Alguns dias se passaram.
Naquela manhã de sábado, levantei cedo antes que minha mãe saísse para
trabalhar, pois precisava pegar um dinheiro com ela para fazer o trabalho de
direito. Confesso que não me sentia nem um pouco confortável com a ideia de ter
que ir fazer o trabalho na casa da Jéssica, mas já que todo mundo concordou,
não tive como não ir.
Peguei carona com a mãe da Soraia, que se ofereceu para
nos levar, pois era caminho de seu trabalho. Marcamos de nos encontrar às 13
horas em frente ao parque Trianon-Masp, na Avenida Paulista.
Cheguei lá pontualmente, e minutos depois, ouvi a buzina
do carro.
-Boa dia!
-Bom dia, Tom!
Fechando à porta traseira perguntei:
-Você recebeu meu e-mail
ontem à noite, Soraia?
-Recebi sim... Eu trouxe o
notebook, está na mochila ai atrás.
-Que bom!
-Sabe que eu não estou
muito a fim de ir até a casa da Jéssica...
-Eu também não.
Pegando à Avenida 23 de maio sua mãe perguntou:
-Por quê?
-Porque a maioria das
pessoas que estarão lá, são do mal.
-Do mal?
-É... Vivem praticando
maldade...
-Que tipo de maldade?
-Eles vivem aprontando na
faculdade, brigam na balada, e são super preconceituosos.
-Que horror! São todos da
sala?
-Todos não, poucos, mas
contaminam todo o resto... Você sabe como moleques são...
Tirando a franja do olho, completei:
-E o pior é que as meninas
também se deixam influenciar.
-Soraia, eu não quero que
você se misture com esse tipo de gente.
-Mas não estou no grupo
deles porque eu quero, o professor fez um maldito sorteio e infelizmente eu e o
Tom fomos “premiados”.
Parando o carro em uma travessa da Avenida Ibirapuera, a
mãe da Soraia falou:
-Bem... Aqui está bom pra
vocês?
-Sim.
-Bom estudo, crianças!
-Obrigado!
Descemos do carro e seguimos caminhando e conversando
pela rua da igreja até o condomínio onde a Jéssica morava:
-Tom... Estive pensando...
-O quê?
-Se a Jéssica está no meio
daquele pessoal que pratica maldade, a gente bem que poderia usar isso para
descobrir quem tentou afogar o Cauê no trote...
-Mas será que ela ficou
sabendo?
-É quase certo que sim...
-E como faremos então para
conseguir?
-Ainda não sei... Mas vou
pensar em uma maneira.
-Está bem...
Tocamos o interfone e aguardamos o porteiro liberar nossa
entrada. Enquanto isso, observávamos os empregados do condomínio lavar a escada
da portaria. Eu já estava quase desistindo e voltando para minha casa quando
chegou à permissão para que subíssemos.
Ao entrarmos no elevador, comentei com a Soraia:
-Espero que não demore
muito esse trabalho.
-Pois é... Eu só vim
porque não terá substitutiva no final do semestre.
-Você lembra qual é o
andar?
-Acho que é o oitavo.
-Certo.
Os apartamentos eram um por andar. Já no oitavo tocamos a
campainha e fomos recebidos pela Bianca, melhor amiga da Jéssica:
-Olá!
-Oi...
-Chegaram cedo...
Suspirando, respondi:
-É porque queremos ir
embora cedo.
-Então tá... A Jéssica
está no banho...
Apontando para o sofá ela falou:
-Sentem-se... Ela já deve
estar saindo.
Colocando sua mochila sobre o colo a Soraia sussurrou:
-Pelo menos a Bianca é
mais simpática.
-Embora tenho tido pouco
contato, não tenho nada contra ela.
Puxando a cadeira, a Bianca sentou-se à mesa da sala
dizendo:
-Gente... Eu trouxe a
constituição...
-Ai eu ia trazer, mas
acabei esquecendo...
-Não tem problema,
Soraia... Se precisar pode usar a que eu trouxe... Vocês já querem começar?
Olhei para a Soraia e levantamos, sentando-nos à mesa
para darmos início ao trabalho e assim podermos ir embora mais cedo. Tirando o
estojo da mochila, falei:
-Estive pesquisando na
internet sobre Direito Penal e encontrei muita coisa.
-Você trouxe?
-Gravei no meu MP5...
Estendendo à mão a Soraia disse:
-Dá ele aqui pra eu ver no
meu notebook.
-Toma.
Pegando meu estojo em sua mão a Bianca falou:
-Ai que gracinha esse
cachorrinho!
-Tenho vários... Mas não
dá pra colocar todos no estojo...
-Eu amei! Onde vende?
-Ah... Não adianta, minha
tia me deu, pois ela comprou de uma artesã bem velhinha lá em Minas...
-Ah que pena!
-Mas já que você gostou
tanto, pode ficar com ele.
-Imagina... Ele é seu...
-Pode pegar, tenho vários.
-Jura? Obrigada!
Presos ao zíper do meu estojo havia vários
pequenos cachorrinhos de madeira, dados pela tia Sandra que comprou quando foi
passar suas férias na casa de sua sogra em Belo Horizonte.
Virando a tela do computador para nós a Soraia falou:
-Gente... Está aqui...
Folheando o Código Penal, perguntei:
-Sobre o que vamos ter que
falar mesmo?
-Crime contra a vida.
Nesse momento a Jéssica apareceu na sala, com o cabelo
molhado e banhada em perfume, chegando a dar dor de cabeça.
Puxando à cadeira ao lado da Bianca ela falou:
-Desculpem a demora...
-Olha o que eu ganhei, Ka?
-O que é isso?
-Um cachorrinho... Não é
uma gracinha?
-Tira esse negócio
horroroso de perto de mim.
-Credo, Ka!
A campainha tocou. Demonstrando total repugnância quanto
ao cachorrinho, a Jéssica levantou-se da cadeira e dirigiu-se à porta. Já era
de se esperar que alguma reação pejorativa aquela garota teria, pois seu jeito
esnobe e arrogante de ser não permitiria outra atitude que não fosse
preconceituosa.
O clima ficou pior ainda com a chegada do Leandro. Não
que eu tivesse algo contra ele, pois mal nos falávamos, mas fazendo parte do
grupinho da Jéssica já me deixava desconfiado. Ao sentarem-se à mesa, demos
início ao trabalho. Enquanto selecionávamos o que iriamos incluir no editor de
texto, a Soraia já o digitava em metodologia acadêmica.
Levantando-se da cadeira a Bianca falou:
-Vou até a cozinha beber
água. Alguém quer?
Juntando umas folhas de seu fichário o Leandro respondeu:
-Eu quero.
Enquanto ela foi buscar, entreguei o Código Penal para a
Jéssica dizendo:
-Dá uma olhada nisso...
-Como você encontrou?
-Procurando.
Achando que eu havia debochado, o Leandro
começou a rir e disse:
-Hahaha... Bem feito...
-Cala a boca, Leandro...
Obrigada, Rustom...
-Desculpa, eu não falei
por mal...
-Olha aqui, Rustom... É
com grande desprazer e sacrifício que estou lhe recebendo em minha casa...
-Não se preocupe, a
recíproca é verdadeira.
-Não pense que esqueci que
por sua causa eu fiquei dois dias suspensa na faculdade...
Nesse momento a Bianca voltou à sala, colocou um copo com
água sobre a mesa e disse:
-Gente... Quando é que
teremos aula sobre Medicina Legal?
Pegando o copo da mesa o Leandro falou:
-Não faço ideia.
Tirando uma folha de seu fichário a Jéssica disse:
-Por falar em medicina...
Minha prima está cursando e disse que na aula de laboratório eles mexem em
corpos de verdade...
Rindo, o Leandro questionou:
-Você achou que fosse o
quê? Bonecos?
-Ai... Sei lá...
Colocando seus óculos a Soraia entrou na conversa:
-Minha mãe uma vez me
contou que são corpos de mendigos e indigentes.
-Que horror!
Completei:
-Mas também tem aqueles
que a família doa para estudo.
-Sim, mas são raros.
Dirigindo-se até a varanda da sala a Jéssica disse:
-Deus me livre ter que
colocar a mão em um mendigo... Arriscando a pegar uma doença...
Ajeitando-se à cadeira a Bianca falou:
-Mas os corpos ficam
banhados em formol, não tem mais como transmitirem doenças...
-Você que pensa, minha
filha... Essa gente já nasce contaminada...
Abismada, a Soraia exclamou:
-Que horror!
-A Jéssica tem razão...
Tem que exterminar essa raça... Está certo o meu irmão...
Curiosa, a Bianca perguntou:
-O que tem seu irmão?
-Vixi!... Ele odeia... Já
pôs fogo em um monte...
Levando a mão ao peito a Soraia questionou:
-Seu irmão põe fogo em
mendigo?
-Meu irmão é foda... E
quando ele bate nas puta? Nossa... Chega a dar dó...
Cruzando os braços a Bianca demonstrou sua indignação,
questionando:
-E você já participou
disso?
-Lógico...
-E ainda fala como se
fosse um esporte saudável...
-Depois te mostro as fotos
e os vídeos do mendigo pegando fogo e gritando...
-Eu não quero ver nada,
seu nojento.
Aproximando-se à mesa a Jéssica disse:
-É aquele que você me
mandou?
-Sim...
-Você também está nessa,
Ka?
-Eu não, mas ele me mandou
e eu vi... É de dar dó mesmo.
-Ei... O Cristiano foi...
-Que Cristiano?
-O do terceiro ano.
-Você já conhecia ele
antes de entrar na faculdade, Leandro?
-Ele é amigo do meu
irmão...
Rindo, a Jéssica falou:
-São tudo da mesma laia...
Jogando-lhe uma bolinha de papel o Leandro falou:
-O que você tá falando
ai?... Até parece que você fica atrás... Jogando ovo em pedestre.
Pronto, começaram a falar dos podres um do outro,
enquanto eu e a Soraia assistíamos a tudo, chocados.
-Que história é essa de
ovo, Ka?
-É que minha prima mora em
um apartamento de frente para o mar em Copacabana, e ela tem o costume de
brincar com as amigas do prédio jogando ovo nos turistas que caminham no
calçadão...
-E você acha isso
engraçado?
-Muito. Quando vou pro
Rio, passamos boa parte da madrugada brincando de acertar os carros que passam
pela avenida...
-E sua tia, não fala nada?
-Que nada, às vezes ela
até se junta a nós...
Após um suspiro, a Soraia perguntou:
-E ninguém vê vocês
fazendo isso?
-Claro que não... A gente
se esconde muito bem. Além do mais, a polícia não irá perturbar um prédio de
luxo como aquele.
Fiquei perplexo com tudo que ouvi. Eu já sabia que a
Jéssica não valia nada, mas confesso que fiquei surpreso com a confissão de
suas barbaridades, e o que era pior, agia como se aquele tipo de atividade
fizesse bem para ela, assim como o Leandro também.
Terminamos o trabalho já passava das quatro da tarde. Eu
não via a hora de sair daquela casa, pois não aguentava mais ter que suportar a
Jéssica e suas futilidades. Ao cruzarmos o portão do condomínio, a Soraia
exclamou:
-Graças a Deus!
-Nunca mais quero voltar a
esse lugar.
-Nem eu.
-Ainda bem que a estação
de metrô não está muito longe daqui.
-Metrô?
-É.
-Ah não... Vamos de
táxi...
-Nem tenho grana pra pegar
táxi.
-Sem problemas, eu pago.
-Nada disso, miguxa... Mas
se você quiser ir de táxi não tem problema...
-Eu vim com você e
voltarei com você. Vamos pegar o metrô.
-Oba!
Acredito que nada na vida acontece por acaso, e ter ido
parar na casa daquela enjoada teria mais um motivo por ajuda do destino, dando
o primeiro passo para identificar quem eram os delinquentes que tentaram afogar
o Cauê.
Nenhum comentário:
Postar um comentário