No outro dia acordei um
pouco mais cedo. Olhei no relógio e ainda eram seis horas. Peguei minha toalha
e fui para o banheiro tomar banho. Deixava aquela água quente massagear minha
nuca de olhos fechados, levando parte do stress embora.
Ensaboava meu cabelo quando ouvi fortes batidas à porta.
Pouco tempo depois ouvi meu pai gritando:
-Você vai demorar muito
ai, caralho?... Você está me ouvindo?
-Já estou saindo.
-Não me responde assim...
Me respeite que eu sou teu pai... Duas hora dentro desse banheiro, porra...
Eu nem sabia que ele tinha voltado, o que me deixou
surpreso. Desliguei o chuveiro e olhei que horas eram em meu relógio. Não fazia
muito tempo que eu havia entrado, pois ainda eram 6 horas e 12 minutos. Na
verdade ele queria uma desculpa para brigar comigo, e não teve caráter
suficiente para fazer sem motivos e viu naquele momento a oportunidade de criar
um pretexto.
Desde criança eu percebia em meu pai certa intolerância
com a minha pessoa, encontrando sempre um motivo para me agredir verbalmente,
mesmo sem dar motivos para isso.
Ao sair do banheiro ele continuou a falar:
-Quarenta minuto no banho, rapaz?
-Não faz nem quinze minutos que eu entrei. Você quer
um motivo para me agredir e fica com desculpas.
Nesse momento minha mãe apareceu:
-Você cala essa boca. Eu sou teu pai, você me
respeita.
Eu não havia falado nada demais, e diferente dele, minha
voz estava calma e controlada, mesmo assim ele colocou o dedo na minha cara
enquanto falava. Apreensiva, minha mãe o segurava, sem entender o motivo de
tanta ira.
-Está pensando que você é o quê? Seu bosta.
Fechei a porta do quarto chorando. Jamais esperava aquela
reação do meu pai, pois ele estava sendo injusto e covarde, por inventar uma
desculpa qualquer para dizer tudo que pensava a meu respeito.
Enquanto vestia minha roupa, conseguia ouvir seus gritos
discutindo com minha mãe:
-Você está exagerando...
Você viu como falou com seu filho?
-Foda-se... Nunca foi...
-Você está parecendo um
louco...
-Fica defendendo... Você
só defende quem não presta.
-É meu filho, claro que
vou defender.
-Você tinha que ficar do
meu lado, porque eu sou seu marido... Espera que você vai ver a recompensa que ele
vai te dar no futuro.
-Eu não espero recompensa
nenhuma, faço porque sou mãe, carreguei durante nove meses, tive dor... Não
troco meu filho por homem nenhum.
Antes de sair do quarto, coloquei meus óculos escuros
para ninguém ver que eu estava chorando. Todas aquelas palavras que ele
proferiu doeram fundo, não porque foram feias ou impróprias, mas por eu não
merecer, atravessando meu peito como uma lança.
Desde criança, nunca fui de chorar fácil, porém, naquele
dia por mais que eu segurasse, as lágrimas insistiam em descer.
Cheguei à faculdade a aula já havia começado. Sentei-me
ao lado do Cauê que logo se virou dizendo:
-Bom dia, Tom!
-Bom dia!
Sussurrando o Cauê perguntou:
-Você não está bem. O que aconteceu?
-Depois eu te conto.
-Tudo bem.
Enquanto o professor passava um texto no quadro perguntei
ao Cauê:
-Faz tempo que a aula começou?
-Não... Ele também chegou um pouco atrasado...
-Tá bom.
A aula estava um pouco chata, sorte que havia apenas duas
aulas naquele dia, sendo apenas no primeiro período. As horas pareciam não
passar, e o professor de Sociologia gostava de falar muito.
Sentando-se em sua cadeira ele disse em voz alta:
-Galera... A data de
entrega do trabalho eu vou enviar por e-mail...
Após um leve suspiro o Cauê disse:
-Tom?
-Oi?
-A Soraia pediu para entrar pro nosso grupo pra fazer
o trabalho...
-Ué... Ela está sozinha?
-Sim...
-Mas o trabalho não é em dupla?
-Pode ser em trio.
-Ah!... Por mim tudo bem.
-Depois eu falo com ela então.
Assim que o professor terminou a aula, guardei meu
fichário dentro da mochila e esperei pelo Cauê próximo à porta. Com o auxílio
de sua vareta ele caminhou em minha direção.
Esboçando um leve sorriso ele perguntou:
-Para onde vamos?
-Não sei... Você tem alguma ideia?
-Sim... Aceita almoçar comigo?
-Claro! Onde?
-Em minha casa.
-Nossa!
-O quê?
-Eu tenho vergonha...
-Vergonha de quê?
-Não estou bem vestido...
-Pra mim você está lindo!
-Isso é o que mais me fascina em você.
-O quê?
-A forma como você vê o mundo...
-Você topa almoçar comigo em minha casa?
-Não tenho como negar um pedido seu, mozinho.
Eu estava apaixonado, isso não podia negar. De todas as
paixões que eu já tive em minha vida, a que eu sentia pelo Cauê era diferente,
pois ele gostava de mim pelo que eu era e não pelo que eu aparentava ser. O que
mais me fazia apaixonar era seu jeito meigo de ser, carinhoso, atencioso.
Chegamos a sua casa e logo da calçada ouvi os latidos do
Emílio. Abrindo o portão do quintal o
Cauê falou:
-Seja bem vindo à minha casa!
-Obrigado!
Antes que ele tocasse na maçaneta sua mãe abriu a porta.
Com um sorriso estampado na face ela exclamou:
-Oi!
-Mãe... Eu trouxe o Tom
para almoçar com a gente.
-Então você que é o Tom?
-Acho que sim.
-Entrem...
-Pelo visto a senhora já
me conhece...
-Claro! O Cauê só fala em
você.
-Sério?
-Minha mãe estava morrendo
de curiosidade para conhecê-lo, de tanto que eu falo em você pra ela...
-E ele fala bem ou mal?
-Claro que falo bem.
Encostando a porta sua mãe disse:
-Sente-se, Tom... O almoço está quase pronto.
-Olha dona...
-Irene.
-Dona Irene, não quero dar trabalho...
-Não é trabalho nenhum.
Enquanto ela dirigiu-se à cozinha o Cauê falou:
-Viu só como minha mãe é legal?
-Sim...
-Eu sei que sua cabeça está confusa.
-Confusa?
-É... Pelo fato da minha mãe ser negra e eu ser
branco...
Confesso que a primeira vista fiquei confuso em saber que
sua mãe era negra, mas tudo começou a fazer sentido quando ele revelou ser
adotado. Por mais que eu negue, aquela atitude que tive foi preconceituosa, mas
não por que eu quis, mas sim por consequência de estímulos recebidos desde a
infância pelo meio social em que vivemos.
Sem graça, perguntei:
-Você tem o poder de ler
pensamentos, agora?
-Não, mas tenho o poder de
entender as pessoas que gosto.
-Eu... Bom, a primeira
vista eu estranhei sim. Desculpa falar isso.
-Não precisa se desculpar,
você não é diferente de ninguém...
-Fiquei sem graça, agora.
-Não precisa tanto. A
Irene me adotou quando eu tinha um ano de idade...
-E sua mãe verdadeira?
-Você quer dizer
biológica?
-Isso!
-Não sei... Sinceramente
não me faz um pingo de falta. A Irene me deu tudo o que eu precisava que é
amor, caráter, formação...
-Bom, melhor mudarmos de
assunto.
Nesse momento a Irene voltou à sala
dizendo:
-Meninos, a comida está na
mesa.
-Oba!
-Hum... Pelo cheiro sua
comida deve ser muito boa mesmo, dona Irene.
-Imagine.
-Minha mãe cozinha como
ninguém.
-Parem com isso vocês
dois.
Sentamos à mesa e continuamos a
conversar durante a refeição:
-A senhora trabalha com o
quê?
-Eu sou enfermeira por formação.
Segurando o copo o Cauê falou:
-Minha mãe trabalha no hospital do câncer.
-E também na emergência de um hospital público.
A comida estava maravilhosa, assim como a conversa que
estávamos tendo. Sua mãe era muito simpática, atenciosa, assim como o filho.
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