra você estar toda animada assim?
-Segui o seu conselho e
ontem consultei um endocrinologista...
-Que legal!
-É... Ele me passou uma
dieta e hoje eu já comecei...
-Você vai superar isso bem
rápido, e assim calar a boca de todo mundo que te colocou pra baixo.
-Semana que vem vou ao
psicólogo com minha mãe.
-E como está a relação
entre vocês duas?
-Perfeita! Minha mãe agora
está mais próxima de mim... A gente tem conversado bastante, até fizemos
compras juntas domingo no shopping...
-Sério?
-É... E o Kico foi junto.
-Você já o apresentou como
seu namorado?
-Já... E minha mãe adorou
ele.
Nesse momento o Cauê chegou, porém, sem a companhia do
Emílio. Caminhando com o auxilio de sua vareta ele aproximou-se de nós
exclamando:
-Bom dia!
-Bom dia!
Levantei-me da cadeira e falei:
-Podemos ir então?
Tirando a caixa de óculos de sua bolsa a Soraia perguntou:
-Ir aonde, Tom?
-Na coordenação falar com
o reitor...
Parado à minha frente o Cauê falou:
-Tom... Acho melhor
deixarmos essa história pra lá...
Levantando-se da cadeira a Soraia disse:
-Eu quero ir com vocês.
-Então vamos.
Percebi que o Cauê estava meio estranho, mas não
questionei os motivos, preferi deixar para depois.
Ao chegarmos à coordenação, a Gabriela já esperava por
nós, acompanhada do reitor que nos recebeu com um aperto de mão.
-Bom dia!
-Bom dia!
-Sentem-se, por favor...
Segurando uma caneta na mão a Gabriela falou:
-Eu expliquei ao professor
Wilson tudo que vocês me relataram.
Com uma folha de papel à mão ele perguntou ao Cauê:
-Então você confirma com
toda certeza de que um dos participantes do trote contra você foi o Cristiano Soares
do terceiro ano?
Surpreendendo a todos, sua resposta foi direta:
-Não.
Todos fomos pegos de surpresa. Confusa, a Gabriela
perguntou novamente:
-Como não? Vocês disseram
que tinham certeza de que ele havia participado...
-Eu me enganei...
Desculpem, mas eu preciso voltar...
Sem dizer mais nada ele se retirou da sala, deixando-me
confuso e envergonhado perante todos que ali estavam presentes.
Com uma expressão de ira a Gabriela falou debruçando
sobre a mesa:
-Rustom, nós não estamos
aqui de brincadeira, sabia?
-Eu não sei o que deu
nele... O Cauê disse que tinha certeza de...
-Olha garoto, vocês dois
mereciam ser convidados a se retirarem dessa instituição.
Assustada, a Soraia falou:
-Ah gente... Mas também
não é pra tanto, né?
Olhando para ela o reitor falou:
-Nós já havíamos preparado
toda a documentação de desligamento do aluno Cristiano Soares da instituição...
E se já estivéssemos concluído?... Teríamos expulsado um inocente, acreditando
na palavra de vocês.
Calado, não respondi nada. Após um suspiro a Gabriela
levantou-se da mesa, caminhou até um armário e pegou uma pasta. Ao volta para a
mesa ela falou:
-Nós não temos alternativa
se não suspender você e o Cauê.
-Suspender?
-Isso é o mínimo...
-Mas... Suspensão de
quantos dias?
-Deveriam ser três dias,
mas por estar no final do semestre, e haver aula somente até sexta feira, vamos aplicar apenas um.
Sem entender, a Soraia perguntou:
-Mas não era hoje o último
dia de aula?
-Sim, mas vocês tiveram
três dias sem aula no início do semestre, então elas serão repostas amanhã,
quinta e sexta.
-Tudo bem.
Olhei para a Soraia inconformado. Eu confiei no Cauê, e
além do mais, ele havia afirmado com tanta convicção que eu não teria motivos
pra duvidar.
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