quinta-feira, 31 de março de 2016

LIVRO: PROFISSÃO AMANTE - CAPÍTULO 23




| De volta |
  
Voltando para São Paulo, abraçado ao Leonardo eu olhava pela janela, vendo as nuvens passearem, no silêncio da minha tristeza, até assustá-lo com uma repentina coceira.
-Caraca!
-O que foi?
-Meu braço está coçando...
Puxando a manga da minha blusa, ele falou:
-Deixa eu ver...
-Ui...
-Nossa! Está bem vermelho... Não fica coçando, pode manchar!
-Eu não aguento.
-Você é alérgico?
-A quê?
-A picada de mosquito.
-Ah!... Sim, sou.
-Não fique coçando porque se não vai acabar ficando marcado.
-Tudo bem.
Pouco tempo depois o avião pousou no aeroporto de Congonhas. Caminhava em passos lentos, cabisbaixo. Minhas pernas estavam fracas, assim como meu emocional.
Descíamos à escada rolante quando o Leonardo perguntou:
-Você está com fome?
-Estou.
-Então vamos almoçar. Depois eu te deixo em casa.
-Mas tá cedo pra almoçar...
-Então a gente toma um café da manhã bem reforçado.
-Tá bom.
            Por mais que eu tentasse esquecer, o rombo em meu peito lembrava-me a todo instante a ausência de minha mãe. Perder um parente dói, machuca fundo. A saudade aperta o peito, aumenta a cada dia, sem remédio que possa nos curar.
            Cheguei em casa anestesiado, sem nada físico que eu pudesse sentir. Coloquei o cartão à porta, entrei e deixei meu celular sobre a mesa, cabisbaixo, querendo morrer. Ao caminhar em direção ao quarto, olhei para a porta da varanda e avistei a Talita sentada no sofá. Que susto! O que aquela bruxa fazia em minha casa?
            Depois de levar um susto, perguntei emputecido:
-O que você faz aqui?
-Nossa! É assim que me recebe?
-Eu deveria te receber com uma bomba, mas como eu não tenho no momento...
-Não seja ingrato!
-Sai da minha casa!
-Hahaha... Sua casa?
-Sim.
-Pois fique você sabendo que vou dar ordem de te colocarem pra fora hoje mesmo.
-Você pode tentar, quem sabe consegue.
            Levantando-se do sofá, ela falou:
-Claus... Se você desistir do nosso acordo voltará a ter aquela vidinha medíocre de antes...
-Estou pouco me importando pro futuro, Talita.
-Mas e o futuro de sua mãe? Vai deixar a coitada...
-Ela morreu! - Falei interrompendo-a.
-Mas... Como?
-Não te interessa! Aposto que você veio até aqui só pra rir da minha cara.
-Você sempre fazendo mau juízo de mim... Juro que eu não sabia!
-Não me pergunte mais nada. Respeite minha dor, se é que você saiba o que é ter sentimento.
-Calma... Não sou essa víbora que você pensa...
-Tá, tá... Agora me deixe em paz e saia da minha casa.
            Tentando envenenar-me contra o Leonardo, a Talita começou:
-Esse seu relacionamento com o Leonardo não tem futuro.
-Quem é você pra dizer o que é ou não duradouro?
-Sou a ex-mulher dele, esqueceu?
-E quais fundamentos você tem para que eu acredite em você?
-O pior cego é aquele que não quer ver.
-O quê?
            Tocando em minha mão, ela apertou dizendo:
-Querido, nós sabemos que o Leonardo não é homossexual.
-E...?
-Eu acho que ele tem uma amante.
-Amante? Como você sabe?
-Tenho minhas suspeitas.
            Afastei-me dela dizendo:
-Não acredito em você... Está querendo destruir a minha felicidade porque está com inveja... Venho aqui me envenenar, não foi?
-Que isso! Eu sou uma mulher honesta.
-Hahaha... Honesta, você? Pois pegue o dicionário pra eu rever o significado dessa palavra, pois acho que não assimilei quando aprendi na escola...
            Irritada, ela rebateu:
-Ora, garoto... Você tem cara de quem nunca foi à escola...
-Para sua informação, fiz vestibular ontem, e se Deus quiser passarei.
-Sim, vai passar no concurso de gari... Varrendo as ruas de São Paulo, comendo marmita em potes de plástico feito cachorro de pobre.
            Abri a porta expulsando-a:
-Fora da minha casa.
-Sua casa...
            Parada, ela não se movia. Caminhei até onde ela estava, peguei pelo seu braço e a carreguei até a porta dizendo:
-Sai da minha casa agora, porque eu nunca mais quero olhar pra essa sua cara, nem sentir esse seu cheiro de perfume importado circulando em meu território.
-Seu burro! Eu te dei a oportunidade de subir na vida, mas você é tão tapado que nem sabe aproveitar as oportunidades.
-Intenções como as suas, o inferno tem de monte.
-A gente até pode tirar uma pessoa da pobreza, mas nunca a pobreza da pessoa.
-Vá pro inferno! - Gritei batendo a porta.
            Se a intenção dela era me irritar, acabou conseguindo. Como poderia existir uma pessoa tão ordinária como aquela? Às vezes eu chegava a sentir pena da Talita, pela sua pobreza de espírito em achar que tudo na vida resumia-se em DINHEIRO. Pessoas gananciosas assim acabam destruindo a si mesmas, e eu acordei a tempo de não ir pro mesmo caminho.
Três dias se passaram. Durante esse tempo, não sai de casa, aliás, não coloquei o pé pra fora do quarto. Eu estava muito triste, angustiado. Todos os dias chorava olhando as fotos da minha mãe, sonhando com ela e pedindo para que viesse me buscar. Só passando pela situação para saber o quanto dói, pois é uma dor que machuca a alma como brasa que não para de queimar.
            O dia lá fora estava sol, céu limpo, e eu dentro de casa com tudo fechado. O telefone celular começou a tocar. Como ele estava na sala, tive que ir até lá atender, correndo.
Ao abrir a porta do quarto senti muito frio. Levei a mão à cabeça e reparei que estava com febre alta, provavelmente pela situação de tristeza em que eu me encontrava naquele momento. Todas as janelas estavam fechadas, sendo assim, eu não tinha outro motivo para sentir frio, pois não havia corrente de ar.
            Antes que eu atendesse, o celular parou de tocar. Levei-o para o meu quarto e deitei-me à cama novamente, cobrindo-me com dois grossos cobertores e suando como uma cachoeira. Não demorou muito e o telefone tocou novamente. Era o Leonardo.
Atendi desanimado:
-Alô?
-Oi meu moleque!
-Oi...
-Hum... Pela sua voz você parece não estar muito bem... Aconteceu algo?
-Não sei... Acho que vou pegar um resfriado.
-Por quê?
-Estou com muita febre.
-Tadinho do meu moleque! Vou sair daqui da clínica às onze horas. Quer almoçar comigo?
-Claro! Passa aqui pra me buscar?
-Por que você não vem direto?
-Não estou me sentindo muito bem para dirigir, mô.
-Tudo bem.
-Obrigado!
-Beijão!
-Te amo!
Assim que desliguei o telefone, interfonei para a recepção avisando ao recepcionista para que quando o Leonardo chegasse, deixasse-o entrar sem precisar me avisar.
Enquanto assistia TV, a campainha tocou. Ainda eram dez horas, fazendo-me achar que o Leonardo tivesse saído mais cedo.
Levantei-me e fui até a sala atender. Ao abrir à porta fiquei surpreso. Era o Emerson, que fechou à porta logo após entrar sem que eu o convidasse. Que atrevido! Sua expressão facial parecia um pouco chorosa, fazendo-me estranhar seu comportamento.
Encostando-se à ela, ele falou:
-Eu precisava te ver...
-Mas o que é isso? Você invade minha casa desse jeito como...
-Desculpa.
-Fala?
-Cara... Terminei meu noivado.
-E...?
-Como assim “E”? Fiz isso por sua causa...
-Por minha causa?
-Sim.
Afastei-me dele.
-Ei... Eu nunca pedi a você que fizesse isso.
-Sei que não, mas... Você mexeu muito comigo, Claus.
-Olha, eu não tinha a intenção de ter nada com você além de sexo.
            Percebi que ele ficou triste.
-Estou curtindo muito você, cara. Não se afaste de mim, por favor? - Falou aproximando-se de mim.
-Podemos ser amigos, então...
            Pressionando-me à parede, ele falou:
-Eu topo fazer sexo com você sem compromisso...
            Colocando a mão à frente, interrompi:
-Emerson, acho que você não entendeu. Eu estou namorando sério...
-Mas quando a gente saia você já estava namorando.
-Sim, mas naquela época eu não o amava.
-E agora, você o ama?
-Demais!
Querendo chorar, percebi que ele estava se segurando para não se debulha em lágrimas. Mas não havia mais nada que pudesse fazer. Continuar enganando o coitado eu já não podia, porque notei sua desesperada paixão, além da descoberta do amor pelo Leonardo, que me fez enxergar a vida de uma outra maneira.
Após um profundo suspiro, o Emerson perguntou:
-Posso te pedir um último abraço?
-Claro!
Dei-lhe um abraço apertado, e logo em seguida ele roubou-me um beijo.
-Desculpa!
-Eu é quem peço desculpa.
Cabisbaixo, bateu a porta. Ao mesmo tempo em que fiquei feliz, também me entristeceu o fato de tê-lo feito sofrer. Saber que existem pessoas que nos amam é muito bom, porém, apertou-me o coração não poder corresponder.
            Confesso que tive vontade de chorar. Depois de me apaixonar pelo Leonardo de verdade, tornei-me um mantegão, mais coração que razão. Virei um cara mais sensível, emocionando-me com maior facilidade. Não tinha do que reclamar. A sensação de amar alguém é inexplicável, faz um bem enorme a todos os sentidos, e melhor ainda quando somos correspondidos, assim como eu estava.
            Voltei para o quarto e fiquei assistindo um documentário sobre golfinhos no canal a cabo. Minha febre não baixava, e uma vontade de vomitar começava a incomodar-me.
            Por volta de meio dia o Leonardo chegou. Finalmente! Colocando só a cabeça à porta, ele perguntou:
-Psiu... Como é que o meu moleque está?
-Oi, Léo!... Não estou muito bem.
-Ainda passando mal?
-Sim.
-Deixa eu ver como está...
Tocando em minha testa, ele exclamou:
-Nossa! Você está muito febril.
Peguei em sua mão.
-Deite aqui comigo um pouco? - Perguntei fazendo manha.
Depois de tirar seu jaleco, ele deitou-se comigo à cama e deu-me um abraço por trás, envolvendo-me em seus braços da forma que eu mais gostava. Senti que estava no céu, abraçado por um anjo. Ficamos dez minutos deitados daquela forma, enquanto o Leonardo paparicava-me o tempo todo, beijando meu pescoço. Pra falar a verdade, ele estava me estragando.
            Teve um momento que levantei correndo e segui direto para o banheiro. Aquela não era hora de me dar diarreia. Inferno! Nem deu tempo de fechar à porta.
            Preocupado, o Leonardo foi até lá e questionou:
-Claus... O que você comeu de diferente?
-Nada...
-Muito estranho. Desde quando você está se sentindo mal?
-Começou hoje.
-Está sentindo dores musculares?
-Tô.
            Voltando ao quarto, ele abriu a porta do armário e começou a pegar uma peça de roupa minha dizendo:
-Você precisa ir para o hospital urgente.
            Fiquei assustado.
-Por quê?
-Porque tenho minhas suspeitas, mas não posso dizer com certeza. Você vai precisar fazer alguns exames.
-Exames?
-Sim.
          Pronto. Será que eu estava com algum câncer? DST? Seria um castigo divino por tanta maldade que havia cometido?
            Confesso que tive medo. Logo agora que tudo na minha vida estava dando certo, acontece uma desgraça.
Preocupado, pedi:
-Amor... Por favor, não esconda nada de mim...
-Alguma vez eu já escondi alguma coisa de você?
-Não.
-Pois é.
Fazendo-me um carinho, ele olhou em meus olhos e disse:
-Meu moleque, eu não quero te assustar. Por isso prefiro não alarmar.
-Tudo bem, eu confio em você.
            Era só o que faltava, eu estar condenado à morte. A melhor coisa a fazer era não ficar pensando besteira, e tentando não pensar em nada que permaneci o caminho todo, até o hospital.
            O bom de namorar um médico é que você tem sempre um atendimento personalizado, uma profissão onde os profissionais se respeitam muito, e os familiares melhor tratados.
            Durante todo o tempo ele ficou ao meu lado, dando-me apoio, incentivo. Pelo telefone celular o Leonardo desmarcou vários compromissos. Claro que ele não me falou nada, mas eu não era burro e percebi que a todo momento sua secretária ligava para refazer sua agenda.
            Quanto transtorno! Enquanto aguardava deitado em uma das poltronas de couro da enfermeira, o Leonardo foi até mim, abaixou-se à minha frente e falou-me com sinceridade após um profundo suspiro:
-Meu moleque, os sintomas que você apresentou podem indiciar quatro tipos de doenças...
-Que doenças?
-Dengue, malária, febre amarela...
-Ah caraca!
-Eu já suspeitava que fosse dengue ou febre amarela, porque lembrei do carocinho que você me mostrou no avião... Lembra?
-Sim. Estou condenado então.
-Não fale assim! - Disse bravo.
-Desculpe... Eu... Terei que ficar internado nesse hospital?
-Sim.
Comecei a chorar.
-Por que você está chorando? - Perguntou o Leonardo acariciando minha testa.
Peguei em sua mão.
-Não quero ficar nesse hospital sozinho...
-Psiu... Você confia em mim?
-Confio!
-Preste atenção... Eu não vou te abandonar nesse hospital, entendeu?
-Eu te amo, Leonardo!
-Também amo você.
Demos um forte abraço.
-Você vai ficar internado somente hoje, porque outros exames precisam ser feitos. Se não for nada de muito grave eu te levo pra minha casa e cuido de você.
-E eu vou ter que tomar remédio?
-Ainda não sei o que será necessário, vai depender do resultado dos exames.
            Nada em nossa vida acontece por acaso, e minha situação naquele momento era consequência das maldades que eu pratiquei, e embora eu já estivesse arrependido, ainda não era suficiente.
            A dengue é uma doença infecciosa febril transmitida pelo mosquito Aedes Aegypti, causada por um vírus da família Flaridae. Atualmente, a doença é vista como um dos principais problemas de saúde pública em todo o mundo.
            Ao todo existem quatro tipos de dengue, levando em consideração que o vírus causador dessa doença possui quatro sorotipos: DEN-1, DEN-2, DEN-3 e DEN-4. Até o momento a dengue tipo 4 só foi encontrada na Costa Rica, apresentando no Brasil os tipos 1, 2 e 3.
            Sozinho naquele quarto gelado de hospital, eu não conseguia dormir. Virava de um lado para o outro, olhando aquelas paredes opacas, sem vida ou cores. As horas não passavam. Parecia que eu estava ali há meses, anos, e não fazia nem três horas que o Leonardo havia me internado.
            Batendo à porta, a enfermeira entrou exclamando:
-Com licença!
-Entre...
-Está tudo bem?
-Sim. - Respondi após um suspiro.
-Caso você sinta algum desconforto, é só acionar a enfermagem apertando aquele botão vermelho.
-Tudo bem... Eu não estou com sono...
-Quer ver um pouco de TV?
-Não, meus olhos doem.
-Ah!
            Com toda gentileza ela cobriu-me até o peito, ligou o rádio bem baixinho, apagou a luz e deixou-me ouvindo. Pouco tempo depois adormeci.
            Falando clinicamente, a dengue pode se apresentar de quatro formas diferentes. Na Infecção Inaparente, a pessoa está infectada pelo vírus, porém, não apresenta nenhum sintoma. Nessa classificação, apenas 20% das pessoas contaminadas ficam doentes.
            A Dengue Clássica pode ser confundida com a gripe devido a semelhança dos sintomas, sendo a forma mais leve da doença. Costuma durar entre 5 e 7 dias, iniciando repentinamente. O infectado apresenta febre alta, dores de cabeça, dor muscular, cansaço, indisposição, enjoos, vômitos, manchas vermelhas na pele, dor abdominal entre outros. Os sintomas duram até uma semana, mas após esse período ainda pode sentir indisposição e cansaço.
            Caracterizada por alterações da coagulação sanguínea no infectado, a Dengue Hemorrágica é uma doença grave, podendo levar à morte se não for tratada com rapidez. Após o terceiro dia da evolução da doença, pode ocorrer hemorragias gengivais, uterinas, nasais e gastrointestinais.
Eu estava tão cansado que nem me lembro de ter sonhado, mas foi ao acordar que meu sonho começou.
Parado ao meu lado estava o Leonardo, acariciando minha face como ele costumava fazer.
-Leo! - Exclamei surpreso.
-Psiu... Continua dormindo, meu moleque.
-Não quero que você me veja assim... - Falei levando a mão ao rosto.
-Por quê?
-Não estou bem... Com cara de doente...
-Mesmo com cara de doente você continua lindo, o cara mais lindo do mundo.
            Sempre me cobrindo de elogios. Claro que eu ficava todo derretido, coisas de garoto apaixonado, mas o Leonardo era um homem magnífico, de uma espécie rara, praticamente em extinção.
            Apertando sua mão, falei:
-Assim que eu melhorar, eu... Aceito casar com você.
-Sério? - Questionou com os olhinhos brilhando.
-Sim.
-Putz, cara... Você não sabe como estou feliz...
-Eu também estou muito feliz, Leo.
            Recebi um delicioso beijo na boca, seguido de uma otimista notícia:
-Daqui a pouco você já poderá deixar o hospital.
-Ah é?!
-Sim.
-Puxa! Não vejo a hora de voltar pra minha cama... Minha vida normal.
-Mas... Tem um problema.
-Que problema?
-Você está com dengue.
-O quê?
-Calma...
-E agora? O que vai acontecer comigo?
-Você terá que repousar tomando muito cuidado...
            Maldição! Justo agora eu tinha que ser castigado? Será que a perda da minha mãe já não foi suficiente?
            Mesmo doente, aquilo não iria me abalar, pois eu era forte o suficiente pra suportar, e não seria uma doença cretina que iria me derrubar.
            No período de janeiro a julho de 2007, a Secretaria de Vigilância em Saúde do Ministério da Saúde registrou 438.949 casos de Dengue Clássica, 926 de Febre Hemorrágica e 98 óbitos.
            Para a Dengue Clássica não existe tratamento específico. Os sintomas como dores no corpo e cabeça são tratados com analgésicos e antitérmicos receitados e supervisionados pelo médico, além da recomendação de manter repouso e ingestão de bastante líquido.
            Preocupado, o Leonardo acompanhou-me até o flat. Pela primeira vez, subimos de mãos dadas, fazendo com que alguns funcionários torcessem o nariz, principalmente o Emerson, que ainda sofria por minha causa. Faltou pouco para o Leonardo me pegar no colo, tamanho era o trabalho que estava dando-me ao descermos do elevador.
            Coloquei o cartão na fechadura da porta para abri-la, e com toda vontade, o Leonardo foi empurrando-me para o interior do quarto, chupando meu pescoço e beijando minha boca, do jeito que eu gostava.
-Essa sua boca...
-Nossa, Leo... Você me deixa no limite... Pare, por favor...
-Seu cheiro amadeirado, essa pele lisinha de bebê... Tudo em você me deixa louco...
            Empurrei a porta com o pé, pois as mãos estavam muito ocupadas. Caímos ao sofá, abraçados, nos beijando de olhos fechados. Meu coração só faltava sair pela boca, batendo acelerado dentro do meu peito. Intercalamos o tesão com o romantismo, beijos lentos e molhados de amor.
            Pegando-me no colo, o Leonardo caminhou até o quarto, em passos lentos, olhando para mim com aquela carinha de cachorro abandonado. Após deitar-me à cama, acariciou minha face sussurrando:
-Eu te amo muito!
-Também amo você. - Respondi tocando em seu braço.
Sua mão em toques delicados acariciava minha pele, enquanto tirava minha roupa. Fechei meus olhos. Toquei seus cabelos, puxando-os levemente, ao mesmo tempo em que iniciamos os movimentos pélvicos. Que delícia! Aquele doutor me deixava louco.
            Nossos corpos se fundiram, tornando-se apenas um, unindo nossas almas em uma só estrela no reino dos apaixonados. Não fizemos simplesmente amor, mas sim uma promessa de união, criando um vínculo eterno dos dois corações apaixonados. Foi a noite mais linda da minha vida.
De corpos nus e abraçados, o Leonardo acariciava meu cabelo enquanto cantava nossa música:  
-"Havia um tempo, em que eu vivia um sentimento quase infantil..."
-Você gosta muito dessa música, né?
-Sim... Ela marcou minha vida, pra sempre.
-Ah é?
-Sim... Essa música é a lembrança desse conto de fadas que estamos vivendo.
-Então não me deixe. - Falei dando-lhe um abraço bem forte.
-Quero que você comece a arrumar suas malas, porque a partir de amanhã nós viveremos como um casal.
Sem que eu pudesse evitar, uma lágrima desceu do meu olho direito, enquanto corria pelas minhas veias o mais puro fluído do sentimento verdadeiro. Parecia um sonho. Naquele momento eu conheci o céu, realizando-me por completo, em todos os sentidos.
            Adormeci sem perceber e, ao acordar, o Leonardo já não estava mais ao meu lado. Levantei-me cansado, com dores pelo corpo todo. Olhei no relógio e já eram nove da manhã. Tomei um banho morno, arrumei-me rapidamente e fui até a igreja marcar a missa de sétimo dia da minha mãe.
            Mesmo utilizando óculos escuros enquanto caminhava nas ruas, meus olhos continuavam a doer com a claridade do sol que batia àquela hora da manhã. Liguei para o Leonardo logo ao parar no semáforo, mas não consegui falar com ele.
Esperava pela garota que atendia uma beata na sacristia da igreja, quando lembrei que a faculdade já deveria ter disponibilizado o resultado do vestibular. Que ansiedade! Comecei a corroer-me para saber minha colocação na lista de aprovados.
            Assim que deixei a paróquia, corri até a primeira lan house para verificar minha classificação. Enquanto aquela página não abria, um frio na barriga só aumentava, tamanho nervosismo. Aproveitei para checar meus e-mails, ou melhor, tentei, pois o servidor estava indisponível no momento.
            Quando a página do gabarito carregou, nem acreditei quando avistei meu nome em oitavo lugar na classificação. Dei um grito de alegria, chamando atenção de todos que lá estavam, deixando-me um pouco constrangido depois.
            Não me aguentando de felicidade, telefonei para o Leonardo novamente:
-Leo...
-Oi, Claus!
-Liguei pra você, mas estava dando caixa postal...
-Estava no trânsito.
-Você tá onde agora?
-Acabei de chegar na escola das crianças. Preciso falar com a diretora...
-Tá bom, depois a gente se fala então. Quero te contar uma novidade...
-Beleza.
-Beijo.
-Outro.
            Desliguei o telefone. Preocupado com o problema de sua filha, o Leonardo entrou pela secretária de óculos escuros e pose autoritária, como ele sempre teve. Parado em frente ao balcão de atendimento, questionou à recepcionista:
-Boa tarde! Eu quero falar com a diretora.
-O senhor é...?
-Leonardo Rezardi, pai da Giovana Carvalho Rezardi.
-Um momento que vou avisar que o senhor está aqui.
-Obrigado.
            Enquanto aguardava ele ficou observando os quadros históricos pendurados à parede, próximos à entrada dos professores, ao lado do mastro com a bandeira nacional. Paciente como ele era, costumava esperar por muito tempo, mas claro que dentro de um limite tolerável.
            Colocando o telefone de volta ao gancho, a recepcionista falou:
-Senhor Leonardo...
-Eu?
            Um ruído de destrava elétrica soou da porta que dava acesso ao interior do colégio.
-O senhor pode entrar e aguardar na sala aqui ao lado que a diretora já irá atendê-lo.
-Ah sim! Obrigado.
-Por nada.
            Em passos largos ele caminhou até a sala de reunião, onde a diretora já o aguardava sentada à mesa. A porta estava aberta. Exibindo um sorriso na face, o Leonardo entrou exclamando:
-Boa tarde!
-Boa tarde, senhor Leonardo! Como vai?
-Bem, mas preocupado.
-Compreendo... Sente, por favor.
-Com licença.      
-Em que posso ser útil?
-Eu estava folheando o caderno da minha filha esses dias e observei que havia um bilhete para os pais, só que eu não fui informado disso.
-Acredito que a mãe dela não tenha lhe passado... - Comentou encostando as costas ao apoio da cadeira.
-Sim, mas como foi enviado por você, achei que fosse algo com maior gravidade. Eu e a Talita não temos uma relação muito amistosa, por isso vim procurá-la.
-Tudo bem... Veja só, senhor Leonardo. Na última reunião de professores nós tivemos em pauta o comportamento dos alunos. A professora do Primeiro B ressaltou algumas alterações de comportamento de alguns alunos, mas em especial o da Giovana.
-Que tipo?
-Eu conversei com a mãe dela referente ao bilhete, e pude notar que a senhora Talita é uma pessoa difícil de conversar, embora seja uma mulher muito inteligente, estudada...
-Difícil em que sentido?
-Quando questionei o comportamento de sua filha, simplesmente respondeu que ela paga um alto valor à escola para que a Giovana seja educada. O que não é verdade. Nosso colégio não terceiriza educação. Nós vendemos conhecimento, sendo que a educação deve ser passada pelos pais.
-Concordo com você.
-Sabe, senhor Leonardo... Nós estamos vivendo no mundo inteiro um aumento da violência, não pelas pessoas desfavorecidas, mas sim no ciclo das classes mais altas. Não estou dizendo que seja seu caso, mas muitos pais estão muito preocupados com outras coisas, como manter seu padrão de vida ocupando maior tempo em seu trabalho, e deixam de acompanhar o rendimento dos filhos no colégio. Não se assuste com a atitude da sua ex esposa achando que ao pagar a escola dos filhos está educando as crianças, porque a maioria dos pais dos alunos que estudam aqui também acham, assim como ela.
-É inconcebível algo assim.
-Ninguém pode substituir o carinho e a atenção dos nossos pais.
-Concordo.
-As crianças precisam de atenção, e cobram isso demonstrando atitudes que nós, às vezes desconhecemos, mas se pararmos para pensar em qual foi nossa participação na orientação e educação deles, perdemos as contas de quantos foram os buracos que deixamos nesse caminho, e quando percebemos já é tarde demais.
-Não entendo o porquê da Giovana extravasar dessa forma. Eu e a mãe dela temos uma relação de coleguismo por conta DELES, e embora não sejamos melhores amigos, procuro não brigar nem discutir na frente deles.
-Talvez o problema esteja onde não podemos enxergar. Tente conversar com ela, mas não vá direto ao ponto para não assustá-la... Às vezes as crianças agem assim porque simplesmente querem mostrar aos pais a falta que estão fazendo na vida deles.
-Vou seguir seu conselho. - Disse o Leonardo levantando-se da cadeira.
-Espero que essa conversa tenha algum resultado, porque a Giovana é uma de nossas melhores alunas...
-Terá que haver. Agradeço pela atenção.
-Boa tarde!
            A separação dos pais afeta os filhos de várias formas. A adolescência começa mais cedo em famílias que passam pelo processo de separação. Com relação às meninas, propiciam começar a vida sexual antes do recomendável.
            Boa parte dos problemas da mãe passam a ocupar as crianças, em alguns casos também os conflitos do pai, além de desenvolverem por conta própria seus próprios conceitos de moralidade. Filhos de pais separados comprovadamente sofrem mais dificuldade de aprendizado e de depressão do que os de famílias intactas.
            A carga de responsabilidade é grande demais, e as crianças não estão preparadas para tanto. Elas pensam que se não existissem, seus pais não estariam brigando, sentindo-se culpadas pela tal situação.
            Colocando seus óculos escuros o Leonardo saiu do colégio e seguiu direto para o hospital, onde tinha plantão no final daquela tarde.
Antes de dar partida no carro, ele ligou-me preocupado:
-Conversou com a diretora? - Perguntei voltando pra casa.
-Sim...
-E ai?
-Ela disse que a Giovana está se comportando de uma maneira fora do comum.
-Nossa!... Mas o que será que está havendo?
-Não sei, mas achei estranho um comentário que ela fez.
-Que comentário?
-Eles haviam convocado uma reunião de pais de algumas crianças que estavam com problemas de comportamento...
-Mas isso é normal em toda escola.
-Eu sei, mas não com crianças que não davam tal problema.
-Bem... Nesse ponto tenho que concordar com você.
-Estou indo para o plantão do hospital. Falamo-nos amanhã...
-Só amanhã?
-Se eu conseguir um tempinho pra fazer um lanche, não esquecerei de você.
-Assim tá melhor!
-Beijo.
-Outro.
            Desliguei o telefone e deitei-me ao sofá. Com o dedo indicador à boca fiquei pensando no que o Leonardo havia dito, pois se algumas outras crianças estavam apresentando o mesmo problema, era um sinal de que algo de errado estava ocorrendo, e se fosse o que eu estava imaginando, o caso poderia ser de polícia.
            Sabendo que a Talita estava ausente naquele horário, telefonei para sua casa e falei com a Cláudia, tentando investigar o que de fato estava acontecendo.
-Oi Cláudia, é o Claus. Tudo bem?
-Ah! Tudo e você?
-Estou bem também... Você pode me fazer um favor?
-Se estiver ao meu alcance...
-É que teve umas crianças no colégio que tiveram os pais chamados pela diretora, e o Leonardo me pediu pra te ligar e perguntar se você sabe de algum outro aluno que tenha sido convocado...
-Ah sim! Tem os pais da Priscilla...
-Até a Priscilla?
-Sim... Lembro que a Gigi comentou que a mãe dela ia ao colégio terça passada pra falar com a diretora...
           Eu nem sabia quem era Priscilla, mas para parecer que estava enturmado e íntimo da situação, fingi-me de entendido, claro.
-Nossa!... O Leonardo não vai acreditar quando eu contar... Você pode me passar o telefone da mãe dela?
-O senhor espera só um momentinho? Vou pegar na agenda da Gigi o telefone da Priscilla.
-Espero.
-Obrigada.
            Enquanto a Cláudia foi procurar a agenda da Giovana, corri até o quarto, peguei um papel e caneta para anotar o telefone da sua colega.
-Olha...
-Oi.
-O telefone é...
-Pode falar...
            Anotei rapidamente e desliguei logo em seguida. Minha intuição não costumava falhar, e no fundo, no fundo, eu sabia que se falasse com a mãe da garota conseguiria alguma pista.
-Boa tarde!
-Boa tarde!
-Eu gostaria de falar com a mãe da Priscilla...
-Quem gostaria?
-Diga que é o pai da amiguinha de escola dela, da Giovana.
-Ah sim! Um momento, por favor.
-Tudo bem.             
            Após uns ruídos e som de passos, alguém pegou o telefone:
-Alô?
-Com quem falo?
-Com a Cristiane.
-Oi, aqui é o pai da Giovana, amiga do colégio da Priscilla. Tudo bem?
-Ah sim! Como vai?
-Não muito bem.
-Por quê? O que houve?
-Minha filha recebeu um bilhete convocando os pais para discutir sobre o comportamento escolar. A diretora disse que não foi somente ela que recebeu e...
-Sei... Eu me lembro de ter recebido também.
-A senhora notou algum comportamento anormal na sua filha?
-Não que eu tenha estranhado...
            Pelo que eu soube, a filha dela não era flor que se cheirasse, pra falar a verdade era uma endiabrada, talvez fosse essa a razão pela qual ela não tivesse notado a diferença na garota.
-Ah... Tudo bem então... É que achei que...
            Nesse momento ela interrompeu-me.
-Só um momento, por favor...
-Tudo bem.
            As vozes de fundo soavam gritos dizendo que a Priscilla havia jogado o cachorro na piscina, ou seja, a garota já estava despertando atitudes fora do comum para uma criança normal.
            Óbvio que eu não iria esperar que aquela louca da mãe dela voltasse. Desliguei o telefone e tentei novamente acessar meus e-mails para ver se já havia alguma resposta do professor de Educação Física, e para minha surpresa, já havia me respondido no mesmo dia em que eu havia encaminhado.

"OLÁ PRI
BJINHO PRA VC E BOM FINAL DE SEMANA!!

PIMBU"

            Safado! Embora naquele e-mail não dissesse muita coisa, notei algo que pudesse me dar uma pista, que foi a assinatura de “Pimbu”. Abri três janelas em meu navegador e comecei a fazer uma busca por várias comunidades de pedofilia, utilizando aquele apelido e o endereço de e-mail. Claro que ele não seria idiota ao ponto de cadastrar o correio eletrônico em comunidades com tal temática, mas o apelido eu consegui encontrar, depois de procurar pelas entrelinhas.
            Pedofilia é um desvio sexual, tendo o indivíduo adulto desejos e atração sexual primeiramente dirigida à crianças sexualmente imaturas. Na psicologia, a pedofilia é classificada como desordem de personalidade e mental do ser adulto, também como desvio sexual pela Organização Mundial de Saúde.
            Em inúmeros países, o ato sexual entre adultos e crianças em faixa etária abaixo da idade de consentimento é considerado crime conforme legislação, assim como o assédio sexual através da Internet à crianças, divulgar pornografia infantil ou fazer apologia também constitui crime.
            O comportamento pedófilo é mais comum no sexo masculino, embora seja praticado também por mulheres em menor proporção. Alguns sexólogos que adolescentes também podem ser qualificados como pedófilos e não somente adultos.
            Quando eu tinha nove anos de idade, lembro-me que uns rumores começaram a rolar pela cidade de que havia um tarado atacando às crianças. Certo dia, um grupo de pais se reuniram e armaram um plano para "caçá-lo", vigiando todos os dias e noites.
            Foram seis meses de busca e nada de encontrar, até que uma das crianças comentou com uma amiga o que havia acontecido, e essa amiga contou à mãe. Lembro-me que o rapaz foi linchado em praça pública, agonizando e implorando por piedade, porém, não houve tempo hábil da polícia chegar para socorrê-lo. Diante a isso, nunca mais esqueci aquela cena, e toda vez que ouço algum pai comentando sobre diferença de comportamento dos filhos, logo me vem à cabeça sua imagem caída em frente o colégio.
Há especialistas que acreditam que tal comportamento seja um tipo de orientação sexual, e não um distúrbio o ato de sentir atração por crianças, assim como sentir atração pelo mesmo sexo, pelo sexo oposto ou pelos dois. A discussão entrou em vigor com diversos especialistas que alegam que a homossexualidade, bissexualidade e heterossexualidade não estão associados normalmente com a atração sexual por crianças, sendo suficientemente diferentes dos adultos, tanto física quanto psicologicamente.

            Em 1989 houve a Convenção Internacional sobre o Direito da Criança, aprovada pela Assembleia Geral das Nações Unidas, define que os países devem adotar todas as medidas administrativas, sociais, educativas e legislativas quanto a proteção à criança, incluindo o que se refere à violência sexual.




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Dia 01/04