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A triste notícia |
No outro dia acordei cedo. Tomei um rápido banho, embora faltasse bastante
tempo para o início do exame. Sai do banheiro. Olhei no relógio e ainda eram
onze da manhã. Não sei o porquê, mas aquele dia eu não havia acordado muito
bem, uma angústia insuportável pressionava meu peito, como se eu afundasse no
mais profundo dos oceanos.
Peguei o pequeno estojo que havia comprado e segui para o local onde seria a
prova, deixando o Leonardo dormindo como um anjo.
O sol incomodava-me os
olhos, pois acordar cedo não era meu forte. Chegando ao ponto do ônibus, senti
a leve brisa da manhã, sem nenhum carro pela rua. Que raridade! Seria muito bom
se São Paulo fosse todos os dias daquela maneira.
Depender de transporte
aos domingos era um inferno. A frota costumava ser reduzida, atrasando a vida
dos que necessitam. Até que dei sorte e assim que cheguei ao ponto, ele passou.
As ruas estavam desertas, todo mundo em casa se preparando para ver o jogo na
TV. Minha vontade era também de estar em casa, tomando minha cerveja bem
gelada, comendo um salaminho com limão, orégano e vendo o jogo, mas estudar
também deveria ser um fator importante.
Ao chegar, desci em frente à faculdade. Menos mal! Ter que andar embaixo de sol
quente ninguém merece. O portão já estava aberto, e uma multidão conferia os
nomes nas listas disponíveis logo na entrada. Como o meu começava com C, não
foi difícil encontrar, pois as primeiras listas quase ninguém consultava.
Claus de
Oliveira - Sala 12 - 2º andar
Embora faltasse mais de
meia hora para o início da prova, subi pra sala e fiquei aguardando, sentado à
carteira reservada para mim. Que silêncio! Os candidatos iam chegando aos
poucos, ocupando seus lugares, nervosos e ansiosos.
Enquanto esperava,
observava o ambiente. A sala não era muito grande, carteiras bem distribuídas,
acústica favorável. O quadro negro era em formato oval, de forma que as luzes
não refletissem atrapalhando a visualização pelos alunos.
-Bom,
pessoal... Vou começar a distribuir a folha de respostas. - Disse a monitora
com várias folhas nas mãos.
Abri o estojo, separei a caneta preta e aguardei uma das folhas chegarem até
mim. Eu estava apreensivo, meio inseguro. Para ser sincero eu não botava muita
fé de que me daria bem.
-Após uma
hora e meia do início da prova, quem terminar já poderá sair. O caderno de
questões pode ficar com vocês. Devolvam somente a folha de respostas, sem
rasuras e assinada.
- Orientou a monitora.
Dentro daquela sala havia várias pessoas que, provavelmente, dedicaram o ano
inteiro aos estudos para realizar um dos vestibulares mais concorridos do país.
E eu, que mal li os livros pedidos, não estaria à altura de concorrer com doze
pessoas por apenas uma vaga.
Geralmente, quando eu fazia prova, costumava levar dois lápis. Um pra comer e
outro pra escrever, e naquele dia não poderia ser diferente. Silêncio na sala.
Nervoso, eu não parava de balançar as pernas. Ao meu lado uma menina comia
chocolate, tranquila, o que me deixou mais inseguro ainda.
A prova não estava tão difícil quanto eu pensava, e isso era o que me deixava
com medo, pois quando as questões estavam fáceis demais, eu sempre tomava pau.
As questões iniciaram com Língua Portuguesa, com um enorme texto para ser
interpretado. Ao passar o olho tive vontade de chorar, mas não era um bicho de
sete cabeças.
As horas estavam passando rápido. Olhei para a menina do canto e percebi que
ela ainda respondia às questões, enquanto eu já estava na metade da redação,
quase terminando. Apesar do tema ter sido livre, não foi muito fácil escrever
no mínimo cinquenta linhas com dez palavras pré determinadas que deveriam estar
presentes no texto.
O olhar da fiscal da sala parecia de uma águia procurando sua presa. Cabelo
preso com um rabo de cavalo, mascando chiclete de boca aberta, nem uma mosca
escapava de seu olhar.
Lá fora o sol estava de rachar. No interior da sala o silêncio chegava a
incomodar, sendo quebrado apenas pelo virar das folhas do caderno de questões.
Terminei de preencher a folha de respostas e ainda tive que aguardar dez
minutos para sair, pois terminei um pouco antes do horário mínimo de saída. Que
alívio! Não via a hora de chegar em casa e descansar um pouco, pois esforço
mensal também desgasta, e pra falar a verdade, parecia que eu havia corrido uma
maratona.
Domingo tranquilo, de sol quente. Desci pelas escadas acabado. Nunca havia
respondido tanta pergunta em toda minha vida num só dia. Cruzei o portão da
faculdade e avistei poucas pessoas à rua. Silêncio. Era possível ouvir o canto
dos pássaros provindos de uma enorme árvore à calçada. A brisa leve e fresca
trazia o cheiro de terra molhada, somada à sombra, formavam uma combinação
perfeita.
Caminhei uns passos à
frente quando avistei o carro do Leonardo. Que surpresa! Ele não havia avisado
que iria me buscar. Imediatamente expressei um sorriso que ia de orelha a
orelha.
Encostado à porta do motorista, deu um sorriso ao me ver sair:
-Leo!
-Opa...
Como foi a prova?
-Acho que
não fui muito bem.
- Falei após um longo suspiro.
-Hum...
-Eu não
esperava que você estivesse aqui.
-E você
acha que eu iria te deixar voltar sozinho?
Dando partida, ele
questionou:
-Você
parece estar preocupado. Tô certo?
-É que...
Achei que estava fácil demais a prova. Quando isso acontece... Mau sinal.
-Não
pense assim.
-Mas é
verdade. Nos tempos de escola eu sempre me fodi nessas provas fáceis demais...
Parando no semáforo, ele perguntou:
-Está
cansado?
-Um
pouco...
-Está com
fome?
-Sim.
-Então
vamos almoçar.
-Mas você
não está com as crianças em casa?
-Sim, mas
elas estão dormindo ainda...
-Nossa! E
se acordarem?
-A babá
cuida deles nesse tempo que eu não estiver, afinal, ela ganha para isso.
-Então tá.
Ao chegarmos à casa do Leonardo, já poderíamos sentir o cheiro bom de comida
logo da porta. Que fome! Desci do carro e, antes que eu pudesse dar meu
primeiro passo a frente, meu celular começou a tocar.
-Alô?
-Clau?
-Sim.
-É
Jucinéia...
-Oi,
Néia!
-Clau, a
mãe tá muito mal.
Gelei.
-O que
ela tem?
- Perguntei com o coração quase saindo pela boca.
-Ninguém
sabe ainda... Tá todo mundo preocupado...
-Ah, meu
Deus!
Vendo meu estado de
preocupação, o Leonardo perguntou aproximando-se de mim:
-O que
houve, Claus?
-Minha
mãe teve que ser internada às pressas na emergência...
-O que
ela tem?
-Ninguém
sabe.
O desespero começou a tomar conta de mim. Estava indo tudo muito bem para ser
verdade. As lágrimas desciam de meus olhos como uma torneira aberta, além do
coração disparado. Comecei a tremer. Minha cabeça já não pensava mais em nada,
apenas na minha mãe.
Preocupado, o Leonardo disse à Claudia que estava parada à porta segurando a
mão das crianças:
-Leve
eles para o quarto, Cláudia.
-Sim
senhor.
Enquanto ela levou as crianças para o interior da casa, o Leonardo se aproximou
de mim, deu-me um abraço e disse:
-Não
entre em desespero. Pergunte em que
hospital ela está?
Voltei a falar com minha irmã:
-Néia...
Em que hospital a mãe tá?
-Eu não
sei o nome...
Soluçando, falei ao
Leonardo:
-Ela não
sabe o nome.
-Em que
cidade ela está?
-Juiz de
Fora.
-Diga a
ela que depois você retorna a ligação.
-Mas
Leonardo...
-Faça o
que eu estou pedindo, confie em mim.
-Néia...
Depois eu te ligo.
-Tá bom,
tchau.
-Tchau.
Desliguei o telefone e entrei na casa amparado pelo Leonardo, que preocupado,
tentava me acalmar. Seguimos até a sala de jantar, onde a mesa já estava posta.
Puxando à cadeira, ele falou à empregada:
-Peça
para que a Claudia traga as crianças para almoçar.
-Sim
senhor.
Limpando as lágrimas eu
disse:
-Não
estou com fome...
-Mas você
vai comer... Eu vou dar um jeito de ajudar sua mãe.
-Você
promete?
-Claro.
Agora enxugue suas lágrimas e vamos almoçar com calma.
-Tudo
bem.
Com a ajuda da outra
empregada, a Cláudia colocou as crianças sentadas à mesa, que foram logo
questionando:
-Papai...
Depois eu posso comer bolo?
-Só
depois de almoçar.
-Oba!
-Claudia...
-Sim,
senhor?
-Você
aplicou a insulina na Giovana?
Sim, logo
quando ela acordou.
-Então
está bem.
Mal toquei na comida.
Meus pensamentos estavam longe, e o coração apertado. Minha mãe era a única
pessoa que eu amava de verdade, além do Leonardo. Só de pensar que algo de ruim
pudesse acontecer a ela eu já entrava em pânico.
Após o almoço fomos todos para a sala. Entregando-me um papel, o Leonardo
disse:
-Escreve
aqui o nome completo da sua mãe.
-Pra quê?
-Não faça
muitas perguntas. Confie em mim.
-Tudo
bem.
Anotei naquela folha o
nome dela conforme ele havia pedido, em seguida o Leonardo saiu da sala dizendo
que voltava logo. Enquanto as crianças brincavam com a babá ao tapete,
permaneci sentado no canto do sofá, chorando sozinho. Uma angústia apertava meu
peito enquanto o medo me fazia tremer.
Percebendo minha
tristeza, a Giovana foi perguntar:
-Você
está triste?
-Um
pouco.
-Minha
mãe disse que o papai do céu não gosta de ver ninguém triste.
-É?
-É...
Sabe o que eu faço quando estou triste?
-Não... O
quê?
Entregando-me um
pingente, ela falou:
-Eu
aperto essa pedrinha com força, ela sempre me ajuda.
-Sério?
-Sim...
Foi o papai que me deu... É minha pedra da sorte.
Seu gesto puro e inocente amoleceu meu coração. Não sei se a "pedra da
sorte" surtia algum efeito, mas aquelas alturas eu estava depositando
minhas esperanças em tudo que aparecia.
Com o olhar puro a Giovana me olhava atenta, enquanto eu segurava sua pedra e
pedia para que algo de bom acontecesse, e para minha surpresa, a noticia não
demorou a chegar.
Sorrindo, o Leonardo voltou à sala com um bilhete na mão. Entregando-me o papel
ele falou:
-Pegue...
Telefone para sua irmã e peça para que transfiram sua mãe para esse hospital.
-Tá.
-Quando
chegarem lá, mande procurarem pelo doutor Garcino, ele já está ciente do caso.
-Quem é
ele?
-Diretor
do hospital, amigo de faculdade. Acabei de falar com ele, expliquei a situação
de sua família e ele já deixou o hospital pronto para receber sua mãe.
-Nossa!
-Não se
preocupe, é o melhor hospital de Juiz de Fora... Sua mãe vai estar nas mãos dos
melhores médicos da região.
Emocionado, mal sabia
como agradecê-lo. Tentando esconder as lágrimas, dei-lhe um abraço apertado.
-Obrigado!
-Não
precisa agradecer, agora ligue logo para sua irmã.
-É
verdade!
Peguei o telefone de
sua mão e telefonei pra Jucinéia, pedindo para que ela e meus irmãos
transferissem nossa mãe de hospital. Desliguei o telefone aliviado.
Coincidência? Talvez, mas preferi acreditar na ajuda da "pedra
encantada".
Agradecido, devolvi a pedra para a Giovana, que me olhando disse:
-Muito
obrigado, Giovana.
-De
nada... Eu disse que era só pedir com o coração que ela te ajuda.
-É
verdade!
Ainda preocupado,
resolvi voltar pra casa e aguardar maiores noticias. Minha cabeça estava longe,
enquanto meu coração batia apertado, assim como o meu peito que mal permitia
respirar.
Levantei-me do sofá me
despedindo de todos:
-Estou
indo. Obrigado pelo almoço e desculpem o transtorno.
Segurando em meu braço,
o Leonardo falou:
-Espere...
Cláudia, eu vou levar o Claus até sua casa e volto logo. Cuide das crianças
para mim.
-Sim
senhor.
-Eu vou
com você até sua casa. Espere aqui que eu já venho.
-Tudo bem.
Caminhei até a porta e,
antes de abri-la, aguardei o Leonardo voltar. Apressado e com a chave do carro
na mão, tocou na maçaneta dizendo:
-Você
primeiro.
-Obrigado.
No caminho para casa
permaneci calado, com os pensamentos longe. Certamente eu estava pressentindo
algo, pois meu peito estava apertado há alguns dias, angustiado. Ao chegarmos,
o Leonardo já foi logo dizendo enquanto fechava à porta:
-Vá
separar umas roupas que vamos sair.
-Aonde?
-Vamos
para Juiz de Fora ver sua mãe. Não demore, porque até amanhã preciso estar de
volta.
Corri pro quarto e em cinco minutos já estávamos no elevador, descendo para
irmos ao aeroporto. Por dentro eu estava feliz e preocupado ao mesmo tempo.
Depois de meses, finalmente eu iria rever minha mãe, poder lhe dar um abraço,
matar a saudade. Só lamentei o fato da situação ser como aquela.
Embarcamos às cinco da tarde no aeroporto de Congonhas. Foi o horário mais
próximo que conseguimos o bilhete. O tempo inteiro fui pensando em como ela
estaria, no que eu diria. De mãos dadas ao Leonardo, deitei minha cabeça em seu
ombro e acabei adormecendo.
Acordei com seus carinhos, avisando-me que o avião estava pousando em Belo
Horizonte. Meu coração disparou. Desci daquele avião quase colocando o estomago
pra fora, tamanha ansiedade. Segurando em minha mão, o Leonardo dava-me a força
que eu precisava naquele momento.
Seguíamos para Juiz de
Fora. No caminho, o Leonardo perguntou abraçado a mim:
-Claus...
Você não quer passar em um hotel antes e descansar um pouco?
-Não...
Preciso ver minha mãe.
-Tá bom.
Assim que chegamos na cidade, seguimos direto para o hospital. Eu precisava ver
minha mãe, não queria mais perder tempo. Durante o caminho, telefonei quatro
vezes para o celular da Jucinéia, mas ninguém atendeu. Aquela infeliz deveria
estar me pirraçando, pois era bem típico dela tal atitude.
O tempo estava esquisito. Hora abria sol, intercalando com nuvens escuras e
vento frio. Sentado no banco traseiro, apoiei minha cabeça ao vidro. Cruzei os
braços. Parecia uma eternidade. Nunca chegávamos, e cada minuto que se passava
meu coração apertava cada vez mais.
Por um momento cheguei
a adormecer, apagando literalmente. Durante esse tempo, senti o toque da minha
mãe em minha face, como se ela estivesse acariciando-me. Acordei assustado,
pois foi tão real que achei ser a própria a fazer, e para confirmar, seu
perfume ficou em meu nariz.
Minutos depois,
finalmente chegamos. Desci do veículo sem que ele tivesse parado totalmente. Caminhei
em passos largos até a recepção, onde questionei qual era o quarto onde minha
mãe estava. Antes que a garota respondesse, um médico que cruzava à porta de
emergência exclamou:
-Darvi!?
-Garcino!
Cumprimentaram-se com
um aperto de mão seguido de um abraço. Em seguida, me cumprimentou também
esboçando um pequeno sorriso tímido.
Olhando pra
recepcionista, o doutor Garcino falou:
-Ele é um
familiar da paciente do quarto 26.
-Ah sim!
Enquanto os dois
conversavam, de médico pra médico, aproveitei o momento de distração e sai
pelos corredores à procura do quarto vinte e seis. Que desespero! Minhas pernas
estavam moles, e o coração só faltou sair pela boca.
Quando avistei o quarto
vinte e um, cada número que eu avançava era uma lágrima que escorria. Corredor
comprido, todo iluminado, chão brilhando. Por ali não havia ninguém circulando,
apenas uma maca parada no corredor.
Finalmente o encontrei.
Que medo! A porta estava entreaberta e, pelo que pude ver de fora, a luz do
interior estava acesa.
Empurrei-a lentamente, e ao entrar naquele leito, avistei todos meus irmãos em
volta da cama, chorando. Respirei fundo. Senti uma leve brisa tocar meu rosto.
Ao me verem, mostraram-se surpresos, pois não avisei que iria, embora eu
tivesse tentado por diversas vezes, ligando para a Jucinéia que não me atendeu.
A cama estava vazia, e os lençóis desfeitos. Naquele momento eu queria que o
chão se abrisse, levando-me para o buraco onde não houvesse existência.
-O que
está acontecendo? Cadê a mamãe? - Perguntei debulhando-me em lágrimas.
Silêncio.
-Cadê a
mamãe?
- Falei desesperado aproximando-me deles.
Parado à porta, acompanhado do doutor Garcino, o Leonardo falou:
-Claus...
Precisamos falar com você.
Gelei. Algo de errado
estava acontecendo. Todos me olharam. Aquele clima não era normal, aparelhos
desligados, todos chorosos. Senti frio, mas não era algo físico. A sensação foi
de ausência de tudo, cheiro, cor, tato. Era como se apenas meu corpo estivesse
ali, uma estátua de vidro gelada, sem sentimento, alma, vida, apenas forma.
Olhando nos olhos do
Leonardo, perguntei chorando como uma criança:
-É o que
eu tô pensando?
-Claus...
Sua mãe acabou de falecer.
O desespero tomou conta
de mim.
-Não!
Nãaaaaooooo...
Cruzei á porta daquele
quarto tomado pelo desespero. Que sensação horrível! Parecia que meu peito
estava sendo esmagado por uma parede de concreto, tamanha pressão.
“-Clau?
-Oi, mãe!
-Foi ocê
que cumeu o bolo do teu irmão?”
“-Feliz
dia das mãe!
-Brigado,
filho!”
Desci à escada da entrada principal como um louco, atravessando a rua correndo,
sem olhar para os lados. Ao chegar à praça em frente ao hospital, ajoelhei-me à
terra, desesperado, conversando comigo mesmo.
-Mãe...
Por que não me esperou antes de partir?... A senhora sabe que não sou de
chorar, e deve saber também o quanto está doendo meu coração... Onde quer que a
senhora esteja, olhe por mim, por favor! Não me abandone nesse mundo,
sozinho...
Nesse momento senti alguém tocar meu ombro. Era o Leonardo, que solidário,
abaixou-se a minha frente, e acariciando minha face, falou:
-Sei
muito bem o que você está sentindo, por isso não vou dizer aquilo que todo
mundo costuma dizer em momentos como esse, sei que não adianta...
-Está
doendo muito, Leo...
-Me
abrace.
Chorando, dei-lhe um
abraço forte, caído sobre a grama querendo me entregar à sorte. Nossa, que dor!
Tive vontade de enfiar a mão dentro do peito e arrancá-la dali.
Abraçado a mim, o
Leonardo contou-me:
-Com onze
anos de idade eu perdi meus pais em um acidente de ônibus, quando viajávamos de
férias... Depois de capotar duas vezes na chuva, algumas pessoas conseguiram
quebrar o vidro e sair... Mas meus pais não tiveram tempo. Assim que minha mãe
me ajudou, o ônibus pegou fogo. Foi horrível!... Eu vi meus pais morrerem, sem
nada que eu pudesse fazer...
Que trágico! Eu não
sabia daquele episódio de sua vida, pois ele jamais havia me contado sobre seus
pais.
-Lembro
até hoje das últimas palavras da minha mãe, dizendo: "Não se preocupe,
filho... Mamãe vai estar sempre com você, aonde quer que você esteja."
Toquei sua mão.
-Todas às
vezes que eu sinto falta deles, lembro-me das últimas palavras dela, e é isso
que me conforta.
Demos um forte abraço. Fiquei sensibilizado com a história do Leonardo. Perder
os pais dói, mas vê-los morrendo deveria ser traumatizante, nem me imaginava
passando por tal situação.
Limpando meus olhos,
ele me disse:
-Quero
que você saiba que ainda não perdeu tudo na vida, pois eu estou sempre com
você.
-Eu não
mereço você, sabia?
-Não diga
isso...
-Mas é
verdade... Eu não presto, não mereço tudo que você faz por mim.
-Pare com
isso. Vem comigo que vou te levar para um hotel, pra que descanse um pouco.
-Prefiro
ir pra casa da minha mãe...
-E ficar
sendo bombardeado de recordações que te deixarão pior do que já está?
-Humpft...
-Você não
precisa sofrer ainda mais. Vamos que eu te acompanho até o hotel e depois volto
para ajudar no processo burocrático...
-Tá bom.
A vida estava me
testando. Todas aquelas maldades que eu havia praticado, cedo ou tarde
voltariam. Sei que eu não merecia tudo aquilo que o Leonardo estava fazendo por
mim, mas eu realmente mudei, e era a primeira vez que eu amava alguém de
verdade, sentimento esse que jamais iria querer perder.
Dormi e nem vi as horas passarem, efeito do calmante que o Leonardo havia me
dado antes de irmos para o hotel. Acordei por volta das seis da manhã do outro
dia. As ruas ainda estavam escuras, e o alto das casas quase nem se via,
escondendo-se atrás da neblina.
Eu estava sozinho,
deitado naquela enorme cama, em meio a um silêncio que me doíam os ouvidos.
Acendi o abajur ao lado em que eu estava. Peguei o telefone e liguei para minha
irmã Jucinéia, pois era a única que falava comigo dentre meus irmãos.
-Alô!
-Néia?
-Oi,
Clau.
-Você tá
onde?
-Ainda no
hospital...
-Bem,
eu...
-Clau,
como vai fazer com as despesas? - Questionou interrompendo-me.
-Que
despesas?
- Perguntei confuso.
-Do
funeral.
-Veja ao
todo quanto ficou, assim a gente divide entre os irmãos.
-Sinto
muito, mas ninguém tem dinheiro.
-O que
vocês querem dizer com isso?
-Não sei
como vai fazer agora.
Inconformado,
desabafei:
-Escute
aqui... Vocês são muito folgados, sabia?
-Sua
situação está muito melhor que a nossa, Claus. - Elevando sua voz comigo.
-O que
vocês sabem sobre minha vida? Nada! Eu não tenho dinheiro para bancar tudo
sozinho. Isso não é justo, a mãe não é só minha.
Desliguei o telefone nervoso. Abri à cortina e o sol já começava a sair. As
lágrimas desceram, sem que eu pudesse controlar. Sentei-me à cama e comecei
respirar fundo, com a cabeça inclinada para o chão, quando o Leonardo chegou:
-Já
acordou?
Fiquei calado.
-Claus...
Aconteceu alguma coisa?
-Só um
pouco indignado.
-O que
houve?
-Falei
com a minha irmã agora... Acredita que eles querem que eu arque com todas as
despesas do funeral? Como se eu fosse milionário!... Eu não tenho dinheiro nem
pra pagar a conta desse hotel!
Abraçando-me, ele
beijou minha testa dizendo:
-Não se preocupe,
isso já foi resolvido.
-Eles são
muito folgados...
-Calma...
Você já está abalado demais para se preocupar com esses detalhes.
-Você
estava onde?
-Estava
tratando dessa questão. Você não precisa se preocupar com mais nada. Já comprei
tudo que precisava.
-Como
assim?
-Já
providenciei urna, flores...
-Urna?
Comecei a chorar. Só de pensar que nunca mais veria minha mãe, fiquei
desesperado.
Dei-lhe um abraço
dizendo:
-Você é o
melhor homem do mundo!
-Pare com
isso... Agora eu vou tomar banho, em seguida eu vou te acompanhar até o
velório, te deixo lá e sigo para o aeroporto de volta pra São Paulo.
-Eu não
vou.
-Como?
-Eu não
vou ao velório... Não quero ver minha mãe dentro de um caixão, dura feito uma
pedra. Prefiro ter como última recordação o sorriso que ela me deu quando a vi
pela última vez.
Recebi um abraço.
-Vem
tomar banho comigo, então.
-Vamos.
O Leonardo era o anjo
que Deus colocou em minha vida. Se não fosse por ele, minha mãe estaria perdida
em alguma geladeira de IML, esperando para ser enterrada em qualquer lençol que
acolhesse seu corpo, porque meus irmãos estavam pouco se importando com seu
destino.
Após o banho, telefonei novamente para minha irmã.
-Alô?
-Jucinéia,
é o Claus.
-Clau!...
A gente já tá aqui no velório... Que horas você vem?
-Eu
liguei justamente para isso. Eu não vou ao velório.
-Que
horror! Ela é nossa mãe, que falta de consideração da sua parte.
-O
quê?... Falta de consideração tem vocês que nem se quer tem a dignidade de
correr atrás do procedimento da própria mãe.
-Não é
bem assim...
-E ainda
jogam pra cima de mim toda a responsabilidade, cobrando-me com esse
descaramento todo? Vergonha na cara, isso é o que falta pra vocês.
-Você me
ligou pra me ofender?
-Ofendido
estou eu que nem com os irmãos posso contar.
-Então
você não vem no velório?
-Não.
Essa não é a última imagem que eu quero ter da mamãe. Embarco hoje mesmo de
volta pra São Paulo.
-Você
quem sabe.
-Quero te
pedir um favor.
-Qual?
-Aliás,
dois.
-Qual?
-Quando
forem guardar as coisas da mamãe, quero que separe para mim aquela pulseirinha
de pedra que ela não tirava por nada.
-Mas que
pulseirinha?
-Aquela
de Nossa Senhora que eu dei pra ela quando estava na terceira série.
-Tá bom.
E qual era a outra coisa?
-Ah!
Quero que vocês nunca mais me procurem.
-Você
está se excluindo da família?
-Vocês já
me excluíram há muito tempo.
Desliguei o telefone e
enterrei definitivamente meu passado. Por fora eu parecia forte, mas por
dentro, um vale de lágrimas. Confesso que me senti aliviado pelo desabafo,
tirando aquela gente folgada das minhas costas. Mas o lado ruim era a solidão,
porque não teria mais ninguém, restando eu por eu mesmo.
Próximo capítulo: |
De volta |
Dia 31/03
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