quarta-feira, 13 de julho de 2016

O QUE OLHOS NÃO VEEM - CAPITULO 6


Dois dias se passaram, e durante esse período a Soraia não foi à faculdade. No segundo dia, ao chegar em casa fui telefonar para ela, pois teríamos que entregar o trabalho na semana seguinte e ainda não havíamos feito.
            Liguei em seu celular, mas deu caixa postal e em sua casa ninguém atendia. Depois de almoçar, digitei todas as informações por e-mail e enviei para ela, pedindo que me retornasse assim que recebesse. Até o momento em que fui dormir, não obtive nenhuma resposta, o que me deixou ainda mais preocupado.
            Antes de dormir esqueci de programar meu celular para despertar, fazendo com que eu perdesse a hora de ir à faculdade no dia seguinte. Durante a tarde telefonei pro Cauê para saber o que foi dado em sala de aula.
-Alô?
-Boa tarde! O Cauê está, dona Irene?
-Oi Rustom! O Cauê está dormindo.
-Ah!... Eu ligo mais tarde então.
-Rustom...
-Eu?
-Queria te agradecer pelo que você fez.
-O que eu fiz?
-Graças a você meu filho não foi injustiçado na faculdade...
-Não há do que me agradecer. Eu apenas fiz valer o direito de um cidadão. Se todas as pessoas desse país fossem unidas, jamais estaríamos passando por situações como essa.
-Eu sei... Mas o Cauê é muito ingênuo...
-Na verdade as pessoas abusam da deficiência que ele possui, mas isso vai ter que acabar.
-Sabendo que ele tem você para ajudá-lo eu fico bem mais tranquila...
-Pode deixar que na minha frente ninguém fará mal pro Cauê. Mais tarde eu volto a ligar para ele.
-Está bem.
-Tenha uma boa tarde!
-Igualmente.
            Desliguei o telefone e logo em seguida liguei para a Soraia. Após três tentativas, finalmente alguém atendeu ao telefone:
-Alô?
-Oi... Por favor, eu quero falar com a Soraia.
-Quem gostaria?
-É o Rustom.
-Oi Rustom! Aqui é a mãe dela...
-Tudo bem com a senhora?
-Não muito... Estou um pouco preocupada com a Soraia...
-Por quê? Aconteceu algo?
-Não sei... Ela não sai do quarto...
-Não sai do quarto?
-Às vezes quando chego do trabalho a vejo chorando, mas quando questiono o que aconteceu ela se cala...
-Que estranho!
-Você não gostaria de vim aqui e conversar com ela?
-Bem... Eu posso tentar...
-Hoje não fui trabalhar, tamanha minha preocupação... Estou acuada, sem saber o que fazer...
-Entendo... Daqui a pouco eu passo ai.
-Muito obrigada, Rustom!
-Por nada.
-Até mais.
            A Soraia sempre dizia ser muito sozinha, pois sua mãe sendo uma das executivas de uma grande empresa nacional do ramo alimentício, passava a maior parte de seu tempo trabalhando, com isso a Soraia tornou-se uma pessoa solitária e depressiva.
            Cheguei em sua casa, e ao tocar a campainha fui recebido pela sua mãe, que simpática dirigiu-se até o portão exclamando:
-Olá!
-Oi... A Soraia...
-Então você que é o Tom que a Soraia tanto fala...
-Bom... Só espero que ela fale bem de mim.
-Disso pode ter certeza.
            Entrando na sala perguntei:
-Onde ela está?
-No quarto... Você sobe a escada, segunda porta à direita.
-Tudo bem, obrigado!
-Por nada.
            Atravessei a enorme sala e subi por uma longa escada de madeira. Enquanto pisava aos degraus, um leve barulho soava, abafado pelo tapete forrado ao centro. Sua casa era enorme, e para duas pessoas apenas tornava-se ainda maior. Caminhando pelo corredor avistava ao final uma estátua sobre uma pequena mesa, enquanto uma cortina de renda dançava suavemente com o vento que entrava pela fresta de vidro.
            Bati à porta e esperei que respondesse:
-Entre!
-Licença...
-Tom!
            Caminhei em sua direção para dar-lhe um abraço. Pálida e abatida, levantou-se da cama onde estava deitada para receber-me.
-Que surpresa você aqui!
-Eu vim saber como você está...
-Não estou muito bem...
            Seu quarto era típico de uma patricinha. Em frente sua cama havia uma escrivaninha com um computador portátil sobre ela. A decoração se dividia entre branco e rosa, e o cheiro de chocolate prevalecia no ar. Pelo que pude notar a Soraia estava longe de ter problemas financeiros, pelo contrário, parecia ter uma vida bem confortável.
            Sentando-me à beira da cama questionei:
-Mas o que aconteceu?
            Chorando ela começou a explicar:
-Eu estava voltando da faculdade, e pra chegar mais rápido em casa resolvi pegar um micro-ônibus...
-Sei...
-Quando eu fui passar na catraca a cobradora disse pra eu descer pela porta da frente, porque se não eu ia entalar...
-Ela falou isso?
-Sim.
-Com essas palavras?
-Foi...
-E você não anotou os dados desse micro-ônibus?
-Na hora fiquei tão nervosa que desci um ponto antes.
-Que absurdo!

A renovação da frota dos ônibus que compõem o sistema de transporte coletivo urbano de passageiros de São Paulo não só traz mais segurança e conforto aos usuários, como também promove ganhos ambientais com a redução da emissão de poluentes no ar. Com a conclusão da incorporação desses novos ônibus ao sistema em 2008, o ar da Capital deixará de receber 1.500 toneladas de poluentes por ano.
Além de serem mais novas, maiores e mais confortáveis, as adaptações fixadas para os novos ônibus incluem o rebaixamento do piso, aumento da largura das portas, eliminação de obstáculos, transmissão automática, suspensão pneumática, limitadores de velocidade e áreas reservadas para cadeirantes e cão-guia. Os micro-ônibus (com apenas uma porta e corredor estreito) não serão mais aceitos no sistema de transporte. "A partir de agosto, todos os veículos deverão atender os critérios estabelecidos", informa o secretário municipal de Transportes.  (Prefeitura, 2007)

            Apesar das adaptações, as catracas dos veículos tornaram-se ainda menor, detalhe que não foi tratado nas adaptações e reestruturação dos carros.
            Ao levantar-me de sua cama, tropecei em uma caixa de bombons cheia de embalagens vazias. Abismado, não acreditei no que vi, pois a quantidade consumida era o equivalente à dez barras de chocolate.
-Soraia!... Você comeu tudo isso?
-Sim...
-Mas você acha que vai adiantar alguma coisa?
-Eu precisava... Estava muito triste, nervosa.
-Você come quando está ansiosa?
-Demais...
-E como é que você quer emagrecer comendo desse jeito?
-Eu sei... Mas a vontade de comer é mais forte do que eu...
-Desde quando você começou a sentir essa necessidade exagerada de comer?
-Acho que desde quando meus pais se separaram...
-E a partir de quando você começou a engordar?
-Desde essa época.
-Você já conversou com sua mãe sobre isso?
-Ela nunca tem tempo, sempre trabalhando... Fico muito sozinha, me sinto vazia.
-Sei... E a forma que encontrou para suprir essa necessidade foi a comida.
-Sim.
            Confesso que quando ela falou sobre “entalar na catraca” tive vontade de rir. Até seria cômico se não fosse trágico. Depois daquela conversa comecei a entender o porquê de sua tristeza no olhar, a compulsão pela comida.
            Nos últimos anos, o transtorno de comer compulsivamente vem sendo reconhecido como uma síndrome, da qual se caracteriza pela ingestão de alimentos mesmo sem ter fome. O que a difere da bulimia nervosa é a não tentativa de perca de peso utilizando métodos compensatórios, mesmo sofrendo por agir daquela forma. Pessoas que comem compulsoriamente despertam sentimentos de culpa e vergonha, além da sensação de falta de controle sobre o ato de comer. A maioria das pessoas que sofrem dessa síndrome são obesas, apresentando variações de peso constante, pois a comida é um refúgio para seus problemas psicológicos.
            Fiquei triste em ver minha amiga naquela situação sem muito poder fazer. Assim como ela existem milhões de pessoas pelo mundo a fora sofrendo pelo mesmo problema, mas sem saber como nem para quem pedir ajuda.
            A obesidade é uma enfermidade que se caracteriza pelo acúmulo excessivo de gordura corporal, associada a problemas de saúde, trazendo prejuízos ao bem estar. Ela se desenvolve em diversas etapas, podendo ser motivada através de herança genética, por questões socioeconômicas, ambientes individuais ou familiares, até mesmo cultural e educativo. Com isso, uma pessoa pode apresentar algumas características que a distinguem, principalmente na sua saúde e nutrição.
            Depois que nos despedimos, deixei seu quarto e descia a escada quando sua mãe abordou-me:
-Tom...
-Oi!
-Você conversou com ela?
-Sim.
            Sentando-se ao sofá e deixando seu computador portátil de lado ela perguntou:
-Por favor, sente-se... O que ela disse a você?
-Desculpe por eu falar dessa forma, mas a senhora não está sendo uma boa mãe.
-Foi isso que ela lhe disse?
-Não... Quer dizer, não com essas palavras.
-Como assim?
            Sentando-me ao sofá respondi:
-Eu não sou psicólogo, mas nem precisa ser profissional da área para perceber que o problema de sua filha é carência.
-Carência? Nunca deixei que faltasse nada à Soraia...
-Tem certeza?... Quando foi a ultima vez que vocês duas almoçaram juntas sentadas à mesa?
            Calada, baixou sua cabeça.
-A Soraia está sofrendo muito, sentindo-se sozinha, e todos esses problemas começaram na separação...
-Refere-se a minha e do pai dela?
-Claro.
-Eu vou conversar com ela...
-Bem... Eu preciso ir.
-Tom, muito obrigada por ter me contado...
            Parado próximo à porta, respondi:
-Sabe por que o mundo está cada vez mais difícil, e as pessoas, cada vez mais violentas?
-Não...
-Porque não tem quem os ouça...
-Eu...
-Se essas pessoas tivessem recebido o amor de pai e mãe em sua formação, fossem ouvidos, com certeza não precisariam chamar atenção dessa forma, e o mundo seria bem menos violento.
-Você fala de uma forma tão melancólica...
-Sofro até hoje as consequências de ser desprezado pelo pai, e você não imagina o quanto dói uma palavra ruim vinda de alguém que você só gostaria de ouvir coisas boas, que pudesse confiar...
-Entendo...
-Os pais são as únicas pessoas que os filhos confiam, e se eles não passam confiança, em que ou quem irão acreditar? Olhe mais para sua filha... Ainda há tempo.
            Levantando-se e se aproximando de mim ela falou:
-Aquele que não enxerga o garoto maravilhoso que você é, só pode ser uma pessoa do mal.
-Acredito que não... Não culpo as pessoas por isso... Somente os seres especiais sabem o significado de amar de verdade, pois o amor é um sentimento nobre, que Deus dá somente aos merecedores.

            Demos um abraço, em seguida fui embora.

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