quarta-feira, 20 de abril de 2016

O QUE OLHOS NÃO VEEM - CAPÍTULO 3




CAPITULO 3 - O PRIMEIRO BEIJO


                        No sábado o dia amanheceu ensolarado. Embora eu não gostasse muito de sol forte, tenho que confessar que o dia estava bonito, céu limpo, sem nuvens. Acordei com o celular tocando. Levantei-me da cama, tirei-o da mochila e com a voz um pouco travada, atendi:
-Alô?
-Tom... É o Kico...
-Oi...
-O senhor estava dormindo?
-Sim.
-Nossa... Foi mal...
-Fale?
-O quê?
-Pra que você ligou?
-Ah é!... Eu te liguei pra saber se você está a fim de sair.
-Pra onde?
-Lá no nosso ponto de encontro de costume.
-Na Liberdade?
-É.
-Quem vai?
-A Prizinha, eu, o Xandi, a Debi e o Dudu.
-Humpft... Que horas vocês irão se encontrar lá?
-Às uma da tarde.
-Que horas são agora?
-Agora são nove horas.
-Tudo bem. Mais tarde eu colo lá.
-Beleza.
-Beijo.
-Beijo.
                        Desliguei o telefone e fui tomar um banho. Em casa não havia ninguém, estavam todos trabalhando. Ao ligar o chuveiro, senti que a água estava muito gelada. Enquanto esperava que ela esquentasse, me veio o Cauê em pensamento. Eu nunca havia conhecido alguém com deficiência visual antes de uma forma tão próxima como ele. É engraçado como as coisas são diferentes quando estamos fora, e ao vermos de um outro ângulo desfazemos toda aquela imagem distorcida que tínhamos por falta de conhecimento de causa.
                        Acredito que nada na vida acontece por acaso, e conhecer o Cauê só iria ensinar-me a viver melhor, sentir o mundo através de uma forma que menosprezamos, pois o campo visual torna-se prioritário no mundo em que vivemos, desprezando os outros sentidos.
                        Após o banho desci até a cozinha, apenas com a toalha enrolada à cintura. Na geladeira havia suco de laranja, bolo, e algumas outras coisas gostosas. Minha barriga já roncava de fome. Passei manteiga em um pão e o coloquei na chapa para dourar um pouco. Sentei-me à mesa para tomar meu café da manhã traquilamente. Aproveitei que a torrada estava crocante e comi três com geléia de morango.
                        Tomar café da manhã não era um hábito que eu exercia com frequência. Geralmente eu não sentia fome na parte da manhã, mas como naquele dia minha barriga amanheceu pedindo comida preferi não contrariá-la.
                        Depois de me fartar, voltei ao meu quarto e vesti uma bermuda, em seguida entrei à internet para checar meus e-mails e conversar um pouco com meus amigos. Algum tempo depois o telefone tocou. Corri até a sala para atendê-lo, mas ao segundo toque parou de chamar. Voltei ao quarto e continuei o que estava fazendo.

/// Srtº Tom \\\  diz:
volteiiiiiii

----KiCo----  diz:
tom... eu tow mt afim da debi...

/// Srtº Tom \\\  diz:
e vuxe jah disse issu pra ela????

----KiCo----  diz:
inda naum

/// Srtº Tom \\\  diz:
puke?

----KiCo----  diz:
to cum medu di leva um NAUM

/// Srtº Tom \\\  diz:
mais issu faix part

/// Srtº Tom \\\  diz:
converxa cum ela e conte o q vuxe ta sentindu!!!!

----KiCo----  diz:
axu ki vo faze issu memu

----KiCo----  diz:
maix mudandu de assuntu... eu liguei pro thi e eli disse q num vai hj

/// Srtº Tom \\\  diz:
puke?

----KiCo----  diz:
pk onti uns puks bateu neli

/// Srtº Tom \\\  diz:
nuss! Ondi?

----KiCo----  diz:
na avenida paulista... eli tava saindu du metro ai os kara viram eli e pegaram... nem deu tempu deli corre

/// Srtº Tom \\\  diz:
mais bateram mt neli?

----KiCo----  diz:
naum puke a policia tava passandu e ajudou eli... mas si num fosse isso axu ke teria matadu ele de tantu bater...

/// Srtº Tom \\\  diz:
ki horror... as pessoas naum podem nem ser o ke saum soh puke um grupu axa erradu, feiu...

----KiCo----  diz:
essax pessoax naum sabem comu u mundu seria xatu si todax as pessoax foxem tudu iguaix


                        A internet é uma das formas mais ativas de demonstração do preconceito contra os Emos. Sendo o principal divulgador e responsável por propagar a tribo no Brasil, a internet tornou-se também um veículo para demonstrações e exibições de agressões contra os jovens pertencentes à tribo. O que impressiona é o crescimento contínuo de adeptos à prática dessa violência, provando que a juventude brasileira vem tornando-se cada vez mais rebelde influenciada por grupos intolerantes à diferenças, criados e praticados em outros países e copiados aqui.

"Preconceito, com qualquer forma de estilo novo que está surgindo sempre existirá, é inevitável, o lance é lutar contra isso..." (Felipe, 22, Brasília)

"Já me chamaram de demônio quando eu estava voltando pra casa. Uma vez um menino chegou por trás e me enforcou, não sei se por brincadeira, mas ele me machucou." (Prizinha, 17 anos, Salvador.)

                        No começo da tarde fui encontrar o pessoal no bairro da Liberdade. Ao chegar, avistei a galera sentada aos degraus da escadaria da estação do metrô. Aproximei-me do pessoal e cumprimentei todos com um beijo no rosto.
                        Acariciando meu cabelo a Ana perguntou:
-Quais são as novidades, lindo?
-Humpft... Começaram as aulas na faculdade.
-E você ta gostando?
-Estou.
                        Naquela tarde o pessoal estava bem animado, falando alto, contando sobre as férias, baladas. Em meio a conversa do grupo acabei me pegando em meus pensamentos e viajando pra bem longe.
-Tom?... Tom?... Tom!
-Oi linda!
-O que houve?
-Nada... Por quê?
-Você de repente ficou ai calado...
-Humpft... Desculpe, é que estava pensando no que aconteceu essa semana...
-O que aconteceu?
-Lá na faculdade... Tentaram afogar um garoto que é cego.
-Nossa!
-Que horror, miguxo!
-Pois é.
                        Deitando sua cabeça sobre o meu colo o Cadu falou:
-Você está sabendo da novidade?
-Não... Qual?
-O Kico e a Debi estão ficando.
-Ficando?
-É.
-Desde quando?
-Desde agora há pouco...
-Cadê eles?
-Foram no mercado comprar suco de soja pra gente e daqui a pouco estão de volta.
-Entendi... Que inveja deles.
-Por que inveja?
-Ah... Eu também estou a fim de um amor.
-Mas logo você encontra, miguxo.
-Gente... Eu posso apresentar a vocês o Cauê?
-Quem é Cauê?
-É aquele garoto cego que comentei com vocês.
-Claro que pode, Tom!
-Vocês vão adorar o Cauê. Ele é um cara super alegre, bonito, legal, inteligente...
-Uau... O Tom ta apaixonado...
-Eu?
                        Sem que eu esperasse, todos começaram a gritar:
-Ta apaixonado, ta apaixonado, ta apaixonado...
-Gente, por favor... Não tem nada a ver...
                        Confesso que senti um pouco de inveja quando soube que o Kico estava ficando com a Debi. Não que fosse dos dois, mas pela situação em si. Fazia tempo que eu não me envolvi com ninguém, e isso estava fazendo-me falta.
                        Voltei pra casa já havia anoitecido. Ao chegar, meus pais já estavam em casa, e não foi preciso dizerem nada para que eu percebesse um clima melancólico no ar. Subi para meu quarto e de lá não sai, nem para jantar.
                        Deitado em minha cama, não conseguia pensar em outra coisa que não fosse o Cauê. Não sei por que aquele garoto não me saía da cabeça, talvez o motivo pudesse ser o episódio inédito que eu acabara de presenciar, porém, algo em mim dizia que não era somente isso. Adormeci pensando nele.
                        Meu domingo começou perfeito. O dia estava ensolarado, lindo. O céu azul sem nuvens estava propício para empinar pipa. Ainda admirando o dia apoiado à janela ouvi altas vozes vindas da cozinha. Troquei de roupa, lavei o rosto e desci para ver o que estava acontecendo. Ao chegar, flagrei meu pai dando um tapa na cara da minha mãe, sendo jogada à parede pelo impacto da pancada.
                        Naquele instante eu perdi a noção de tudo. Voei em cima dele para que não voltasse a fazer nada contra minha mãe, que envergonhada levantou-se do chão e correu em direção ao telefone, ameaçando chamar a polícia para prendê-lo. Em um movimento brusco ele jogou-me ao chão e saiu pela porta da cozinha, pegando o carro e sumindo aos nossos olhos.
                        Violência doméstica é aquela violência explicita ou assistida, praticada dentro do lar por parentes. O ato inclui várias práticas, como maus tratos contra idosos, violência contra a mulher, abuso sexual contra crianças, entre outras.
                        Os tipos de violência podem ser classificados em física, quando envolve a agressão direta contra pessoas pertencentes a família; violência sócio econômica, acontecendo quando um indivíduo possui acesso a recursos econômicos e acesso social controlados por familiar; violência psicológica quando são proferidas agressões verbais, coação, ameaças;
                        Apreensivo, corri até a sala para saber como minha mãe estava. Chorando, ela mal conseguia segurar o telefone. Abracei-a com força e questionei:
-Por que escondeu isso de mim?
-Filho, desculpa?
-Desde quando isso está ocorrendo?
                        Sem responder ela seguiu para seu quarto, trancou a porta e de lá não saiu. Presenciar aquela cena acabou com meu domingo. Não é fácil presenciar um pai bater na mãe, é traumatizante. Chorei sozinho, imaginando a todo tempo o que poderia ter ocorrido se eu não chegasse ou não estivesse em casa.
                        Palavras horríveis, acusações sem fundamentos, ofensas, ameaças, difamação. As palavras ferem e o tom de voz aumenta, e de repente um tapa, um empurrão, soco, falta de controle, são deferidos contra o agredido. Não se pode medir o tamanho dos danos provocados por essa violência que atinge não só ao agredido, mas também a filhos, parentes.
                        As estatísticas mostram que a violência contra a mulher é muito maior do que contra o homem. Conforme a Fundação Perseu Abramo, 43% das mulheres brasileiras confessam terem sofrido algum tipo de violência, sendo que um terço delas dizem ter sofrido agressão física. Com relação a violência psicológica, 27% das mulheres confirmam ter sofrido e as que sofreram assédio sexual somam 11%.
                        Bati à porta de seu quarto, mas ela não abriu. Comecei a entender o porquê da utilização de óculos escuros dentro de casa, e às vezes que perguntei ela abafou o caso, tentando me poupar de saber o verdadeiro caráter do meu pai.
                        Na grande maioria dos casos, os responsáveis pelas agressões domésticas sãos os maridos/namorados, com maior incidência nas classes financeiras mais baixas, ocorrendo também com mulheres da classe média e alta, porém, o medo de se exporem e expor sua família faz com que denunciem menos.                      
                        Passei o dia preocupado, angustiado, aflito. No começo da noite minha mãe finalmente deixou o quarto, escondendo sua face para que eu não visse a vergonha e humilhação estampada em seus olhos. Tentei conversar sobre, mas percebi que ela não estava a fim, sendo assim respeitei e não insisti.
                        No outro dia sai de casa mais cedo. Deixei o carro em casa e fui de ônibus. Meus pensamentos estavam longe, e a angústia tomava conta do meu peito. O trânsito não estava muito bom, e para piorar um caminhão havia provocado um acidente na Marginal, formando um congestionamento de mais de dois quilômetros.
                        Cheguei à faculdade e a aula ainda não havia começado. Entrei na sala e logo em seguida o Cauê chegou. Sentando-se em sua carteira ele falou:
-Tom?
-Oi!
-Bom dia!... O que você tem?
-Nada...
-Como nada? Eu conheço você...
-Humpft... Eu...
-A tristeza em sua voz revela que você não está bem... Se quiser conversar, estou disposto a te ouvir.
-Está bem... Podemos sair depois da aula?
-Claro! Vou te levar para um lugar especial.
-Que lugar?
-Não conto... Será surpresa. Você confia em mim?
-Confio.
                        Após o término da aula, descemos juntos pelo elevador lateral, pois era bem mais vazio. Com o auxílio de sua vareta o Cauê tocou em meu braço, e caminhando em passos lentos questionei:
-Você não veio com o Emílio hoje?
-Não... Ele está adoentado.
-O que ele tem?
-Não sei... Hoje minha mãe vai levá-lo ao veterinário.
-Espero que não seja nada grave.
-Se Deus quiser, não será.
                        Meu peito continuava angustiado. Às vezes vinha em mente aquela cena do domingo, e uma vontade enorme de chorar tornava-se inevitável. O que me preocupava mais era minha mãe, pois eu havia saído sem vê-la e saber como estava.
                        Seguimos o Cauê e eu em direção ao ponto de táxi. Com seu jeito espontâneo ele falava o percurso inteiro, enquanto eu respondia com palavras monossilábicas. Ao chegarmos, o motorista logo foi abrindo a porta do carro quando o viu, exclamando:
-Menino Cauê!
-Bom dia, Nicolau!
-Bom dia? Já é quase boa tarde...
-É que eu ainda não almocei.
                        Fechando a porta do carro o Nicolau questionou:
-Hahaha... Ta certo. Para onde vamos?
-Leve-nos para o céu.
-Pode deixar.
                        Curioso, sussurrei:
-Céu?
-Sim...
-Que lugar é esse?
-O verdadeiro paraíso... Você gosta de natureza?
-Gosto.
-Que bom!
                        Pouco tempo depois chegamos no lugar do qual o Cauê apelidava de “céu”. Ao meu lado direito avistei um lindo parque, cheio de árvores, pássaros voando. Desci do carro, em seguida o ajudei a descer e sem que eu precisasse perguntar o Cauê falou:
-Todas às vezes que estou triste, eu venho pra cá...
-E você me traz para um lugar onde você só vem quando está triste?
-Sim...
-Por quê?
-Porque aqui eu recupero todas as energias boas que alguma coisa ou alguém me fez perder...
                        Sentamos à grama em volta do lago. A brisa suave do começa da tarde batia levemente em nossas faces, acompanhada do cheiro de terra molhada. Cobertos pela sombra de uma das arvores, dividíamos espaço com as folhas secas caídas à grama.
                        Tirando parte da franja do olho perguntei:
-Qual é o nome desse lugar, Cauê?
-Jardim Botânico.
-Ah!
-Um pouco mais à frente fica o Zoológico de São Paulo.
-Eu sabia que já havia passado por aqui antes!

     A origem do Jardim Botânico foi fruto da paixão do naturalista Frederico Carlos Hoehne, em 1928, quando iniciou o Orquidário do Estado, na Água Funda. Hoje, são 143 hectares abrigando várias espécies vegetais. Em seu interior foram construídas duas estufas - que se tornaram a marca do Jardim Botânico -, uma abriga plantas típicas da mata atlântica, enquanto a outra é destinada a exposições temporárias. O Instituto de Botânica dispõe de uma biblioteca com cerca de 6.400 livros, inúmeras obras do século passado e um acervo botânico sem igual no Estado de São Paulo. No Museu Botânico encontram-se inúmeras amostras de plantas da flora brasileira, uma coleção de produtos extraídos de plantas, fibras, óleos, madeiras, sementes e também quadros e fotos representativos dos diversos ecossistemas do Estado. No conjunto arquitetônico-cultural do Jardim Botânico destacam-se, além do Museu, o Jardim de Lineu, inspirado no Jardim Botânico de Uppsala, na Suécia, as estufas históricas, o portão histórico de 1894, e o marco das nascentes do riacho Ipiranga. (Daniel Guimarães,  2007)

                        Deitamos à grama. Enquanto eu observava as nuvens passarem, após um longo suspiro o Cauê perguntou com a voz serena:
-Tom... O que te aflige ao ponto de deixar dessa forma?
-Humpft... A situação em casa não anda nada boa...
-Por quê?
-Alguns problemas de tolerância familiar...
-Ah...
-Mas prefiro não falar nisso por enquanto.
-Claro, não vou te obrigar a nada.
-Obrigado!
                        Tocando à grama, o Cauê perguntou:
-Posso te contar um segredo?
-Pode.
-Pensei em você o final de semana inteiro.
-Em mim?
-É... Pela forma com que me defendeu...
-Deveria ter me ligado.
-Pra quê?
-Pra conversar, sair, somos amigos, não?
-Ah... Humpft... Eu preferi evitar...
-Evitar?
-É.
-Por quê?
-Pra ver se te esqueço um pouco.
-Esquecer de mim? Você não...
-Rustom, desculpa, mas eu acabei confundindo as coisas.
-Que coisas?  
                        Aproximando-se de mim ele tentava explicar:
-Você sempre foi muito legal, e isso acabou mexendo comigo de uma tal maneira que quando me dei conta, era tarde demais, eu já estava apaixonado por você. Eu não quero que a nossa amizade...
-Cauê, fique calmo.
                        Tocando em sua mão, continuei:
-Eu também tenho sentido algo diferente por você.
-O quê?
-Não sei explicar... Passei o final de semana pensando em você, até quis te ligar... Sua presença me faz bem, sinto vontade de te abraçar...
-O que mais?
-De te beijar...
                        Aproximei-me dele, e aproximei-me pouco a pouco, iniciando um delicioso beijo na boca. Meu coração bateu acelerado, e o do Cauê também. Seus lábios tocavam levemente os meus, enquanto sua mão direita apoiava-se em meu peito. Naquele momento o mundo ao nosso redor se transformou. O cheiro da grama tornou-se mais forte, o som dos pássaros mais nítidos e os meus sentimentos mais claros.
                        Chacoalhando a outra mão o Cauê interrompeu o beijo exclamando:
-Ai!... Tem alguma coisa no meu braço...
-Calma... Era só uma borboleta.
-Ah... Pensei que fosse um pássaro perigoso.
-Hahaha... Não... Existe muita diferença entre eles.
-Tom...
                        Acariciando sua mão questionei:
-Eu?
-Como é uma borboleta?
                        Fui pego de surpresa com aquela pergunta. Como eu poderia descrever sobre algo para alguém que não enxergava? Encostei sua cabeça em meu peito e com toda paciência e cautela tentei explicar:
-A borboleta é um ser muito bonito. Possui muitas cores e...
-É como as flores?
-Não, é muito mais colorida... E fina como uma pétala de uma rosa.
-Nossa!... Deve ser realmente linda.
-Muito!
                        Sentando-se novamente à grama o Cauê começou a tocar meu rosto com as pontas dos dedos. Fechei meus olhos. Enquanto ele tocava parte por parte de minha face, uma sensação diferente acariciava minha alma, brotando dentro de mim uma felicidade sem explicação.
                        Esboçando um leve sorriso ele comentou:
-Como você é bonito, Tom!
-Bonito?
-Sim... Muito!
-Como você sabe?
-Um deficiente, devido ao seu problema, acaba desenvolvendo outras habilidades. No meu caso, possuo o tato, olfato e audição mais desenvolvidos.
-Que coisa curiosa! Você já nasceu assim?
-Não. Fui vítima de uma doença chamada Fibroplasia Retrolental
                        A Fibroplasia Retrolental é uma doença ocasionada pelo uso em excesso e não controlado do oxigênio em recém-nascidos. Se diagnosticada precocemente ela pode ser tratada ou evitada.
                        Acariciando seu cabelo comentei:
-Eu acho que todo ser humano seria mais feliz se estivessem essa percepção que você demonstra ter. Hoje em dia as pessoas enxergam apenas o superficial, até onde os olhos podem ver.
-Será que elas são felizes?
-Eu gostaria de ter essa sensibilidade.
-Então desenvolva.
-Como?
-Feche os olhos.
-Fechar meus olhos?
-É... Confie em mim?
-Eu confio.
                        Fechei meus olhos e permaneci sentado à grama. Pouco a pouco fui sentindo suas mãos tocarem meus ombros e deitarem meu corpo. Continuei de olhos fechados. A respiração faltava-me a medida em que minha emoção e sensação de bem estar tornava-se mais forte, intensa.
                        Tocando em minha mão ele colocou algo, dizendo em seguida:
-Pegue...
                        Curioso, questionei:
-O que é isso?
-Sinta e me diga você o que é.
-Deixa eu ver...
-Ver não... Sentir...
-Isso.
                        Logo quando o peguei nas mãos senti que era algo orgânico. Apalpei com as duas mãos e notei a textura áspera, e se desfazia ao apertar com força. Confuso, o apalpei ainda mais. Em momento nenhum eu abri os olhos. Fiz tudo da maneira que ele pediu, e confesso que foi difícil.
-Nossa!
-O quê?
-É muito difícil...
-Não é difícil, basta você sentir com o coração, tocar com a alma...
-Humpft...
-Sinta a forma, textura, cheiro...
-Já sei!
-Já?
-Sim...
-Então o que é?
-Um pinhão.
-Acertou!
                        Abri os olhos e realmente era um pinhão.
-Não entendo...
-O quê?
-Como eu consegui acertar sem muito chonhecer um pinhão.
-É simples... Todas as características dele já estavam em seu inconsciente, bastava ter contato para associá-las.
-Que legal!
-Feche os olhos.
-Outra vez?
-Sim.
-Pronto.
-Sinta o cheiro dessa leve brisa...
-Hum!...
-Ouça o cantar dos pássaros...         
                        Enquanto eu fazia o que ele pedia, diferentes sensações de percepção eu sentia. Jamais havia parado em minha vida para sentir o cheiro do vento, aliás, eu nem sabia que vento tinha cheiro, e o canto dos pássaros passavam despercebidos misturados ao barulho da cidade.
-Cauê...
-Eu?
                        Toquei levemente em seu rosto e o acariciando falei:
-Você é um cara muito especial.
-Por quê?
-Humpft... Você me faz sentir diferente...
-Diferente como?
-Não sei... Sua companhia me faz bem...
-Que bom!
-Com você eu aprendi muito, principalmente a enxergar o verdadeiro valor das coisas.
-Pare que se não vou chorar.
-Tudo bem, não quero que você chore. Posso te dar mais um beijo?
-Com toda certeza.
                        Nos abraçamos novamente, iniciando um beijo molhado e cheio de vontade. O Cauê foi o responsável por me apresentar o lado mais bonito das coisas, um mundo que eu ainda não conhecia, assim como a maior parte da humanidade.
                        Aquela tarde foi inesquecível. Cheguei em casa já estava anoitecendo. Coloquei a mochila sobre o sofá quando o telefone começou a tocar:
-Alô?
-Rustom?
-Oi mãe!
-Estou ligando a tarde inteira e ninguém atende esse telefone...
-É que eu não estava em casa, acabei de chegar.
-Aonde você foi?
-Fui conhecer o Jardim Botânico.
-Humpft... Eu preciso que você tire do freezer o bife para o jantar...
-Tudo bem.
-Nem sei se vai dar tempo de descongelar.
-Então eu vou pôr pra descongelar no microondas.
-Ta.
-Era só isso?
-Só.
-Você está bem?
-Humpft... Estou, filho.
-Ele... Está ai?
-Sim, mas não está falando comigo...
-Melhor assim.
-Preciso ir, filho...
-Então ta bom, vou tomar banho.
-Beijo.

                        Fui até meu quarto pegar uma peça de roupa e deixar minha mochila, logo em seguida entrei no banheiro para tomar banho. A sensação que eu tinha era de estar pisando em algodão, flutuando, pois meu corpo estava leve, e o sorriso ia de orelha a orelha, tamanha era a felicidade que eu estava sentindo.

Um comentário:

Anônimo disse...

Deus, obrigado por trazer o Lu de volta! Por favor, Lu, poste mais porque estou amando essa história. Muito bom poder ler um novo trabalho seu.