Dois dias se passaram, e durante esse período a Soraia
não foi à faculdade. No segundo dia, ao chegar em casa fui telefonar para ela,
pois teríamos que entregar o trabalho na semana seguinte e ainda não havíamos
feito.
Liguei em seu celular, mas deu caixa postal e em sua casa
ninguém atendia. Depois de almoçar, digitei todas as informações por e-mail
e enviei para ela, pedindo que me retornasse assim que recebesse. Até o momento
em que fui dormir, não obtive nenhuma resposta, o que me deixou ainda mais
preocupado.
Antes de dormir esqueci de programar meu celular para
despertar, fazendo com que eu perdesse a hora de ir à faculdade no dia
seguinte. Durante a tarde telefonei pro Cauê para saber o que foi dado em sala
de aula.
-Alô?
-Boa tarde! O Cauê está,
dona Irene?
-Oi Rustom! O Cauê está
dormindo.
-Ah!... Eu ligo mais tarde
então.
-Rustom...
-Eu?
-Queria te agradecer pelo
que você fez.
-O que eu fiz?
-Graças a você meu filho
não foi injustiçado na faculdade...
-Não há do que me
agradecer. Eu apenas fiz valer o direito de um cidadão. Se todas as pessoas
desse país fossem unidas, jamais estaríamos passando por situações como essa.
-Eu sei... Mas o Cauê é
muito ingênuo...
-Na verdade as pessoas
abusam da deficiência que ele possui, mas isso vai ter que acabar.
-Sabendo que ele tem você
para ajudá-lo eu fico bem mais tranquila...
-Pode deixar que na minha
frente ninguém fará mal pro Cauê. Mais tarde eu volto a ligar para ele.
-Está bem.
-Tenha uma boa tarde!
-Igualmente.
Desliguei o telefone e logo em seguida liguei para a
Soraia. Após três tentativas, finalmente alguém atendeu ao telefone:
-Alô?
-Oi... Por favor, eu quero
falar com a Soraia.
-Quem gostaria?
-É o Rustom.
-Oi Rustom! Aqui é a mãe
dela...
-Tudo bem com a senhora?
-Não muito... Estou um
pouco preocupada com a Soraia...
-Por quê? Aconteceu algo?
-Não sei... Ela não sai do
quarto...
-Não sai do quarto?
-Às vezes quando chego do
trabalho a vejo chorando, mas quando questiono o que aconteceu ela se cala...
-Que estranho!
-Você não gostaria de vim
aqui e conversar com ela?
-Bem... Eu posso tentar...
-Hoje não fui trabalhar,
tamanha minha preocupação... Estou acuada, sem saber o que fazer...
-Entendo... Daqui a pouco
eu passo ai.
-Muito obrigada, Rustom!
-Por nada.
-Até mais.
A Soraia sempre dizia ser muito sozinha, pois sua mãe
sendo uma das executivas de uma grande empresa nacional do ramo alimentício,
passava a maior parte de seu tempo trabalhando, com isso a Soraia tornou-se uma
pessoa solitária e depressiva.
Cheguei em sua casa, e ao tocar a campainha fui recebido
pela sua mãe, que simpática dirigiu-se até o portão exclamando:
-Olá!
-Oi... A Soraia...
-Então você que é o Tom que a Soraia tanto fala...
-Bom... Só espero que ela fale bem de mim.
-Disso pode ter certeza.
Entrando na sala perguntei:
-Onde ela está?
-No quarto... Você sobe a escada, segunda porta à
direita.
-Tudo bem, obrigado!
-Por nada.
Atravessei a enorme sala e subi por uma longa escada de
madeira. Enquanto pisava aos degraus, um leve barulho soava, abafado pelo
tapete forrado ao centro. Sua casa era enorme, e para duas pessoas apenas
tornava-se ainda maior. Caminhando pelo corredor avistava ao final uma estátua
sobre uma pequena mesa, enquanto uma cortina de renda dançava suavemente com o
vento que entrava pela fresta de vidro.
Bati à porta e esperei que respondesse:
-Entre!
-Licença...
-Tom!
Caminhei em sua direção para dar-lhe um abraço. Pálida e
abatida, levantou-se da cama onde estava deitada para receber-me.
-Que surpresa você aqui!
-Eu vim saber como você está...
-Não estou muito bem...
Seu quarto era típico de uma patricinha. Em frente sua
cama havia uma escrivaninha com um computador portátil sobre ela. A decoração
se dividia entre branco e rosa, e o cheiro de chocolate prevalecia no ar. Pelo
que pude notar a Soraia estava longe de ter problemas financeiros, pelo
contrário, parecia ter uma vida bem confortável.
Sentando-me à beira da cama questionei:
-Mas o que aconteceu?
Chorando ela começou a explicar:
-Eu estava voltando da
faculdade, e pra chegar mais rápido em casa resolvi pegar um micro-ônibus...
-Sei...
-Quando eu fui passar na
catraca a cobradora disse pra eu descer pela porta da frente, porque se não eu
ia entalar...
-Ela falou isso?
-Sim.
-Com essas palavras?
-Foi...
-E você não anotou os
dados desse micro-ônibus?
-Na hora fiquei tão
nervosa que desci um ponto antes.
-Que absurdo!
A
renovação da frota dos ônibus que compõem o sistema de transporte coletivo
urbano de passageiros de São Paulo não só traz mais segurança e conforto aos
usuários, como também promove ganhos ambientais com a redução da emissão de
poluentes no ar. Com a conclusão da incorporação desses novos ônibus ao sistema
em 2008, o ar da Capital deixará de receber 1.500 toneladas de poluentes por
ano.
Além
de serem mais novas, maiores e mais confortáveis, as adaptações fixadas para os
novos ônibus incluem o rebaixamento do piso, aumento da largura das portas,
eliminação de obstáculos, transmissão automática, suspensão pneumática,
limitadores de velocidade e áreas reservadas para cadeirantes e cão-guia. Os micro-ônibus
(com apenas uma porta e corredor estreito) não serão mais aceitos no sistema de
transporte. "A partir de agosto, todos os veículos deverão atender os
critérios estabelecidos", informa o secretário municipal de
Transportes. (Prefeitura, 2007)
Apesar das adaptações, as catracas dos veículos
tornaram-se ainda menor, detalhe que não foi tratado nas adaptações e
reestruturação dos carros.
Ao levantar-me de sua cama, tropecei em uma caixa de
bombons cheia de embalagens vazias. Abismado, não acreditei no que vi, pois a
quantidade consumida era o equivalente à dez barras de chocolate.
-Soraia!... Você comeu
tudo isso?
-Sim...
-Mas você acha que vai
adiantar alguma coisa?
-Eu precisava... Estava
muito triste, nervosa.
-Você come quando está
ansiosa?
-Demais...
-E como é que você quer
emagrecer comendo desse jeito?
-Eu sei... Mas a vontade
de comer é mais forte do que eu...
-Desde quando você começou
a sentir essa necessidade exagerada de comer?
-Acho que desde quando
meus pais se separaram...
-E a partir de quando você
começou a engordar?
-Desde essa época.
-Você já conversou com sua
mãe sobre isso?
-Ela nunca tem tempo, sempre trabalhando... Fico muito
sozinha, me sinto vazia.
-Sei... E a forma que encontrou para suprir essa
necessidade foi a comida.
-Sim.
Confesso que quando ela falou sobre “entalar na catraca”
tive vontade de rir. Até seria cômico se não fosse trágico. Depois daquela
conversa comecei a entender o porquê de sua tristeza no olhar, a compulsão pela
comida.
Nos últimos anos, o transtorno de comer compulsivamente
vem sendo reconhecido como uma síndrome, da qual se caracteriza pela ingestão
de alimentos mesmo sem ter fome. O que a difere da bulimia nervosa é a não
tentativa de perca de peso utilizando métodos compensatórios, mesmo sofrendo
por agir daquela forma. Pessoas que comem compulsoriamente despertam
sentimentos de culpa e vergonha, além da sensação de falta de controle sobre o
ato de comer. A maioria das pessoas que sofrem dessa síndrome são obesas,
apresentando variações de peso constante, pois a comida é um refúgio para seus
problemas psicológicos.
Fiquei triste em ver minha amiga naquela situação sem
muito poder fazer. Assim como ela existem milhões de pessoas pelo mundo a fora
sofrendo pelo mesmo problema, mas sem saber como nem para quem pedir ajuda.
A obesidade é uma enfermidade que se caracteriza pelo
acúmulo excessivo de gordura corporal, associada a problemas de saúde, trazendo
prejuízos ao bem estar. Ela se desenvolve em diversas etapas, podendo ser
motivada através de herança genética, por questões socioeconômicas, ambientes
individuais ou familiares, até mesmo cultural e educativo. Com isso, uma pessoa
pode apresentar algumas características que a distinguem, principalmente na sua
saúde e nutrição.
Depois que nos despedimos, deixei seu quarto e descia a
escada quando sua mãe abordou-me:
-Tom...
-Oi!
-Você conversou com ela?
-Sim.
Sentando-se ao sofá e deixando seu computador portátil de
lado ela perguntou:
-Por favor, sente-se... O
que ela disse a você?
-Desculpe por eu falar
dessa forma, mas a senhora não está sendo uma boa mãe.
-Foi isso que ela lhe disse?
-Não... Quer dizer, não
com essas palavras.
-Como assim?
Sentando-me ao sofá respondi:
-Eu não sou psicólogo, mas
nem precisa ser profissional da área para perceber que o problema de sua filha
é carência.
-Carência? Nunca deixei
que faltasse nada à Soraia...
-Tem certeza?... Quando
foi a ultima vez que vocês duas almoçaram juntas sentadas à mesa?
Calada, baixou sua cabeça.
-A Soraia está sofrendo
muito, sentindo-se sozinha, e todos esses problemas começaram na separação...
-Refere-se a minha e do pai
dela?
-Claro.
-Eu vou conversar com
ela...
-Bem... Eu preciso ir.
-Tom, muito obrigada por
ter me contado...
Parado próximo à porta, respondi:
-Sabe por que o mundo está
cada vez mais difícil, e as pessoas, cada vez mais violentas?
-Não...
-Porque não tem quem os
ouça...
-Eu...
-Se essas pessoas tivessem
recebido o amor de pai e mãe em sua formação, fossem ouvidos, com certeza não
precisariam chamar atenção dessa forma, e o mundo seria bem menos violento.
-Você fala de uma forma
tão melancólica...
-Sofro até hoje as
consequências de ser desprezado pelo pai, e você não imagina o quanto dói uma
palavra ruim vinda de alguém que você só gostaria de ouvir coisas boas, que
pudesse confiar...
-Entendo...
-Os pais são as únicas
pessoas que os filhos confiam, e se eles não passam confiança, em que ou quem irão
acreditar? Olhe mais para sua filha... Ainda há tempo.
Levantando-se e se aproximando de mim ela
falou:
-Aquele que não enxerga o
garoto maravilhoso que você é, só pode ser uma pessoa do mal.
-Acredito que não... Não
culpo as pessoas por isso... Somente os seres especiais sabem o significado de
amar de verdade, pois o amor é um sentimento nobre, que Deus dá somente aos
merecedores.
Demos um abraço, em seguida fui embora.
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