segunda-feira, 18 de abril de 2016

O QUE OLHOS NÃO VEEM - CAPÍTULO 1




CAPÍTULO 1: O TROTE

                        Achar que a beleza das coisas está só onde os olhos podem enxergar é pura ignorância. Existem pessoas que possuem o incrível poder de surgir e mudar completamente nossas vidas, e sentir isso na pele como eu senti, foi a melhor coisa que já me aconteceu.
                      Cresci em uma família típica de classe média, filho único, e embora nunca tenha faltado-me nada material, jamais recebi carinho de pai, apenas o desprezo. Por diversas vezes eu chorava sozinho, tentando entender o motivo de todo aquele descaso, e pedindo a Deus um novo sentido para minha vida.  
                        Foi em uma manhã de fevereiro que tudo começou. O tempo la fora estava fechado. Acordei cedo para ir à faculdade, seria meu primeiro dia de aula, o início de um novo ciclo em minha vida. O relógio da sala marcava 06h32 da manhã. Olhei pela janela do meu quarto e o tempo ameaçava chover, cheiro de grama molhada.
                        Vestia uma jaqueta preta quando minha mãe entrou em meu quarto dizendo:
-Rustom...
-Oi, mãe!
-Bom dia!... Deixei a chave do carro sobre a mesinha do telefone.
-Ah sim, obrigado!
-Pegou o iogurte que eu guardei para você na geladeira?
                        Arrumando meu cabelo em frente ao espelho eu disse:
-Mãe, eu não sou mais criança pra você ficar me tratando assim...
-Pra mim você será sempre meu bebê.
-Ta bom... Vou indo...
-Rustom...
-Oi?
-Por favor, não arrume confusão dessa vez...
-Humpft... Eu não procuro confusão, mãe... Apenas me defendo.
                        Depois de me dar um abraço ela falou:
-Boa aula!
-Obrigado!
                        Sempre que eu precisava, minha mãe emprestava-me seu carro, para que eu não sofresse no transporte caótico de São Paulo. Naquela manhã o trânsito estava bom, pois peguei o contra fluxo da Marginal. Ao chegar perto da faculdade, notei a dificuldade que seria estacionar nas ruas próximas, pois estava repleta de carros.
                        Em frente a entrada principal havia muitos veteranos aguardando os calouros, para passar o tão conhecido Trote. Passei por eles sem ser notado, subindo direto para a sala de aula. Todas as informações de localização eu já havia recebido da faculdade por e-mail, sendo assim, não precisei pesquisar naquelas listas coladas nas paredes da secretaria.
                        Ao entrar à sala, avistei a terceira carteira do canto próximo à porta, e decidi que era ali onde eu ia me sentar durante as aulas. O ambiente não era muito grande, mas estava lotado. Encostei a cabeça na parede e olhava em direção à porta, quando avistei o professor chegar.
-Bom dia, classe!
-Bom dia!
                        Colocando sua pasta sobre à mesa ele se apresentou:
-Meu nome é Ricardo, sou um dos professores do curso de Direito. Darei aula para a turma de vocês durante esse semestre.
                        O professor Ricardo parecia ser bem tranquilo. Seu jeito calmo de falar, misturado a espontaneidade, mostrava ter um espírito jovem, apesar de seus cabelos grisalhos. Após uma breve apresentação, a aula começou pra valer, com matéria na lousa e até marcando datas para entrega de trabalhos.
                        Pouco antes do intervalo, percebi que os veteranos estavam sondando nossa sala para pegar os novatos e pôr em prática suas maldades. Antes que eles me surpreendessem, deixei a sala como se fosse ao banheiro, esquivando-me pelos cantos para não ser visto. Desci pela escada rolante onde não havia ninguém, em seguida caminhei até a lanchonete e comprei um sanduíche que eles chamavam de “natural”.
                        Eu estava com muita fome, e não me faria bem ingerir frituras ou coisas muito pesadas àquela hora da manhã. Enquanto comia, caminhava pelo enorme jardim entre os prédios do campus. Sentei-me próximo à uma árvore para admirar a paisagem, quando ouvi um latido de cachorro. No início estranhei, pois não é comum ver um animal circulando locais fechados onde transitam muitas pessoas. Tudo bem que poderia ser do caseiro ou apoio de algum dos seguranças, e mesmo assim não deveria ficar exposto próximo aos alunos.
                        Pela altura do latido ele não parecia estar muito longe. Deixando a curiosidade falar mais alto, comecei a procurar pelo animal em meio ao arvoredo. O barulho das folhas secas sendo pisadas o fizeram latir ainda mais, e quando o encontrei, percebi que agonizava parecendo pedir socorro. O animal era muito bonito, bem cuidado, da raça labrador. Apontando para a entrada do prédio de Educação Física ele tentava escapar da corda que o prendia.
-O que você tem?... Calma, cachorrinho... O que tem lá dentro, hein?
                        Preocupado, caminhei em direção à porta de vidro que dava acesso à piscina. Empurrei-a lentamente para que não fizesse barulho e chamasse atenção de alguém que lá pudesse estar, além do cachorro. O ambiente era enorme, bem equipado e moderno. Haviam duas piscinas, uma delas era semi-olímpica, com bóias coloridas formando fileiras.
                        Não havia ninguém no local, apenas eu que por curiosidade caminhava pelo deck, tomando cuidado para não cair dentro de uma das piscinas, pois as luzes do ambiente estavam desligadas pela não utilização do espaço naquele momento. O silêncio logo foi quebrado pelo soar de gargalhadas que vinham do vestiário.
-Hahaha... Bem vindo!... Uhuuu...
                        Ao perceber que vinha alguém, escondi-me atrás de uma pilastra para não ser visto. Embora o local estivesse um pouco escuro, a luz que transpassava pelas portas de vidro permitiu-me ver quatro garotos caminharem em direção à piscina, e um deles dizendo:
-Aonde vocês estão me levando?
                        Enquanto o grupo gargalhava, outro respondeu:
-Agora você virou "bicho", cara... Precisa ser batizado...
                        Um dos meninos parecia não pertencer ao grupo, o que logo me fez sacar que aquilo se tratava de um “trote” de mau gosto. Como se fosse uma bola, os garotos o empurravam de um lado para o outro, enquanto ele se debatia sem entender o que acontecia.
-Por favor, parem com isso.
-Bem vindo à universidade, mano...
                        Rolar na lama, beber até não aguentar mais, pedir dinheiro nos faróis, tomar banho de óleo queimado, comemorações como essas não é o que se esperam aqueles que acabam de entrar para a faculdade. Além do desgaste de ter enfrentado o vestibular, cobranças da sociedade e dos país, na maioria das vezes são obrigados a passar por "testes" como esses, denominados Trotes e praticado por alunos veteranos.
                        Por muito tempo os novatos tiveram que aceitar vários tipos de humilhações, porém, nos últimos anos o registro de denúncias contra abusos na prática dos trotes acumularam-se, e com isso despertou reação em algumas instituições, sendo proibido a prática por algumas dentro de suas dependências. Consequentemente, várias universidades criaram punições e restrições para a prática de trotes que não fosse acolhedor, solidário.
                        Espiando por trás da pilastra, senti pena do pobre garoto. Aqueles caras perversos poderiam machucá-lo, e não demorou muito para que algo ruim acontecesse. Enquanto um pegou pelos seus braços, outros dois seguraram suas pernas e o balançaram, tomando impulso e o atirando na piscina semi-olímpica logo em seguida.
                        Enquanto caiam na gargalhada, o rapaz agonizava no interior da piscina, pedindo por socorro. O que estavam fazendo com ele ia além de um trote, mas sim uma perversidade. Próximo a mim havia um cesto de lixo feito de lata. Caminhei até ele e comecei a balançá-lo, fazendo um forte barulho para tentar assustar os moleques.
                        Confesso que minha idéia foi bem primitiva, além idiota, mas acabou dando certo, e isso é o que importa. Com medo de serem pegos por alguém, deixaram o garoto dentro da piscina e saíram correndo dizendo:
-Ih... Sujô, sujô...
-Corre, caralho... Corre...
                        Esperei que eles saíssem e fui até a piscina onde haviam jogado o rapaz. Quase sem forças ele ainda tentava nadar, batendo braços e pernas, intercalando com gritos de ajuda e tosse. Procurei algo para que ele pudesse agarrar e assim poder puxá-lo, mas não encontrei. Vendo que o garoto não aguentaria por muito tempo, tirei minha roupa e pulei na piscina apenas de cueca.
                        A água estava muito fria, chegando a doer os ossos, mesmo assim nadei em sua direção. Ao me aproximar, passei meu braço esquerdo por baixo de sua axila esquerda e nadei em direção à margem, com suas costas apoiada sobre meu peito.
                        Aquela piscina era enorme, deveria ter uns três metros de profundidade e se ele permanecesse por mais um tempo boiando sem ajuda, com certeza não teria resistido e certamente se afogaria.
                        Quando nos aproximamos à margem, falei:
-Segure na beirada do deck...
-Por favor, não me machuque...
-Fique calmo, eu não vou machucá-lo.
                        Tateando à borda, ele procurava onde se apoiar. Para ajudá-lo, coloquei suas mãos na beira da piscina, enquanto isso sai da água para puxá-lo. O vento frio que entrava por um dos vitrais abertos fazia-me tremer de bater os dentes.
                        Já fora da água, estendi minha mão a ele dizendo:
-Segure minha mão...
                        Esperei que ele a pegasse, mas ao invés disso o garoto estendeu a sua esperando que eu o fizesse. Percebi que ele parecia não estar bem, e isso me preocupou ainda mais. Peguei pelo seu braço e o puxei para fora da água, de uma vez só.
                        Seu corpo todo tremia muito de frio. O deitei ao lado da piscina, enquanto isso vesti minha roupa para proteger-me do vento gelado. Seu corpo era franzino, aparência frágil. Com medo que algo pior acontecesse com ele, o peguei no colo e o levei para a sauna que ficava ao lado dos vestiários, pois achei que o garoto poderia entrar em estado de hipotermia.
                        Tranquei à porta, para caso os garotos voltassem, não nos pegassem novamente. O tempo inteiro ele chamava pelo nome de alguém, talvez seu pai, pois o nome era masculino. Liguei o aquecedor e tirei suas roupas, o deixando só de cueca. Após torce-las, estendi na bancada para que pudessem secar.
                        Permaneci abraçado ao seu corpo por quase uma hora, até ter certeza de que a sua temperatura corporal já havia se estabilizado. Acabamos cochilando um pouco, mas logo acordei quando ele começou a se mexer.
                        O ajudando a levantar, perguntei:
-Você está bem?
-Humpft... Estou... Cadê o Emílio?
-Quem é Emílio?
-Meu cachorro.
-Por acaso seria um labrador?
-Isso!
-Ah... Ele está la fora... Não se preocupe, pois ele está bem.
                        Apertando forte minha mão e demonstrando estar com muito medo ele pediu:
-Por favor, não deixe que me machuquem...
-Não se preocupe... Ninguém fará nada contra você enquanto eu estiver aqui.
-Você promete?
-Prometo... Confie em mim.
-Obrigado!
-Mas será necessário denunciar as pessoas que fizeram isso com você... Saberia reconhecê-los se os vissem entre os alunos?
                        Após um longo suspiro ele respondeu:
-Eu não posso enxergar, sou deficiente visual...
                        Tudo bem que eu percebi nele algo diferente, mas em momento nenhum eu havia reparado que fosse cego, pois seus olhos eram praticamente perfeitos. A partir daí eu entendi o por quê dele ter estendido seu braço ao invés de pegar em minha mão, o latido desesperado de seu cachorro.
                        Para que trotes violentos fossem repreendidos e proibidos literalmente, foi necessário acontecer uma tragédia, e no ano de 1999 o Brasil tomou ciência do caso do calouro Edson Hsueh da Faculdade de Medicina da USP, encontrado morto dentro da piscina da associação atlética dos alunos, um dia depois de um churrasco oferecido pelos veteranos no mesmo local.
                        Fiquei sem saber o que pensar, vendo aquele garoto na minha frente, chorando e tremendo de frio e medo. O que aconteceu com ele foi além de um trote, pode ser classificado como uma tentativa de homicídio, pois eles tinham a ciência da deficiência do garoto, e fizeram aquilo por maldade, de caso pensado, desde o local onde saberiam que não seriam vistos, até amarrando seu animal em uma árvore para não serem seguidos ou descobertos.
                        Sem jeito, falei:
-Desculpa, eu não havia notado que você não enxerga...
-Não tem problema.
-Humpft... Acho melhor irmos embora enquanto estão todos nas salas assistindo à aula.
-Eu estou com medo...
                        Tocando em sua face, falei:
-Ei... Não precisa ter medo, eu estou aqui, não deixarei ninguém te fazer mal.
-Obrigado!
                        Depois de ajudá-lo a se vestir, abrindo à porta da sauna para irmos embora, perguntei:
-Você mora em que bairro?
                        Segurando forte em meu braço ele respondeu:
-Sacomã...
-Tudo bem, então vamos buscar o seu cachorro que eu vou levar vocês pra casa.
-Nos levar?
-É... Não vou te deixar ir sozinho para que você corra o risco novamente de ser pego por algum outro marginal... Estou com o carro da minha mãe...
-Não precisa, eu me viro com o Emílio...
-Não ficarei em paz sabendo que você está correndo risco sendo que eu poderia ter evitado.
                        Após um suspiro, ele questionou:
-Desculpa, mas por que você está me ajudando?
-Porque eu também passei por muitas injustiças e preconceitos nessa vida... Agora vamos pegar seu cachorro e sair daqui logo...
-Eu estou com medo...
-Calma... Não tem ninguém por perto, devem estar todos na sala.
-Humpft... Ta bem.
                        Voltamos ao bosque e pegamos seu cachorro, em seguida fomos para o carro que estava estacionado próximo dali. Traumatizado, ele não largava meu braço. Caminhamos apressados, nos esquivando para não sermos vistos.
                        Deixamos o campus pela saída lateral e caminhamos pelas ruas que estavam vazias, pois o segundo período de aula ainda não havia se acabado.
                        Enquanto seu cachorro o guiava, perguntei:
-Para todo lugar que você vai o Emílio te acompanha?
-Sim... Ele que me livra dos obstáculos... Às vezes eu uso a vareta, mas na maioria das vezes é com o Emílio que me locomovo pela cidade.
-Podemos dizer que ele é seu melhor amigo então...
-O Emílio é praticamente meus olhos.
                        Abri a porta dianteira e o ajudei a entrar no carro. Depois de prender o cinto de segurança nele e acomodar o Emílio no banco traseiro, liguei o carro e antes de dar partida percebi que ele ainda tremia. Travei as portas, tirei o cinto de segurança e falei:
-Você ainda está com frio?
-Muito.
                        Toquei em seu peito e senti sua roupa ainda úmida. Liguei o ar quente do carro e disse a ele:
-É melhor você tirar essa camisa, se não vai ficar doente... Vou te emprestar minha blusa que está quentinha...
-Obrigado!
                        Tirei minha jaqueta, e o após tirar sua blusa, o ajudei a vesti-la, pois ele acabou se atrapalhando com uma das mangas.
-Deixa que eu te ajudo...
-Tudo bem.
-Opa... Hahaha, agora foi.
-Obrigado...
-Rustom.
-Obrigado, Rustom!
-De nada.
-Eu me chamo Cauê.
-Prazer, Cauê!
                        O Cauê não aparentava dispor de muitos recursos financeiros, mas sua aparência era bem cuidada, e deveria ter uma mãe muito cautelosa. Enquanto eu dirigia, conversávamos:
-Você mora com quem, Cauê?
-Só eu e minha mãe.
                        Nesse momento o Emílio latiu:
-Ah!... E o Emílio também... E você?
-Em casa moramos eu, minha mãe e meu pai.
-Que legal!
-É... Nem tanto assim.
-Por quê?
-Quando a gente convive com seres humanos, é difícil agradar.
-Eu posso imaginar... Você não se dá bem com eles?
-Com minha mãe sim.
-E com seu pai?
-Humpft... Não muito.
-Você deve ser muito rebelde então... Hahaha...
-Antes fosse... Bem, acho que chegamos no endereço que você me passou. Qual é o número?
-32.
-Achei!
                        Paramos em frente sua casa. O sol começava a esquentar, mas o vento frio ainda soprava. Abri a porta do carro e o ajudei a descer, auxiliando também o Emílio. Dando-me um forte abraço ele falou:
-Muito obrigado, Rustom!
-Não precisa agradecer...
-Entre um pouco, deixe eu te apresentar minha mãe...
-Gostaria muito, mas não vou poder... Minha mãe vai precisar do carro, não posso demorar.
-Humpft... Tudo bem.
-Foi um prazer conhecê-lo.
                        Voltava para o carro quando ele pediu minha atenção:
-Rustom?
-Eu.
-A gente se fala outra vez?
-Claro!
                        Entrei no carro e segui para casa. Para um primeiro dia de aula, começou um pouco agitado demais, mas se fosse muito parado também não haveria graça. Estacionei em frente ao portão, onde avistei meu primo brincando na garagem.
-Tom!
-Oi Felipe!
                        Depois de lhe dar um abraço, entrei pela porta da cozinha, onde minha mãe e a tia Márcia conversavam e tomavam chá com bolo:
-Tom!
-Oi tia, tudo bem?
-Tudo... Sua mãe estava me contando que hoje foi seu primeiro dia de aula...
-É...
-E como foi?
-Mais agitado do que eu esperava...
-Filho, cadê sua jaqueta?
-É uma longa história, depois te conto.
                        Partindo um pedaço de bolo, comentei:
-Ah... Hoje eu conheci um cachorro que faz faculdade.
-Sério?
-Sim... É um labrador de um deficiente visual...
                        Abraçando minha tia, meu primo perguntou:
-Mãe... No meu aniversário você me dá um cachorro que faz faculdade?
                        Todos rimos.
-Vou pensar no seu caso.
-Bom, vou tomar banho e dormir um pouco.
-Rustom, não vai almoçar primeiro? Já está pronto...
-Não estou com fome, mãe.
                        Subi para o meu quarto e comecei a ouvir um pouco de música. Deitado em minha cama eu olhava através da janela, com o pensamento perdido entre as nuvens que passam em meio ao céu azul que se formava. Assim adormeci.
                        Acordei com o aroma de café que vinha da cozinha. O sol já estava se pondo, e o vento gelado que entrava pela janela me fez arrepiar. Entrei no banheiro e abri o chuveiro. Esperei que a água esquentasse, enquanto isso escovava os dentes já despido.
                        Após um longo banho quente, desci até a cozinha, onde minha mãe e a tia Márcia ainda conversavam sentadas à mesa:
-Tom... Não quer um pedaço de bolo, filho?
-Outro?
-Sim, comprei agora a pouco na padaria...
-Bolo de quê?
-Mármore.
-Hum... Adoro! Cadê o Felipe?
-Está dormindo no sofá da sala... Não vá acordá-lo.
-Ah... Tudo bem...
                        Cortei duas fatias de bolo, coloquei-as em um prato e voltei ao meu quarto. Deixei tocando o CD do NX Zero bem baixinho, enquanto isso comia deitado sobre minha cama. Meu quarto era o único lugar onde eu me sentia seguro, a vontade, mesmo tendo pouca privacidade, pois meus pais entravam sem bater na maioria das vezes.
                        Antes que eu terminasse a primeira fatia o telefone tocou:
-Alô?
-Tom? É o Kico.
-Oi miguxo!
-O que você ta fazendo?
-Estou ouvindo um pouco de música e comendo um pedaço de bolo.
-Eu ainda to no trabalho... Tá um saco isso aqui.
-Por quê?
-Estou sozinho, não tem cliente...
-E você não entrou na internet?
-Sim, mas não tem ninguém online... Ai resolvi ligar pra você para conversar um pouco.
-É porque hoje começaram as aulas, ai o povo não fica mesmo.
-Ah é mesmo... E você foi pra aula?
-Sim.
-Gostou?
-Achei um pouco chato, mas minha tia disse que no começo é assim...
-Pois é, depois vai melhorando.
-Pelo menos fiz minha boa ação do dia.
-Como assim?
-Acredita que tentaram afogar um garoto na piscina da faculdade?
-Nossa! Mas conseguiram?
-Claro que não... Eu dei um jeito de impedir que matassem o garoto.
-Mas por que isso?
-Por maldade...
-Credo.
-Depois te conto como foi.
-Tudo bem.
-Domingo você vai encontrar o pessoal na Liberdade?
-Ainda não sei... Meu pai ta querendo viajar, mas se a gente não for eu te ligo pra combinarmos de ir.
-Está bem.
-Bom, vou indo agora.
-Nos falamos depois.
-Sim.
-Até.
                        O Kico era meu melhor amigo, e apesar de saber da minha sexualidade, nunca me tratou diferente do restante da turma. Nos conhecemos no tempo do colégio, e desde então não nos separamos mais, sendo a única pessoa que eu poderia confiar e compartilhar meus segredos.

                        Após desligar o telefone fui ver um pouco de TV. Eu não estava me sentindo muito bem, uma dor horrível de cabeça não me deixa fazer mais nada, e não tive outra opção a não ser voltar a dormir.


Próximo capítulo: Mudando de sala



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