CAPITULO 3 - O PRIMEIRO BEIJO
No
sábado o dia amanheceu ensolarado. Embora eu não gostasse muito de sol forte,
tenho que confessar que o dia estava bonito, céu limpo, sem nuvens. Acordei com
o celular tocando. Levantei-me da cama, tirei-o da mochila e com a voz um pouco
travada, atendi:
-Alô?
-Tom... É o Kico...
-Oi...
-O senhor estava dormindo?
-Sim.
-Nossa... Foi mal...
-Fale?
-O quê?
-Pra que você ligou?
-Ah é!... Eu te liguei pra saber se você está a fim de sair.
-Pra onde?
-Lá no nosso ponto de encontro de costume.
-Na Liberdade?
-É.
-Quem vai?
-A Prizinha, eu, o Xandi, a Debi e o Dudu.
-Humpft... Que horas vocês irão se encontrar lá?
-Às uma da tarde.
-Que horas são agora?
-Agora são nove horas.
-Tudo bem. Mais tarde eu colo lá.
-Beleza.
-Beijo.
-Beijo.
Desliguei
o telefone e fui tomar um banho. Em casa não havia ninguém, estavam todos
trabalhando. Ao ligar o chuveiro, senti que a água estava muito gelada.
Enquanto esperava que ela esquentasse, me veio o Cauê em pensamento. Eu nunca
havia conhecido alguém com deficiência visual antes de uma forma tão próxima
como ele. É engraçado como as coisas são diferentes quando estamos fora, e ao
vermos de um outro ângulo desfazemos toda aquela imagem distorcida que tínhamos
por falta de conhecimento de causa.
Acredito
que nada na vida acontece por acaso, e conhecer o Cauê só iria ensinar-me a
viver melhor, sentir o mundo através de uma forma que menosprezamos, pois o
campo visual torna-se prioritário no mundo em que vivemos, desprezando os
outros sentidos.
Após
o banho desci até a cozinha, apenas com a toalha enrolada à cintura. Na
geladeira havia suco de laranja, bolo, e algumas outras coisas gostosas. Minha
barriga já roncava de fome. Passei manteiga em um pão e o coloquei na chapa
para dourar um pouco. Sentei-me à mesa para tomar meu café da manhã
traquilamente. Aproveitei que a torrada estava crocante e comi três com geléia
de morango.
Tomar
café da manhã não era um hábito que eu exercia com frequência. Geralmente eu
não sentia fome na parte da manhã, mas como naquele dia minha barriga amanheceu
pedindo comida preferi não contrariá-la.
Depois
de me fartar, voltei ao meu quarto e vesti uma bermuda, em seguida entrei à internet
para checar meus e-mails e conversar um pouco com meus amigos. Algum
tempo depois o telefone tocou. Corri até a sala para atendê-lo, mas ao segundo
toque parou de chamar. Voltei ao quarto e continuei o que estava fazendo.
/// Srtº Tom \\\ diz:
volteiiiiiii
----KiCo---- diz:
tom... eu tow mt afim da debi...
/// Srtº Tom \\\ diz:
e vuxe jah disse issu pra ela????
----KiCo---- diz:
inda naum
/// Srtº Tom \\\ diz:
puke?
----KiCo---- diz:
to cum medu di leva um NAUM
/// Srtº Tom \\\ diz:
mais issu faix part
/// Srtº Tom \\\ diz:
converxa cum ela e conte o q vuxe ta sentindu!!!!
----KiCo---- diz:
axu ki vo faze issu memu
----KiCo---- diz:
maix mudandu de assuntu... eu liguei pro thi e eli disse q
num vai hj
/// Srtº Tom \\\ diz:
puke?
----KiCo---- diz:
pk onti uns puks bateu neli
/// Srtº Tom \\\ diz:
nuss! Ondi?
----KiCo---- diz:
na avenida paulista... eli tava saindu du metro ai os kara
viram eli e pegaram... nem deu tempu deli corre
/// Srtº Tom \\\ diz:
mais bateram mt neli?
----KiCo---- diz:
naum puke a policia tava passandu e ajudou eli... mas si num
fosse isso axu ke teria matadu ele de tantu bater...
/// Srtº Tom \\\ diz:
ki horror... as pessoas naum podem nem ser o ke saum soh
puke um grupu axa erradu, feiu...
----KiCo---- diz:
essax pessoax naum sabem comu u mundu seria xatu si todax as
pessoax foxem tudu iguaix
A internet é uma
das formas mais ativas de demonstração do preconceito contra os Emos.
Sendo o principal divulgador e responsável por propagar a tribo no Brasil, a internet
tornou-se também um veículo para demonstrações e exibições de agressões contra
os jovens pertencentes à tribo. O que impressiona é o crescimento contínuo de
adeptos à prática dessa violência, provando que a juventude brasileira vem
tornando-se cada vez mais rebelde influenciada por grupos intolerantes à
diferenças, criados e praticados em outros países e copiados aqui.
"Preconceito,
com qualquer forma de estilo novo que está surgindo sempre existirá, é
inevitável, o lance é lutar contra isso..." (Felipe,
22, Brasília)
"Já
me chamaram de demônio quando eu estava voltando pra casa. Uma vez um menino
chegou por trás e me enforcou, não sei se por brincadeira, mas ele me
machucou." (Prizinha, 17 anos, Salvador.)
No
começo da tarde fui encontrar o pessoal no bairro da Liberdade. Ao chegar,
avistei a galera sentada aos degraus da escadaria da estação do metrô.
Aproximei-me do pessoal e cumprimentei todos com um beijo no rosto.
Acariciando
meu cabelo a Ana perguntou:
-Quais são as novidades, lindo?
-Humpft... Começaram as aulas na faculdade.
-E você ta gostando?
-Estou.
Naquela
tarde o pessoal estava bem animado, falando alto, contando sobre as férias,
baladas. Em meio a conversa do grupo acabei me pegando em meus pensamentos e
viajando pra bem longe.
-Tom?... Tom?... Tom!
-Oi linda!
-O que houve?
-Nada... Por quê?
-Você de repente ficou ai calado...
-Humpft... Desculpe, é que estava pensando no
que aconteceu essa semana...
-O que aconteceu?
-Lá na faculdade... Tentaram afogar um garoto
que é cego.
-Nossa!
-Que horror, miguxo!
-Pois é.
Deitando
sua cabeça sobre o meu colo o Cadu falou:
-Você está sabendo da novidade?
-Não... Qual?
-O Kico e a Debi estão ficando.
-Ficando?
-É.
-Desde quando?
-Desde agora há pouco...
-Cadê eles?
-Foram no mercado comprar suco de soja pra gente e daqui a pouco estão
de volta.
-Entendi... Que inveja deles.
-Por que inveja?
-Ah... Eu também estou a fim de um amor.
-Mas logo você encontra, miguxo.
-Gente... Eu posso apresentar a vocês o Cauê?
-Quem é Cauê?
-É aquele garoto cego que comentei com vocês.
-Claro que pode, Tom!
-Vocês vão adorar o Cauê. Ele é um cara super alegre, bonito, legal,
inteligente...
-Uau... O Tom ta apaixonado...
-Eu?
Sem
que eu esperasse, todos começaram a gritar:
-Ta apaixonado, ta apaixonado, ta apaixonado...
-Gente, por favor... Não tem nada a ver...
Confesso
que senti um pouco de inveja quando soube que o Kico estava ficando com a Debi.
Não que fosse dos dois, mas pela situação em si. Fazia tempo que eu não me envolvi
com ninguém, e isso estava fazendo-me falta.
Voltei
pra casa já havia anoitecido. Ao chegar, meus pais já estavam em casa, e não
foi preciso dizerem nada para que eu percebesse um clima melancólico no ar.
Subi para meu quarto e de lá não sai, nem para jantar.
Deitado
em minha cama, não conseguia pensar em outra coisa que não fosse o Cauê. Não
sei por que aquele garoto não me saía da cabeça, talvez o motivo pudesse ser o
episódio inédito que eu acabara de presenciar, porém, algo em mim dizia que não
era somente isso. Adormeci pensando nele.
Meu
domingo começou perfeito. O dia estava ensolarado, lindo. O céu azul sem nuvens
estava propício para empinar pipa. Ainda admirando o dia apoiado à janela ouvi
altas vozes vindas da cozinha. Troquei de roupa, lavei o rosto e desci para ver
o que estava acontecendo. Ao chegar, flagrei meu pai dando um tapa na cara da
minha mãe, sendo jogada à parede pelo impacto da pancada.
Naquele
instante eu perdi a noção de tudo. Voei em cima dele para que não voltasse a
fazer nada contra minha mãe, que envergonhada levantou-se do chão e correu em
direção ao telefone, ameaçando chamar a polícia para prendê-lo. Em um movimento
brusco ele jogou-me ao chão e saiu pela porta da cozinha, pegando o carro e
sumindo aos nossos olhos.
Violência
doméstica é aquela violência explicita ou assistida, praticada dentro do lar
por parentes. O ato inclui várias práticas, como maus tratos contra idosos,
violência contra a mulher, abuso sexual contra crianças, entre outras.
Os
tipos de violência podem ser classificados em física, quando envolve a agressão
direta contra pessoas pertencentes a família; violência sócio econômica,
acontecendo quando um indivíduo possui acesso a recursos econômicos e acesso
social controlados por familiar; violência psicológica quando são proferidas
agressões verbais, coação, ameaças;
Apreensivo,
corri até a sala para saber como minha mãe estava. Chorando, ela mal conseguia
segurar o telefone. Abracei-a com força e questionei:
-Por que escondeu isso de mim?
-Filho, desculpa?
-Desde quando isso está ocorrendo?
Sem
responder ela seguiu para seu quarto, trancou a porta e de lá não saiu.
Presenciar aquela cena acabou com meu domingo. Não é fácil presenciar um pai
bater na mãe, é traumatizante. Chorei sozinho, imaginando a todo tempo o que
poderia ter ocorrido se eu não chegasse ou não estivesse em casa.
Palavras
horríveis, acusações sem fundamentos, ofensas, ameaças, difamação. As palavras
ferem e o tom de voz aumenta, e de repente um tapa, um empurrão, soco, falta de
controle, são deferidos contra o agredido. Não se pode medir o tamanho dos
danos provocados por essa violência que atinge não só ao agredido, mas também a
filhos, parentes.
As
estatísticas mostram que a violência contra a mulher é muito maior do que
contra o homem. Conforme a Fundação Perseu Abramo, 43% das mulheres brasileiras
confessam terem sofrido algum tipo de violência, sendo que um terço delas dizem
ter sofrido agressão física. Com relação a violência psicológica, 27% das
mulheres confirmam ter sofrido e as que sofreram assédio sexual somam 11%.
Bati
à porta de seu quarto, mas ela não abriu. Comecei a entender o porquê da
utilização de óculos escuros dentro de casa, e às vezes que perguntei ela
abafou o caso, tentando me poupar de saber o verdadeiro caráter do meu pai.
Na
grande maioria dos casos, os responsáveis pelas agressões domésticas sãos os
maridos/namorados, com maior incidência nas classes financeiras mais baixas,
ocorrendo também com mulheres da classe média e alta, porém, o medo de se
exporem e expor sua família faz com que denunciem menos.
Passei
o dia preocupado, angustiado, aflito. No começo da noite minha mãe finalmente
deixou o quarto, escondendo sua face para que eu não visse a vergonha e
humilhação estampada em seus olhos. Tentei conversar sobre, mas percebi que ela
não estava a fim, sendo assim respeitei e não insisti.
No
outro dia sai de casa mais cedo. Deixei o carro em casa e fui de ônibus. Meus
pensamentos estavam longe, e a angústia tomava conta do meu peito. O trânsito
não estava muito bom, e para piorar um caminhão havia provocado um acidente na
Marginal, formando um congestionamento de mais de dois quilômetros.
Cheguei
à faculdade e a aula ainda não havia começado. Entrei na sala e logo em seguida
o Cauê chegou. Sentando-se em sua carteira ele falou:
-Tom?
-Oi!
-Bom dia!... O que você tem?
-Nada...
-Como nada? Eu conheço você...
-Humpft... Eu...
-A tristeza em sua voz revela que você não está bem... Se quiser
conversar, estou disposto a te ouvir.
-Está bem... Podemos sair depois da aula?
-Claro! Vou te levar para um lugar especial.
-Que lugar?
-Não conto... Será surpresa. Você confia em mim?
-Confio.
Após o término da aula, descemos
juntos pelo elevador lateral, pois era bem mais vazio. Com o auxílio de sua
vareta o Cauê tocou em meu braço, e caminhando em passos lentos questionei:
-Você não veio com o Emílio hoje?
-Não... Ele está adoentado.
-O que ele tem?
-Não sei... Hoje minha mãe vai levá-lo ao veterinário.
-Espero que não seja nada grave.
-Se Deus quiser, não será.
Meu
peito continuava angustiado. Às vezes vinha em mente aquela cena do domingo, e
uma vontade enorme de chorar tornava-se inevitável. O que me preocupava mais
era minha mãe, pois eu havia saído sem vê-la e saber como estava.
Seguimos
o Cauê e eu em direção ao ponto de táxi. Com seu jeito espontâneo ele falava o
percurso inteiro, enquanto eu respondia com palavras monossilábicas. Ao
chegarmos, o motorista logo foi abrindo a porta do carro quando o viu,
exclamando:
-Menino Cauê!
-Bom dia, Nicolau!
-Bom dia? Já é quase boa tarde...
-É que eu ainda não almocei.
Fechando
a porta do carro o Nicolau questionou:
-Hahaha... Ta certo. Para onde vamos?
-Leve-nos para o céu.
-Pode deixar.
Curioso, sussurrei:
-Céu?
-Sim...
-Que lugar é esse?
-O verdadeiro paraíso... Você gosta de
natureza?
-Gosto.
-Que bom!
Pouco
tempo depois chegamos no lugar do qual o Cauê apelidava de “céu”. Ao meu lado
direito avistei um lindo parque, cheio de árvores, pássaros voando. Desci do
carro, em seguida o ajudei a descer e sem que eu precisasse perguntar o Cauê
falou:
-Todas às vezes que estou triste, eu venho pra cá...
-E você me traz para um lugar onde você só vem quando está triste?
-Sim...
-Por quê?
-Porque aqui eu recupero todas as energias boas que alguma coisa ou
alguém me fez perder...
Sentamos
à grama em volta do lago. A brisa suave do começa da tarde batia levemente em
nossas faces, acompanhada do cheiro de terra molhada. Cobertos pela sombra de
uma das arvores, dividíamos espaço com as folhas secas caídas à grama.
Tirando
parte da franja do olho perguntei:
-Qual é o nome desse lugar, Cauê?
-Jardim Botânico.
-Ah!
-Um pouco mais à frente fica o Zoológico de São Paulo.
-Eu sabia que já havia passado por aqui antes!
A origem do Jardim Botânico foi fruto da
paixão do naturalista Frederico Carlos Hoehne, em 1928, quando iniciou o
Orquidário do Estado, na Água Funda. Hoje, são 143 hectares abrigando várias
espécies vegetais. Em seu interior foram construídas duas estufas - que se
tornaram a marca do Jardim Botânico -, uma abriga plantas típicas da mata
atlântica, enquanto a outra é destinada a exposições temporárias. O Instituto
de Botânica dispõe de uma biblioteca com cerca de 6.400 livros, inúmeras obras
do século passado e um acervo botânico sem igual no Estado de São Paulo. No
Museu Botânico encontram-se inúmeras amostras de plantas da flora brasileira,
uma coleção de produtos extraídos de plantas, fibras, óleos, madeiras, sementes
e também quadros e fotos representativos dos diversos ecossistemas do Estado.
No conjunto arquitetônico-cultural do Jardim Botânico destacam-se, além do
Museu, o Jardim de Lineu, inspirado no Jardim Botânico de Uppsala, na Suécia,
as estufas históricas, o portão histórico de 1894, e o marco das nascentes do
riacho Ipiranga. (Daniel Guimarães,
2007)
Deitamos
à grama. Enquanto eu observava as nuvens passarem, após um longo suspiro o Cauê
perguntou com a voz serena:
-Tom... O que te aflige ao ponto de deixar
dessa forma?
-Humpft... A situação em casa não anda nada
boa...
-Por quê?
-Alguns problemas de tolerância familiar...
-Ah...
-Mas prefiro não falar nisso por enquanto.
-Claro, não vou te obrigar a nada.
-Obrigado!
Tocando
à grama, o Cauê perguntou:
-Posso te contar um segredo?
-Pode.
-Pensei em você o final de semana inteiro.
-Em mim?
-É... Pela forma com que me defendeu...
-Deveria ter me ligado.
-Pra quê?
-Pra conversar, sair, somos amigos, não?
-Ah... Humpft... Eu preferi evitar...
-Evitar?
-É.
-Por quê?
-Pra ver se te esqueço um pouco.
-Esquecer de mim? Você não...
-Rustom, desculpa, mas eu acabei confundindo as coisas.
-Que coisas?
Aproximando-se
de mim ele tentava explicar:
-Você sempre foi muito legal, e isso acabou
mexendo comigo de uma tal maneira que quando me dei conta, era tarde demais, eu
já estava apaixonado por você. Eu não quero que a nossa amizade...
-Cauê, fique calmo.
Tocando
em sua mão, continuei:
-Eu também tenho sentido algo diferente por
você.
-O quê?
-Não sei explicar... Passei o final de semana
pensando em você, até quis te ligar... Sua presença me faz bem, sinto vontade
de te abraçar...
-O que mais?
-De te beijar...
Aproximei-me
dele, e aproximei-me pouco a pouco, iniciando um delicioso beijo na boca. Meu
coração bateu acelerado, e o do Cauê também. Seus lábios tocavam levemente os
meus, enquanto sua mão direita apoiava-se em meu peito. Naquele momento o mundo
ao nosso redor se transformou. O cheiro da grama tornou-se mais forte, o som
dos pássaros mais nítidos e os meus sentimentos mais claros.
Chacoalhando
a outra mão o Cauê interrompeu o beijo exclamando:
-Ai!... Tem alguma coisa no meu braço...
-Calma... Era só uma borboleta.
-Ah... Pensei que fosse um pássaro perigoso.
-Hahaha... Não... Existe muita diferença entre eles.
-Tom...
Acariciando
sua mão questionei:
-Eu?
-Como é uma borboleta?
Fui
pego de surpresa com aquela pergunta. Como eu poderia descrever sobre algo para
alguém que não enxergava? Encostei sua cabeça em meu peito e com toda paciência
e cautela tentei explicar:
-A borboleta é um ser muito bonito. Possui muitas cores e...
-É como as flores?
-Não, é muito mais colorida... E fina como uma pétala de uma rosa.
-Nossa!... Deve ser realmente linda.
-Muito!
Sentando-se
novamente à grama o Cauê começou a tocar meu rosto com as pontas dos dedos.
Fechei meus olhos. Enquanto ele tocava parte por parte de minha face, uma
sensação diferente acariciava minha alma, brotando dentro de mim uma felicidade
sem explicação.
Esboçando
um leve sorriso ele comentou:
-Como você é bonito, Tom!
-Bonito?
-Sim... Muito!
-Como você sabe?
-Um deficiente, devido ao seu problema, acaba
desenvolvendo outras habilidades. No meu caso, possuo o tato, olfato e audição
mais desenvolvidos.
-Que coisa curiosa! Você já nasceu assim?
-Não. Fui vítima de uma doença chamada
Fibroplasia Retrolental
A Fibroplasia Retrolental é uma
doença ocasionada pelo uso em excesso e não controlado do oxigênio em
recém-nascidos. Se diagnosticada precocemente ela pode ser tratada ou evitada.
Acariciando
seu cabelo comentei:
-Eu acho que todo ser humano seria mais feliz
se estivessem essa percepção que você demonstra ter. Hoje em dia as pessoas
enxergam apenas o superficial, até onde os olhos podem ver.
-Será que elas são felizes?
-Eu gostaria de ter essa sensibilidade.
-Então desenvolva.
-Como?
-Feche os olhos.
-Fechar meus olhos?
-É... Confie em mim?
-Eu confio.
Fechei
meus olhos e permaneci sentado à grama. Pouco a pouco fui sentindo suas mãos
tocarem meus ombros e deitarem meu corpo. Continuei de olhos fechados. A
respiração faltava-me a medida em que minha emoção e sensação de bem estar
tornava-se mais forte, intensa.
Tocando
em minha mão ele colocou algo, dizendo em seguida:
-Pegue...
Curioso,
questionei:
-O que é isso?
-Sinta e me diga você o que é.
-Deixa eu ver...
-Ver não... Sentir...
-Isso.
Logo
quando o peguei nas mãos senti que era algo orgânico. Apalpei com as duas mãos
e notei a textura áspera, e se desfazia ao apertar com força. Confuso, o
apalpei ainda mais. Em momento nenhum eu abri os olhos. Fiz tudo da maneira que
ele pediu, e confesso que foi difícil.
-Nossa!
-O quê?
-É muito difícil...
-Não é difícil, basta você sentir com o coração, tocar com a alma...
-Humpft...
-Sinta a forma, textura, cheiro...
-Já sei!
-Já?
-Sim...
-Então o que é?
-Um pinhão.
-Acertou!
Abri
os olhos e realmente era um pinhão.
-Não entendo...
-O quê?
-Como eu consegui acertar sem muito chonhecer um pinhão.
-É simples... Todas as características dele já estavam em seu
inconsciente, bastava ter contato para associá-las.
-Que legal!
-Feche os olhos.
-Outra vez?
-Sim.
-Pronto.
-Sinta o cheiro dessa leve brisa...
-Hum!...
-Ouça o cantar dos pássaros...
Enquanto
eu fazia o que ele pedia, diferentes sensações de percepção eu sentia. Jamais
havia parado em minha vida para sentir o cheiro do vento, aliás, eu nem sabia
que vento tinha cheiro, e o canto dos pássaros passavam despercebidos
misturados ao barulho da cidade.
-Cauê...
-Eu?
Toquei
levemente em seu rosto e o acariciando falei:
-Você é um cara muito especial.
-Por quê?
-Humpft... Você me faz sentir diferente...
-Diferente como?
-Não sei... Sua companhia me faz bem...
-Que bom!
-Com você eu aprendi muito, principalmente a enxergar o verdadeiro valor
das coisas.
-Pare que se não vou chorar.
-Tudo bem, não quero que você chore. Posso te dar mais um beijo?
-Com toda certeza.
Nos
abraçamos novamente, iniciando um beijo molhado e cheio de vontade. O Cauê foi
o responsável por me apresentar o lado mais bonito das coisas, um mundo que eu
ainda não conhecia, assim como a maior parte da humanidade.
Aquela
tarde foi inesquecível. Cheguei em casa já estava anoitecendo. Coloquei a
mochila sobre o sofá quando o telefone começou a tocar:
-Alô?
-Rustom?
-Oi mãe!
-Estou ligando a tarde inteira e ninguém atende esse telefone...
-É que eu não estava em casa, acabei de chegar.
-Aonde você foi?
-Fui conhecer o Jardim Botânico.
-Humpft... Eu preciso que você tire do freezer o bife para o jantar...
-Tudo bem.
-Nem sei se vai dar tempo de descongelar.
-Então eu vou pôr pra descongelar no microondas.
-Ta.
-Era só isso?
-Só.
-Você está bem?
-Humpft... Estou, filho.
-Ele... Está ai?
-Sim, mas não está falando comigo...
-Melhor assim.
-Preciso ir, filho...
-Então ta bom, vou tomar banho.
-Beijo.
Fui
até meu quarto pegar uma peça de roupa e deixar minha mochila, logo em seguida
entrei no banheiro para tomar banho. A sensação que eu tinha era de estar
pisando em algodão, flutuando, pois meu corpo estava leve, e o sorriso ia de
orelha a orelha, tamanha era a felicidade que eu estava sentindo.
Um comentário:
Deus, obrigado por trazer o Lu de volta! Por favor, Lu, poste mais porque estou amando essa história. Muito bom poder ler um novo trabalho seu.
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