quinta-feira, 28 de julho de 2016

O QUE OLHOS NÃO VEEM - CAPITULO 11





Alguns dias se passaram. Naquela manhã de sábado, levantei cedo antes que minha mãe saísse para trabalhar, pois precisava pegar um dinheiro com ela para fazer o trabalho de direito. Confesso que não me sentia nem um pouco confortável com a ideia de ter que ir fazer o trabalho na casa da Jéssica, mas já que todo mundo concordou, não tive como não ir.
            Peguei carona com a mãe da Soraia, que se ofereceu para nos levar, pois era caminho de seu trabalho. Marcamos de nos encontrar às 13 horas em frente ao parque Trianon-Masp, na Avenida Paulista.
            Cheguei lá pontualmente, e minutos depois, ouvi a buzina do carro.
-Boa dia!
-Bom dia, Tom!
            Fechando à porta traseira perguntei:
-Você recebeu meu e-mail ontem à noite, Soraia?
-Recebi sim... Eu trouxe o notebook, está na mochila ai atrás.
-Que bom!
-Sabe que eu não estou muito a fim de ir até a casa da Jéssica...
-Eu também não.
            Pegando à Avenida 23 de maio sua mãe perguntou:
-Por quê?
-Porque a maioria das pessoas que estarão lá, são do mal.
-Do mal?
-É... Vivem praticando maldade...
-Que tipo de maldade?
-Eles vivem aprontando na faculdade, brigam na balada, e são super preconceituosos.
-Que horror! São todos da sala?
-Todos não, poucos, mas contaminam todo o resto... Você sabe como moleques são...
            Tirando a franja do olho, completei:
-E o pior é que as meninas também se deixam influenciar.
-Soraia, eu não quero que você se misture com esse tipo de gente.
-Mas não estou no grupo deles porque eu quero, o professor fez um maldito sorteio e infelizmente eu e o Tom fomos “premiados”.
            Parando o carro em uma travessa da Avenida Ibirapuera, a mãe da Soraia falou:
-Bem... Aqui está bom pra vocês?
-Sim.
-Bom estudo, crianças!
-Obrigado!
            Descemos do carro e seguimos caminhando e conversando pela rua da igreja até o condomínio onde a Jéssica morava:
-Tom... Estive pensando...
-O quê?
-Se a Jéssica está no meio daquele pessoal que pratica maldade, a gente bem que poderia usar isso para descobrir quem tentou afogar o Cauê no trote...
-Mas será que ela ficou sabendo?
-É quase certo que sim...
-E como faremos então para conseguir?
-Ainda não sei... Mas vou pensar em uma maneira.
-Está bem...
            Tocamos o interfone e aguardamos o porteiro liberar nossa entrada. Enquanto isso, observávamos os empregados do condomínio lavar a escada da portaria. Eu já estava quase desistindo e voltando para minha casa quando chegou à permissão para que subíssemos.
            Ao entrarmos no elevador, comentei com a Soraia:
-Espero que não demore muito esse trabalho.
-Pois é... Eu só vim porque não terá substitutiva no final do semestre.
-Você lembra qual é o andar?
-Acho que é o oitavo.
-Certo.
            Os apartamentos eram um por andar. Já no oitavo tocamos a campainha e fomos recebidos pela Bianca, melhor amiga da Jéssica:
-Olá!
-Oi...
-Chegaram cedo...
            Suspirando, respondi:
-É porque queremos ir embora cedo.
-Então tá... A Jéssica está no banho...
            Apontando para o sofá ela falou:
-Sentem-se... Ela já deve estar saindo.
            Colocando sua mochila sobre o colo a Soraia sussurrou:
-Pelo menos a Bianca é mais simpática.
-Embora tenho tido pouco contato, não tenho nada contra ela.
            Puxando a cadeira, a Bianca sentou-se à mesa da sala dizendo:
-Gente... Eu trouxe a constituição...
-Ai eu ia trazer, mas acabei esquecendo...
-Não tem problema, Soraia... Se precisar pode usar a que eu trouxe... Vocês já querem começar?
            Olhei para a Soraia e levantamos, sentando-nos à mesa para darmos início ao trabalho e assim podermos ir embora mais cedo. Tirando o estojo da mochila, falei:
-Estive pesquisando na internet sobre Direito Penal e encontrei muita coisa.
-Você trouxe?
-Gravei no meu MP5...
            Estendendo à mão a Soraia disse:
-Dá ele aqui pra eu ver no meu notebook.
-Toma.
            Pegando meu estojo em sua mão a Bianca falou:
-Ai que gracinha esse cachorrinho!
-Tenho vários... Mas não dá pra colocar todos no estojo...
-Eu amei! Onde vende?
-Ah... Não adianta, minha tia me deu, pois ela comprou de uma artesã bem velhinha lá em Minas...
-Ah que pena!
-Mas já que você gostou tanto, pode ficar com ele.
-Imagina... Ele é seu...
-Pode pegar, tenho vários.
-Jura? Obrigada!
            Presos ao zíper do meu estojo havia vários pequenos cachorrinhos de madeira, dados pela tia Sandra que comprou quando foi passar suas férias na casa de sua sogra em Belo Horizonte.
            Virando a tela do computador para nós a Soraia falou:
-Gente... Está aqui...
            Folheando o Código Penal, perguntei:
-Sobre o que vamos ter que falar mesmo?
-Crime contra a vida.
            Nesse momento a Jéssica apareceu na sala, com o cabelo molhado e banhada em perfume, chegando a dar dor de cabeça.
            Puxando à cadeira ao lado da Bianca ela falou:
-Desculpem a demora...
-Olha o que eu ganhei, Ka?
-O que é isso?
-Um cachorrinho... Não é uma gracinha?
-Tira esse negócio horroroso de perto de mim.
-Credo, Ka!
            A campainha tocou. Demonstrando total repugnância quanto ao cachorrinho, a Jéssica levantou-se da cadeira e dirigiu-se à porta. Já era de se esperar que alguma reação pejorativa aquela garota teria, pois seu jeito esnobe e arrogante de ser não permitiria outra atitude que não fosse preconceituosa.
            O clima ficou pior ainda com a chegada do Leandro. Não que eu tivesse algo contra ele, pois mal nos falávamos, mas fazendo parte do grupinho da Jéssica já me deixava desconfiado. Ao sentarem-se à mesa, demos início ao trabalho. Enquanto selecionávamos o que iriamos incluir no editor de texto, a Soraia já o digitava em metodologia acadêmica.
            Levantando-se da cadeira a Bianca falou:
-Vou até a cozinha beber água. Alguém quer?
            Juntando umas folhas de seu fichário o Leandro respondeu:
-Eu quero.
            Enquanto ela foi buscar, entreguei o Código Penal para a Jéssica dizendo:
-Dá uma olhada nisso...
-Como você encontrou?
-Procurando.
            Achando que eu havia debochado, o Leandro começou a rir e disse:
-Hahaha... Bem feito...
-Cala a boca, Leandro... Obrigada, Rustom...
-Desculpa, eu não falei por mal...
-Olha aqui, Rustom... É com grande desprazer e sacrifício que estou lhe recebendo em minha casa...
-Não se preocupe, a recíproca é verdadeira.
-Não pense que esqueci que por sua causa eu fiquei dois dias suspensa na faculdade...
            Nesse momento a Bianca voltou à sala, colocou um copo com água sobre a mesa e disse:
-Gente... Quando é que teremos aula sobre Medicina Legal?          
            Pegando o copo da mesa o Leandro falou:
-Não faço ideia.
            Tirando uma folha de seu fichário a Jéssica disse:
-Por falar em medicina... Minha prima está cursando e disse que na aula de laboratório eles mexem em corpos de verdade...
            Rindo, o Leandro questionou:
-Você achou que fosse o quê? Bonecos?
-Ai... Sei lá...
            Colocando seus óculos a Soraia entrou na conversa:
-Minha mãe uma vez me contou que são corpos de mendigos e indigentes.
-Que horror!
            Completei:
-Mas também tem aqueles que a família doa para estudo.
-Sim, mas são raros.
            Dirigindo-se até a varanda da sala a Jéssica disse:
-Deus me livre ter que colocar a mão em um mendigo... Arriscando a pegar uma doença...
            Ajeitando-se à cadeira a Bianca falou:
-Mas os corpos ficam banhados em formol, não tem mais como transmitirem doenças...
-Você que pensa, minha filha... Essa gente já nasce contaminada...
            Abismada, a Soraia exclamou:
-Que horror!
-A Jéssica tem razão... Tem que exterminar essa raça... Está certo o meu irmão...
            Curiosa, a Bianca perguntou:
-O que tem seu irmão?
-Vixi!... Ele odeia... Já pôs fogo em um monte...
            Levando a mão ao peito a Soraia questionou:
-Seu irmão põe fogo em mendigo?
-Meu irmão é foda... E quando ele bate nas puta? Nossa... Chega a dar dó...
            Cruzando os braços a Bianca demonstrou sua indignação, questionando:
-E você já participou disso?
-Lógico...
-E ainda fala como se fosse um esporte saudável...
-Depois te mostro as fotos e os vídeos do mendigo pegando fogo e gritando...
-Eu não quero ver nada, seu nojento.
            Aproximando-se à mesa a Jéssica disse:
-É aquele que você me mandou?
-Sim...
-Você também está nessa, Ka?
-Eu não, mas ele me mandou e eu vi... É de dar dó mesmo.
-Ei... O Cristiano foi...
-Que Cristiano?
-O do terceiro ano.
-Você já conhecia ele antes de entrar na faculdade, Leandro?
-Ele é amigo do meu irmão...
            Rindo, a Jéssica falou:
-São tudo da mesma laia...
            Jogando-lhe uma bolinha de papel o Leandro falou:
-O que você tá falando ai?... Até parece que você fica atrás... Jogando ovo em pedestre.
            Pronto, começaram a falar dos podres um do outro, enquanto eu e a Soraia assistíamos a tudo, chocados.
-Que história é essa de ovo, Ka?
-É que minha prima mora em um apartamento de frente para o mar em Copacabana, e ela tem o costume de brincar com as amigas do prédio jogando ovo nos turistas que caminham no calçadão...
-E você acha isso engraçado?
-Muito. Quando vou pro Rio, passamos boa parte da madrugada brincando de acertar os carros que passam pela avenida...
-E sua tia, não fala nada?
-Que nada, às vezes ela até se junta a nós...
            Após um suspiro, a Soraia perguntou:
-E ninguém vê vocês fazendo isso?
-Claro que não... A gente se esconde muito bem. Além do mais, a polícia não irá perturbar um prédio de luxo como aquele.
            Fiquei perplexo com tudo que ouvi. Eu já sabia que a Jéssica não valia nada, mas confesso que fiquei surpreso com a confissão de suas barbaridades, e o que era pior, agia como se aquele tipo de atividade fizesse bem para ela, assim como o Leandro também.
            Terminamos o trabalho já passava das quatro da tarde. Eu não via a hora de sair daquela casa, pois não aguentava mais ter que suportar a Jéssica e suas futilidades. Ao cruzarmos o portão do condomínio, a Soraia exclamou:
-Graças a Deus!
-Nunca mais quero voltar a esse lugar.
-Nem eu.
-Ainda bem que a estação de metrô não está muito longe daqui.
-Metrô?
-É.
-Ah não... Vamos de táxi...
-Nem tenho grana pra pegar táxi.
-Sem problemas, eu pago.
-Nada disso, miguxa... Mas se você quiser ir de táxi não tem problema...
-Eu vim com você e voltarei com você. Vamos pegar o metrô.
-Oba!

            Acredito que nada na vida acontece por acaso, e ter ido parar na casa daquela enjoada teria mais um motivo por ajuda do destino, dando o primeiro passo para identificar quem eram os delinquentes que tentaram afogar o Cauê.

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