No outro dia, assim que
acordei telefonei para a Soraia. Conforme havia prometido para o meu amorzinho,
aqueles que haviam lhe feito mal não ficariam impunes, e eu não poderia mais
perder tempo, pois a experiência própria havia me dado a prova de que o
silêncio custa muito caro.
-Alô?
-Oi... Por favor, a
Soraia?
-Olá, Tom!
-Olá... Tudo bom com a
senhora?
-Tudo sim. Aguarde só um
instante que irei chamá-la.
-Obrigado.
-Alô?
-Oi Sô!
-Oi miguxo!
-Eu... Estou indo à
delegacia fazer a denúncia contra aqueles...
-Quer que eu vá com você?
-Eu quero sim.
-Minha mãe vai sair com o
carro... Você vai estar com o seu?
-Vou... Pode deixar que eu
passo ai e te busco.
-Ótimo! Você se importa se
o Kico for junto? É que ele dormiu aqui em casa e...
-Por mim não há problema
algum...
-Você parece não estar
muito bem, Tom...
-Estou precisando
conversar um pouco...
-Claro! Irei ouvi-lo com
prazer.
-Obrigado, miguxa.
-Até mais tarde.
-Até!
Após o almoço, passei na casa da Soraia e seguimos logo
depois para a delegacia, munido de todas as provas que havia conseguido. A
queixa foi registrada mais rápido do que eu esperava, e se dependesse de mim, a
justiça seria feita.
A presença dos meus dois melhores amigos me fez bem, além
do conforto de ouvir uma palavra amiga no momento em que eu mais precisava.
-Tom... Deus nos coloca à
prova para testar até onde somos capazes de chegar, o tamanho de nossa fé...
-Talvez seja... Mas nos
faz tão mal...
-Eu sei, mas tudo isso
serve para que nos fortaleça cada vez mais.
-É tão bom ouvir uma
palavra amiga...
Dando-me um abraço a Soraia falou:
-Agora chega de tristeza.
Vamos falar de coisas boas.
-E qual é a nova?
Respondendo por ela, o Kico disse:
-A Soraia irá se inscrever
no concurso de Miss Brasil.
-Sério?
-Sim... Graças ao Cauê...
-É mesmo, ele havia
pedido... Nossa!
-O que foi?
-Que dia é hoje?
-Dezessete de julho, por
quê?
-Se eu não me engano, é
hoje que ele volta...
-Que legal!
-Eu vou para casa...
-Nós também vamos, pois
com esse tempo chuvoso só dá vontade de ficar em casa namorando.
-Então vamos que eu deixo
vocês em casa.
-Tudo bem...
Enquanto caminhávamos até o carro a Soraia pegou seu
celular e telefonou para a Jéssica, debochando de sua cara após a queixa que
havíamos prestado contra ela e sua corja. Confesso que até senti vontade de
participar, mas a ansiedade em rever o Cauê era tão grande que meus pensamentos
foram longe.
Cheguei em casa e avistei minha mãe sentada ao sofá, com
a mão cobrindo seu rosto. Percebendo que algo havia acontecido, tranquei a
porta e sentei-me ao seu lado perguntando preocupado:
-Mãe... Está tudo bem?
Sem se mover ela respondeu:
-Por que você não me
contou que é gay?
Levantei-me do sofá assustado.
-Quem te falou isso?
Olhando em meus olhos e chorando ela falou:
-Não sei... Alguém me
ligou e disse que você namorava um aleijado...
Gritei:
-Ele não é aleijado.
-Então é verdade!
-Eu... Eu sou gay sim.
-Ah meu Deus!
-Calma, mãe... Não precisa
ficar assim... Isso não é um bicho de sete cabeças.
-Você fala como se fosse
fácil viver nessa situação...
-Claro que não é fácil...
-Para uma mãe, qualquer
comportamento de um filho que fuja do considerado comum pela sociedade causa
preocupação... O mundo é cruel, Rustom...
-Como... Você ficou
sabendo disso?
-Alguém me ligou e disse
que você estava tendo um caso com um colega de classe... Mas não se
identificou.
-Era voz masculina?
Feminina?
-Parecia uma mulher.
Nesse momento o telefone da sala tocou. Limpando suas
lágrimas minha mãe atendeu, com a voz embargada:
-Alô?
Apenas com o olhar ela contou-me quem era. Peguei o
telefone para confirmar:
-Alô?
-Oi mozinho!
-Oi!... Cauê, você poderia
me ligar daqui a pouco?
-Mas é que... Tudo bem.
-Depois eu te explico.
-Tá bom.
Desliguei o telefone e logo em seguida ela olhou-me, e
pela forma pedia a confirmação daquilo que já suspeitava:
-Sim, mãe... É ele.
Após levantar-se do sofá ela subiu a escada em direção ao
seu quarto, chorando. Confesso que fiquei triste pela forma com que ela ficou
sabendo. Acredito que saber por você é bem melhor do que pela boca alheia, mas
já que a verdade já havia sido exposta, não havia mais nada que eu pudesse
fazer, aliás, havia sim, e o culpado pagaria muito caro.
Subi para meu quarto triste, angustiado. Sempre tive um
bom relacionamento com minha mãe, e todo aquele clima acabou fazendo-me mal,
além do mais, ambos passamos por maus momentos menos de vinte e quatro horas antes.
Deitei-me à cama pensando na vida, e assim acabei adormecendo.
Acordei algum tempo depois, com o telefone tocando.
Atendi bocejando:
-Alô?
-Tom?
-Oi Cauê... Desculpas por àquela
hora...
-Aconteceu algum problema?
-Alguns... Você já me
conhece, né?
-Claro... Do fio da cabeça
aos pés.
-Cauê... Minha mãe
descobriu tudo sobre nós.
-Mas como?
-Ligaram pra ela e
contaram.
-Ligaram?
-Sim.
-Mas quem ligou?
-Não tenho certeza, mas
desconfio da Jéssica.
-Safada.
-Deixe isso pra lá...
Sabia que eu estou com saudade de você?
-Eu também... Mas eu tenho
uma boa notícia...
-Qual?
-Estou voltando hoje para
São Paulo.
-Sério?
-Sim...
-Que horas?
-Por volta das seis da
tarde eu desembarco em Congonhas.
-Então eu vou te buscar no
aeroporto.
-Oba!
-Em qual voo você vem?
-Ah... Não estou com os
bilhetes aqui... Devem estar com a minha mãe, mas depois eu te ligo e passo.
-Ótimo!
-Não aguento mais esperar
para ficar ao seu lado novamente.
-Ainda hoje você vai
estar.
-E ninguém irá nos
separar.
-Nunca mais.
-Te amo.
-Eu também.
Desliguei o telefone feliz da vida. Peguei uma roupa e
fui tomar um banho antes de sair. O relógio do meu quarto marcavam quatro
horas. Ao sair do banheiro, voltei ao quarto com a toalha enrolada à cintura,
peguei o secador de cabelo e voltei ao banheiro. Calcei o tênis e logo em
seguida passei aquele perfume que o Cauê gostava.
Desci à escada colocando a carteira no bolso traseiro da
calça, quando minha mãe surpreendeu-me perguntando:
-Aonde você vai?
-Mãe!... Eu...
-Sem mentiras, Rustom...
Por favor.
-Está bem... Eu vou até o
aeroporto encontrar o Cauê. Posso usar seu carro?
-Eu vou com você.
-Tudo bem, eu vou de
ônibus... O quê?
-É isso mesmo que você
ouviu... Quero ir também.
Aproximando-se de mim ela disse:
-Quero conhecer o
responsável por fazer seus olhos brilharem, sorrir o dia todo...
Eu não acreditei quando ouvi minha mãe falar aquilo.
-Você não está com raiva
de mim, mãe?
-Raiva por quê? Por você
ser esse menino maravilhoso que você é?
Demos um forte abraço. Naquele momento eu tive a certeza
de que não estava sozinho no mundo. Por mais que minha mãe tivesse enfrentado
uma vida difícil em sua infância, chegando até a passar fome, nunca a vi
maltratando alguém, querendo se vingar do mundo quando parecia que todos haviam
virado às costas para ela. Sempre que eu precisava ela estava lá, com seu colo
pronto para eu chorar, acompanhado de um carinho, uma palavra otimista para me
dizer, no momento certo.
Enquanto minha mãe dirigia, conversávamos:
-Por que você escondeu
isso de mim, Rustom?
-Eu não tive intenção de te
enganar, mentir... Quis poupá-la...
-Você deveria ter me
contado.
-E te fazer sofrer? Correr
o risco de ser rejeitado?
-Eu nunca faria isso.
-Não é tão fácil assim,
mãe... A gente não sabe como será a reação de nossos pais...
-Humpf...
-Além disso, é
constrangedor abrir sua sexualidade aos pais... É como um filho hétero dizer à
mãe que prefere garotas com seios maiores, menores, genitália depilada de certa
forma...
-Mas é diferente.
-Não, não é... Eu não sou
anormal... Minha sexualidade não pode vir à frente de meus valores, não precisa
ser exposta...
-Rustom... Isso tem alguma
coisa a ver com suas brigas nos colégios?
-Sim.
Foi bom ter esclarecido tudo de uma vez, sem mágoas e
ressentimentos. Senti-me mais aliviado, sem culpa ou sensação de estar
enganando alguém. Sei que sou uma pessoa de sorte por ter uma mãe como a minha,
que mesmo sofrendo por ter um filho diferente, acolheu-me em seus braços.
Ao entrarmos na Avenida Washington Luiz ela quis
saber:
-E esse Cauê... Como ele
é?
-O garoto mais perfeito do
mundo... É carinhoso, meigo, inocente, puro...
-Você está feliz com ele?
-Muito!... Ele me ensinou
muitas coisas...
-Ah é?... Como o quê, por
exemplo?
-Graças ao Cauê eu aprendi
que o valor das coisas não está em quanto elas custam, mas sim no tamanho da
satisfação que podem proporcionar... E que a beleza das coisas está além do que
os olhos podem ver...
-Que lindo!
-Você vai adorá-lo, mãe.
-Só pelo fato de fazer meu
filho feliz eu já gosto dele... Você está com os dados do voo ai?
-O Cauê ficou de me
retornar para me passar...
-Será que ele já não
ligou?
-Não sei... O meu celular
está sem sinal.
-Eu já falei pra você
trocar de operadora... Olha que chuva?
-Ainda bem que já estamos
perto.
-Só espero que o aeroporto
não feche por conta disso.
-Ou o voo atrase...
Chegamos ao aeroporto. Fazia frio naquele começo de noite
em São Paulo, além de chover. Após deixarmos o carro no estacionamento,
seguimos para a área de desembarque para esperar pelo Cauê.
Enquanto caminhávamos pelo saguão, minha mãe apontou para
o portão e falou:
-Vamos aguardar ali.
-Tá bem.
Peguei em sua mão e a coloquei em meu peito dizendo:
-Olha como eu estou?
-Nossa!... Tudo isso é
ansiedade?
-Não... É amor, mãe.
Nesse momento ouvimos um forte barulho, seguido de um leve
tremor. Pareciam fogos, devido ao breve clarão duplo que veio de fora, mas
sabíamos que não era. Minhas pernas começaram a tremer. Olhei para minha mãe
tentando achar uma resposta, mas seu silêncio também indiciava sua dúvida.
O relógio do painel do aeroporto marcavam 18h51. Pouco
tempo depois, começaram a desembarcar os passageiros de um voo vindo do sul.
Após um forte aperto em minha mão, minha mãe falou:
-Será que ele está nesse?
-Não sei... Deixa eu
tentar ligar pra ele...
-Mas filho, se ele ainda estiver
no avião não poderá atender...
-Mas se eu ligar e der
caixa postal saberei que ainda está voando.
Peguei o telefone celular do bolso, e antes de começar a
discar para o Cauê, notei que havia uma mensagem na caixa postal. Com o sorriso
de orelha a orelha, exclamei:
-Tem recado na caixa
postal!... Será que é o Cauê?
-Ouve para saber de quem
é.
-É o que vou fazer...
Digitei a senha e logo em seguida comecei a ouvir o
recado do Cauê, como já suspeitávamos.
“Oi Tom!... Estou morrendo
de saudade, não tirei seu bracelete nem por um minuto do braço... Estamos
embarcando para São Paulo... Agora são 17h00... Os dados do voo... Ops!... É o
voo 3054 da companhia TAM. Acredito que por volta de 18h50 estaremos pousando
em Congonhas... Estou um pouco angustiado... Deve ser a saudade. Bem... Preciso
desligar, tá? Olha... Todas às vezes em que você sentir a brisa do ar te tocar,
sou eu lhe fazendo carinho. Um beijo, te amo!”
Desliguei o telefone com o sorriso que ia de orelha a
orelha. Naquele momento eu fui ao céu e voltei num piscar de olhos. A sensação
que sentimos quando vivemos um amor é inexplicável, assim como a alegria que
percorria minhas veias.
Olhando-me minha mãe afirmou:
-Era ele...
-Sim... Ai mãe, não vejo a
hora de poder abraçá-lo novamente...
-Em qual voo ele vem?
Quando eu ia responder, nossa atenção foi desviada para
uma mulher que começou a gritar descontroladamente, jogando-se ao chão
desesperada, amparada por duas pessoas que, assim como ela, também choravam:
“Não... Meus filhos
não...”
Fiquei assustado. O clima começou a mudar naquele
aeroporto. No inicio não se sabia o que havia realmente ocorrido, mas algum
tempo depois já estava claro que se tratava de um acidente.
Várias pessoas começaram a correr em direção ao balcão da
TAM, enquanto dois bombeiros passaram por mim apressados, pedindo para que as
pessoas abrissem passagem. Um tumulto começou a se formar, e preocupado, parei
um homem que passava por nós apressado e perguntei:
-Moço, por favor, o que
está acontecendo?
-Parece... Que um avião
caiu...
-Avião? Ah meu Deus!
Meu coração apertou. Um frio pela espinha subiu-me
arrepiando todos os pelos do corpo. Minha frequência cardíaca duplicou, e as
lágrimas começaram a descer sem que eu pudesse controlar. Horrorizada, minha
mãe deu-me um abraço. Trêmulo, eu disse:
-Mãe... Estou com medo...
-Calma, Rustom... Vamos
até o balcão da TAM ver se conseguimos alguma informação sobre o voo do Cauê.
Várias pessoas começaram a se dirigir para o aeroporto,
familiares e amigos. Muita gente passava por nós, aflitas, angustiadas,
chorando. Até aquele momento, a Companhia aérea não tinha nenhuma informação
concreta para nos passar, pedindo para que aguardássemos apenas. Uma espera
angustiante, feita de dor, sofrimento.
-Ai, mãe...
-O que foi, filho?
-Diz que nada disso está
acontecendo?
-Rustom... Não se
precipite, filho...
Meu peito apertou, e uma angústia enorme invadiu-me sem
pedir licença. Tentávamos saber o que de fato havia acontecido, mas ninguém
sabia nos dar qualquer tipo de informação.
"Eu
só ouvi o barulho da queda do avião e o relâmpago na janela da cozinha, eu
estava fazendo a janta, a geladeira tremeu eu vi um clarão. Na hora pensei que
fosse um relâmpago."
"A
gente só escutou o estrondo e saiu correndo, só depois a gente ficou sabendo do
que aconteceu."
Será que o voo dele atrasou? Será que pegou outro voo,
perdeu o avião? Mas se ele estiver lá, será que sobreviveu? Geralmente,
parentes das vítimas de acidentes aéreos se apegam à qualquer esperança que
possa haver, mesmo às mais remotas, e comigo não foi diferente.
"Não
dão uma informação decente, e ficam tratando a gente como se nós fossemos
criminosos, é vergonhoso o que está acontecendo."
“Eu
não sei o que vai acontecer agora, não sei qual o procedimento que vai ser
tomado, como que eu vou chegar até meu filho.”
Por volta dás 19h20 A Secretaria de Segurança Pública de
São Paulo confirmou que 176 pessoas estavam a bordo da aeronave acidentada.
Boatos e contradições haviam por todos os lados, deixando os familiares
confusos e aumentando ainda mais nossa dor e sofrimento.
-Nãooooooooooooooooo...
Não pode ser...
-Rustom...
Ajoelhei-me ao chão.
-Deus... Não me abandone
agora, por favor...
-Calma, filho... Vamos ter
fé que...
-É o voo que ele disse que
iria estar...
-Mas talvez ele não
embarcou...
-Ai mãe, meu peito dói...
Pelo amor de Deus, mãe... Me ajuda?...
-Como eu posso te ajudar,
filho?
-Tira essa dor de dentro
de mim, mãe?
Recebi um abraço como resposta, mas a dor que eu estava
sofrendo, assim como todos os familiares que ali estavam, não havia remédio que
a confortasse, curasse aquela ferida que sangrava sem parar.
Nenhum comentário:
Postar um comentário