| O encontro forjado |
Eu sempre fui um cara
preguiçoso, não gostava de acordar cedo, querendo só vida boa. Algumas
adaptações eu teria que fazer em minha rotina, e uma delas seria encurtar o
sono.
Depois de ler o pequeno
dossiê sobre o Leonardo feito pela Talita, resolvi iniciar uma aproximação da
maneira mais sutil possível, e sabendo que ele corria pelo Parque do Ibirapuera
todos os dias, parti pra batalha.
A manhã ainda estava
escura. Puxei a cortina, olhei pela janela do quarto e o trânsito já começava a
se formar, e com ele o stress de toda
metrópole. Cidade grande funciona vinte e quatro horas sem parar, e pessoas de
cidades não tão grandes como eu, causa um estranhamento no início, mas nada
como o tempo para ajudar a acostumar.
Vestindo uma roupa
leve, segui até o parque do Ibirapuera caminhando, em passos largos pelas
calçadas da Avenida Brigadeiro Luís Antônio.
Como eu nunca havia
estado lá, acabei me perdendo naquele enorme parque. Distraído, quase fui
atropelado por uma bicicleta ao andar pela ciclovia, e em meio aquele monte de
árvores gigantescas, resolvi aguardar um pouco deitado sobre a grama gelada,
próximo ao lago da fonte luminosa.
Tirei a foto do
Leonardo do bolso traseiro da calça para familiarizar-me com sua aparência
física, e tendo traços marcantes conforme mostraram as fotos, não seria difícil
reconhece-lo se nos cruzássemos por ai.
Enquanto aguardava por
algum sinal dele, observava o movimento das pessoas que por ali se exercitavam.
Difícil era ver alguém feio, pois os que passavam por mim, além de pessoas
bonitas, aparentavam dispor de uma boa situação financeira.
Paquerar no Parque do
Ibirapuera deveria ser tudo de bom. Claro que, tendo o conhecimento de seu
público frequentador, não me custaria nada dar o ar de minha graça mais vezes
naquele lugar, e quem sabe encontrar alguém disposto a me bancar
permanentemente.
Depois de quase
quarenta minutos no aguardo, eis que observo alguém parecido com as
características físicas do Leonardo. Fingindo estar exercitando-me, entrei na
pista e aos poucos me aproximei para vê-lo mais de perto, e assim certificar-me
de que realmente era ele.
Vestindo um calção
vermelho, o rapaz corria sem camisa, com um cinto cruzando o peito, que
provavelmente seria um medidor de batimentos cardíacos. De tempo em tempo notei
que o rapaz olhava em seu relógio no pulso esquerdo, preocupado com o tempo
talvez.
Ao perceber que ele
havia parado para refrescar-se no pulverizador de água, discretamente
aproximei-me, puxando assunto logo em seguida:
-Calor
uma hora dessa... Ninguém merece!
-Pois
é... Essa cidade está cada vez mais quente.
-Melhor,
porque eu adoro calor.
-Eu não
gosto muito, prefiro o inverno.
Levei logo uma cortada.
Mesmo ele não me dando muita atenção, não desisti.
-Agora é
melhor eu descansar um pouco... Sempre quando me exercito sinto uma dor aqui...
- Falei levando a mão à barriga do lado direito.
-Provavelmente
você esteja respirando errado. - Respondeu dando um gole na água de seu squeeze.
-Será?
-Sim...
Procure respirar pelo nariz e soltar pela boca.
-Vai
melhorar?
-Aos
poucos vai passando, você nem perceberá.
-Que
bacana!
-Bem,
agora preciso ir.
-Beleza.
-Bom
treino pra você.
-Pra ti
também.
Colocando seus óculos
escuros de volta ao rosto, retornou a pista e deu continuidade em seu
exercício, enquanto permaneci lá, com cara de tacho pensando que o Leonardo me
daria bola, e acabei caindo do cavalo.
Voltei para o flat e logo telefonei para a Talita,
informando-a sobre minha ideia idiota de abordá-lo daquela maneira, além do
fracasso da primeira tentativa.
-Talita?
-Oi.
-Estive
com o Leonardo hoje.
-Como foi
isso?!
-Acordei
cedo e fui assistir seus exercícios no parque.
-E você
conseguiu encontrá-lo com facilidade?
-Não, e
por pouco não fui atropelado por uma bicicleta.
-Hahaha...
Que ridículo!
-Seu
ex-marido é muito chato.
-Você
achou?
-Acredita
que ele nem me deu atenção?
-O
Leonardo é uma pessoa muito difícil. Você terá que ser insistente e paciente.
Dobrando a perna sentado ao sofá, respondi:
-Bem...
Pelo dinheiro que você está me pagando, vale a pena.
-Comunique-me
quando tiver mais novidades.
-Tudo
bem.
-Até
mais.
-Até.
Desliguei o telefone e
fui dormir um pouco, pois havia acordado muito cedo e como não estava
acostumado, acabei ficando bêbado de sono.
Dois dias se passaram.
Nesse período só desfrutei do conforto que me cercava, tremendo golpe de sorte.
Esparramado sobre aquela enorme cama, nu em pelos, dormia profundamente após
passar uma noite na balada, até ser acordado com o toque do telefone:
-Alô?
-Claus?
-Sim.
-É a
Talita.
-Bom dia!
-Bom dia.
Hoje você vai viajar.
-Eu?
-Sim. O
Leonardo vai para um congresso de medicina no Rio de Janeiro, e você vai com
ele.
-Está
bem. Mas como?
-Não me
faça perguntas... Arrume suas malas que daqui a pouco estarei ai.
-Está
bem.
-Até
mais.
Desliguei o telefone e
corri para arrumar minha mala. Fui pego de surpresa. Claro que a novidade
deixou-me contente, pois eu nunca havia estado no Rio, e poder viajar as custas
dos outros era bom demais.
Em menos de uma hora o
recepcionista interfonou avisando que a Talita aguardava-me na recepção. Nossa!
Como ela era rápida! Antes de deixar o apartamento, fechei as janelas,
desliguei o ar condicionado e sai.
O relógio do elevador
marcava 10h20. Para meu agrado desci sozinho, porque clima de elevador é muito
chato. Todo mundo fica parado, tentando esconder seus problemas aparentes,
fazendo cara de paisagem como se a vida fosse perfeita.
Ao chegar à recepção,
avistei a Talita sentada ao sofá, de óculos escuros e pernas cruzadas. Vestindo
uma calça preta e uma blusa azul, levantou-se de onde estava e deu sua fatal
jogada de cabelo.
Aproximei-me dela
dizendo:
-Vamos?
-Sim. - Respondeu caminhando
até mim.
Entramos em seu carro,
e no caminho do aeroporto ela foi explicando-me parte de seu plano, ideias
mirabolantes:
-O voo de
vocês está marcado para as 11h45.
-Vai eu e
seu ex no mesmo voo?
-Sim...
Um ao lado do outro, se possível.
-Nossa!...
Mas você é maquiavélica... Como conseguiu todas as informações?
-Não se
esqueça que ele é pai dos meus filhos.
-Entendi.
-Bom,
agora o resto é com você, já fiz minha parte.
-Deixa
comigo.
-Ah!...
Reservei um quarto para você no mesmo hotel que o Leonardo ficará.
-Belezaaaa...
-Ele não
deu certeza se volta ainda hoje, mas independente disso você saberá se sair
bem. Espero.
-Pode
apostar.
Chegamos ao aeroporto e
já era possível notar uma certa confusão. Ainda dentro do carro, a Talita
comentou:
-Ele já
deve estar chegando. Preciso sair logo aqui...
Abrindo à porta do
veículo, falei:
-Quando
eu chegar lá, te ligo e conto tudo que rolou.
-Boa
sorte!
-Valeu.
Caminhei até o balcão
da companhia aérea para checar informações sobre o voo, e fui informado de que
iria atrasar. O aeroporto estava lotado. Muitas pessoas já cansadas de esperar
deitaram sobre suas malas, chorando, estressadas. Havia voos com até vinte
horas de atraso, um absurdo.
-“Eu não
quero saber, vocês pensam que a gente é palhaço? Eu vou quebrar tudo isso
aqui...”
- Gritava uma mulher que aguardava há horas para embarcar.
A crise aérea no Brasil deu início no final do mês de outubro de 2006, quando
controladores de voos começaram protestos contra o afastamento de colegas para
que fossem efetuadas investigações sobre o acidente envolvendo o boing da Gol, ocasionando a morte de
mais de 150 pessoas sobre a selva amazônica. Desde então, a situação dos
aeroportos brasileiros tornou-se um caos, piorando ainda mais no feriado do dia
2 de novembro daquele mesmo ano.
No mês seguinte, mais precisamente em cinco de dezembro, o Brasil se deparou
com a maior pane aérea na história do país, ocasionada por uma falha em um
equipamento, impedindo a comunicação entre as aeronaves e o centro de controle
de Brasília.
-Por
favor, tem alguma ideia de quando o voo de... - Perguntei com a mochila nas
costas.
-Sinto
muito senhor, mas todos os voos estão sem previsão de partida até o momento.
Sem informação e
previsão para embarcar, fiquei aguardando próximo às pessoas que aparentemente
viajariam no mesmo voo que eu. Os painéis que indicavam os embarques estavam
praticamente congelados, todos atrasados. Cada minuto que passava o saguão
ficava mais cheio, deixando todos irritados.
Desde o início da crise, o governo tentou minimizar o problema convocando mais
controladores, além de negociar com a categoria. Enquanto efetuava as negociações,
o ministro da Defesa, Waldir Pires, assumiu desmilitarizar o setor, que até
então era controlado por militares da Aeronáutica. Uma das reivindicações dos
profissionais era a péssima condição de trabalho, além da pressão, salários,
escalas de folgas.
Minhas pernas já
começavam a doer quando avistei o Leonardo aproximando-se do balcão da
companhia. Usando um boné com a aba virada para trás e uma camiseta colada,
trazia em sua mão direita uma maleta de computador portátil, enquanto a
esquerda puxava sua mala com rodas tamanho médio.
Quase uma hora depois
os voos começaram a operar, porém, ainda estava longe de nós embarcarmos.
Distraído, o Leonardo soltou sua mala enquanto falava ao celular, dando brecha
para que eu agisse. Aproveitando o tumulto, discretamente peguei-a e me afastei
por alguns metros. De longe fiquei observando sua reação, que ao desligar o
celular olhava de um lado para o outro procurando.
Aproximei-me dele, e
com um leve sorriso falei:
-Oi...
Essa mala que ocê procura?
-É!
Fazendo uma engraçada careta, comentou:
-Eu acho
que te conheço de algum lugar...
-Do
parque. Lembra?
-Ah,
é!... O que minha mala está fazendo com você?
-Desculpa,
mas você tava distraído e percebi que havia uma pessoa de olho nela, então
resolvi guardá-la...
-Muito
obrigado!
-De
nada...
Vendo que ele não me
daria muita atenção, resolvi puxar assunto:
-Que
coincidência você aqui!...
-Essa
cidade é mesmo pequena. - Falou com um tom irônico.
-Hahaha...
Sem gozação, vai.
-Tá indo
aonde?
-Rio e
você?
-Também,
mas estou quase desistindo.
-Entendo...
Com essa confusão toda...
Nesse momento ouvimos uma gritaria, seguida de uma movimentação no balcão da
Companhia ao lado. Revoltada com a situação, uma passageira resolveu agredir
uma funcionária do check-in, como se
ela tivesse a culpa dos atrasos e bloqueio temporário do espaço aéreo nacional.
-Eu não
quero saber...
-Senhora,
por favor, tente se acalmar.
-Tá
pensando que sou idiota? - Gritava como uma louca, segurando um bebê de colo que
esperneava tanto quanto ela.
-A
senhora não tem o direito de gritar comigo. Eu estou fazendo o que posso para
lhe ajudar...
- Respondeu a funcionária já entrando em desespero.
Fazendo-se de vítima, a mulher sentou-se no chão e começou a gritar para todos
ouvir, acusando a recepcionista de agressão. Vendo a cena, seu marido
indignou-se com a atitude da funcionária de responder à sua esposa, porém,
deveria ter tapado os olhos quando ela tentou agredi-la para mostrar quem
mandava mais.
Apertando os olhos, o Leonardo dirigiu-se até lá me dizendo:
-Dá um
tempo ai que já venho... Cuide das minhas coisas, por favor.
-Tá!
Tomando as dores, ele caminhou até o casal e falou para o rapaz:
-Todos
nós estamos indignados com a situação em que se encontra aqui, porém, isso não
nos dá o direito de agredir os funcionários como sua esposa fez...
Subindo sobre a esteira da Companhia, ele continuou:
-É
agredindo os outros que se pede ordem? Vocês acham que a nossa imagem perante o
mundo, quebrando um aeroporto e batendo em funcionários, vai nos beneficiar em
algo?
Todos pararam para ouvi-lo.
-Assim
como nós, esses funcionários são vítimas do nosso sistema... E o que cada um de
vocês está fazendo para que isso mude... Colocando a culpa no outro? E se não
estivessem aqui, sentindo na pele, estariam brigando pelo problema que não
afeta você? A gente não muda um país sozinho, todos nós constituímos o Brasil,
e ao invés de ficar jogando a culpa no outro, vamos assumir nossa omissão e
cobrar providências do governo. Deixem o posto de vítimas e assumam o papel de
consumidores exigentes.
Descendo de onde estava, olhou para a “louca” e falou:
-Apontar
a culpa no outro é muito fácil. Difícil é enxergar e assumir nossos erros.
Calada, ela apenas o olhou. Após um profundo suspiro, ele caminhou até mim,
pegou suas malas e disse:
-Obrigado
por cuidar...
-Você...
Falou bonito.
- Comentei admirando suas palavras.
-Apenas
falei o que eles precisavam ouvir. - Desabafou.
-Acho que
ainda vai demorar um pouco para nosso voo sair... Quer me acompanhar num café?
Olhando ao relógio, respondeu:
-Tudo
bem, quem sabe me acalmo mais.
Enquanto caminhávamos em direção à cafeteria, avistei através do vidro no hall das escadas que lá fora chovia
demais. Assim que percebeu, o Leonardo exclamou:
-Nossa!
-Tô
ferrado...
-Mais um
motivo pro aeroporto fechar.
Não demorou muito para o anúncio soar informando que a pista seria fechada
devido às más condições de tempo.
-Acho que
vou embora.
- Disse o Leonardo.
Fazendo-me de coitado, comentei:
-Pior é
que eu não posso sair daqui, porque não trouxe grana para pegar um táxi...
-Você
mora onde?
-Eu moro
no Itaim Bibi.
-É aqui
pertinho.
-Não tão
perto.
-Bom...
Meu carro está aqui no estacionamento do aeroporto. Se você quiser, eu posso te
dar uma carona...
-Não vou
te atrapalhar?
- Perguntei esboçando um sorriso na face.
-É
caminho, estou indo para Moema.
-Se for
assim, tudo bem.
Pegamos nossas malas e seguimos
para o estacionamento, onde seu carro estava guardado. Até que dessa vez o
Leonardo foi mais simpático, diferente do dia no Parque do Ibirapuera, onde
quase levei um coice daquele mal humorado.
-Acho que
a gente não se apresentou ainda...
-É verdade!
Meu nome é Claus, e o seu?
-O meu é
Leonardo.
-Prazer,
Leonardo!
-Prazer!
-Você
trabalha com o que, Leonardo?
-Sou
médico. E você?
-Eu?
-É...
-Bem...
Eu... Eu trabalho com informática...
-Que
bacana!
Pouco a pouco o
Leonardo foi permitindo que eu me aproximasse cada vez mais de sua pessoa,
interagindo com minhas perguntas e até rindo de algumas piadas que fiz durante
o caminho. Se tudo continuasse como estava, o plano da Talita tinha tudo pra
dar certo.
Ligando o limpador do para-brisa,
ele perguntou:
-Entro na
próxima rua?
-Sim, à
esquerda.
-Caramba...
Que chuva!
- Comentou olhando para o céu com o corpo inclinado para frente.
O temporal aumentava
cada vez mais. A visibilidade era pouca, obrigando os motoristas a diminuírem a
velocidade e ascender os faróis.
Aproveitando que o
Leonardo estava mais simpático, resolvi não perder a oportunidade de iniciar
naquele dia mesmo o maquiavélico plano de sua ex-esposa.
Paramos no hall de desembarque do flat. Após puxar o freio de mão, o
Leonardo baixou um pouco o vidro do seu lado, dando um profundo suspiro logo em
seguida, permanecendo calado.
Olhando para ele,
perguntei enquanto tirava o cinto:
-Você não
quer entrar?
-Eu vou
voltar pra clínica...
-Só
enquanto passa essa chuva... É perigoso ocê dirigir com o tempo assim...
-Tudo
bem.
-Deixe
que o manobrista estaciona seu carro...
-Não tem
perigo?
-Claro
que não.
-Então
está bem.
Pedi a um dos
funcionários que levasse minha mala para o meu quarto, em seguida entramos no
elevador. Apertei o botão para o décimo nono andar e falei em seguida:
-Espero
que a faxineira já tenha limpado meu AP.
-O
serviço de quarto não tem horário para passar?
-Às vezes
aparecem pela manhã, às vezes à tarde...
-Que
desorganização!
Caminhamos em direção à porta da suíte 1906, onde eu estava hospedado. Seu
delicioso perfume importado espalhou-se pelo corredor, deixando um rastro do
elevador até minha suíte.
Fechando à porta, disse
em seguida:
-Fique à
vontade. Aceita um café?
-Aceito. - Respondeu com um
sorriso tímido.
-Vou preparar...
Uma vez eu vi em uma novela que um romance começou após um derrubar café na
blusa do outro, e se deu certo na ficção, por que não daria na vida real?
Resolvi testar a estratégia, levando a vantagem de que sua camiseta era branca.
-Você
mora aqui sozinho?
- Perguntou colocando suas mãos ao bolso da calça, parado em pé próximo à porta
de acesso a varanda.
-Sim...
Minha família toda mora em Minas Gerais.
-Entendi.
-E ocê?
-Eu moro
sozinho também, mas aos finais de semana meus filhos vão passar comigo.
-Filho?
Tão jovem e já tem filhos? - Perguntei colocando o pó do café na cafeteira.
-Sim...
São pequenos... Uma de seis anos e um de três.
-Nossa!
Mas quantos anos ocê têm?
-Adivinha?
-28?
-Não.
-29?
-Também
não.
-Desisto!
-Hahaha...
Eu tenho 41 anos.
-O quê?
Ocê só pode estar tirando uma com minha cara...
-É sério!
E você, quantos anos tem?
-Tenho
19.
-Rapaz
bem jovem.
-Nunca eu
te daria mais que 30 anos.
-Opa...
Está querendo ser gentil.
-Nada
disso...
Assim que o café ficou
pronto, coloquei a xícara sobre a bandeja e caminhei em sua direção, mirando
sua camiseta onde eu pretendia despejá-lo “sem querer”. Tudo ocorria bem,
conforme o planejado, até que fiz a idiotice de não olhar pro chão, tropeçando
no maldito tapete que estava no caminho.
Caí com a xícara e
tudo. Paguei o maior mico. No impacto, a porcelana se quebrou, e dei o azar de
cair com o joelho esquerdo sobre os cacos. Idiota! Tinha que acontecer algo
para atrapalhar, pois logo desconfiei que estava tudo perfeito demais para ser
verdade.
O corte foi feio,
começando a sangrar imediatamente.
-Caralho! - Exclamei ao ver o
sangue escorrer pela minha perna.
Surpreso, o Leonardo
levantou-se do sofá e foi ajudar-me.
-Cuidado,
garoto!... Você se machucou?
-Um
pouco... O joelho...
- Falei mancando.
-Deixa eu
ver?
-Não foi
nada...
-Mesmo
assim, deixa eu ver.
- Insistiu colocando-me ao sofá.
-Ai,
ai...
-É... Foi
um corte profundo. Você vai precisar levar uns pontos ai.
Tremi.
-Que
pontos?
Caminhando em direção à porta, ele disse:
-Minhas
coisas estão lá no carro. Vou buscar e já volto.
-O que
ocê pretende fazer?
- Questionei assustado.
-Cuidar
desse ferimento. Ou você prefere pegar uma infecção?
Morrendo de medo do que poderia ser feito, perguntei:
-Você vai
demorar?
-Não, vou
e volto rápido.
-Tudo
bem.
Enquanto o Leonardo
saiu para ir buscar seus instrumentos no carro, aguardei por ele sentado ao
sofá, sem me mover, morto de vergonha e com ódio de mim mesmo por ser tão
estabanado e imbecil.
Os minutos pareciam não
passar. Olhando para o teto, esperava por uma ideia que me ajudasse a retirar
aquela má impressão, porém, nada me veio à cabeça. Sem bater ele abriu à porta,
colocou sua maleta sobre a mesa e perguntou tirando algumas bugigangas dela:
-Você vai
precisar tirar essa calça. Consegue fazer isso sozinho? - Perguntou remexendo
naquela bolsa.
Pensei em responder que
sim, mas enxerguei uma nova possibilidade de reatar meu plano, mesmo estando
parcialmente “aleijado”.
-Não
sei... Você pode me ajudar? - Falei fazendo cara de coitado.
-Claro. - Respondeu colocando
as luvas.
Iniciei desabotoando a
calça, e para facilitar, passei meu braço direito sobre seu pescoço,
aproveitando para roçar discretamente meu corpo ao seu. Homem cheiroso! Toquei em
seu boné e o tirei propositalmente, parecendo não ser proposital. Pele firme e
poucos pelos, além de moderados músculos que definiam suas formas masculinas.
Quando o vi passando
uma linha em uma agulha com um formato bizarro, tremi. Quase pulei do sofá,
questionando já preparado para dar um grito:
-O que
ocê vai fazer com essa agulha? - Perguntei enquanto ele borrifava um spray sobre o machucado.
-Vou
fechar esse ferimento.
-Com essa
agulha?
-Sim...
Não seja covarde, você já é um homem.
-Inferno!...
Agora eu tô ferrado!
- Exclamei apertando os olhos.
-Vai doer
um pouco depois, mas você vai ficar bem, não se preocupe.
-Ah,
claro... Ocê fala assim porque não é ocê que vai ficar com uma escabrosa
cicatriz no joelho.
Concentrado, o Leonardo respondeu:
-Você não
ficará com cicatriz.
-Como
não? O tamanho do corte...
-Eu sou
doutorado em medicina estética. - Disse interrompendo-me.
-Ocê
garante?
-Quer
apostar quanto? -
Propôs olhando-me nos olhos.
-Hum...
Um cinema?
-Só isso?
-Bem... E
uma partida de boliche?
-É pouco.
-Caraca!...
Sei lá... Um jantar aqui em casa?
-Fechado!
-Ótimo,
então fica combinado um jantar.
-Nada
disso... Pode incluir também o boliche e o cinema.
-Os três?
-Claro...
Já que é pra apostar, faremos isso direito.
-Tá bom.
-Aportado.
Agora feche os olhos que vou começar...
-Ai!
-Só abra
quando eu disser.
-Beleza.
Confesso que não senti
muita dor, com exceção da anestesia, cujo foi a pior parte. Cuidadoso, o
Leonardo fez de tudo para que o procedimento fosse o menos doloroso possível,
conquistando minha confiança a partir daquele momento.
-Pronto!
-Uau!...
Ocê é bom mesmo hein?
-Pare com
isso.
Puxando a almofada, perguntei:
-Não
gosta de receber elogios?
-Quem não
gosta?
- Respondeu enfático.
-Ah,
bom...
Tirando as luvas, o Leonardo disse:
-Bem...
Daqui uma semana você já pode tirar os pontos.
-Mas eu
posso ir em qualquer hospital?
-Vou
deixar com você o cartão da minha clínica. Ligue avisando que está indo e eu
tiro pra você.
-Nossa,
cara!... Nem sei como te agradecer.
-Não
esquenta.
-Quanto
é?
-O quê?
-Quanto
lhe devo pelo serviço prestado?
-A gente
não cobra por um favor.
-Ficarei
sem graça desse jeito.
-Relaxa...
Você já terá que pagar a aposta, porque tenho certeza que vou ganhar.
-Sei...
-E olha
que vou querer pipoca e tudo mais que tiver direito.
-Hahaha...
Pode deixar.
-Bem,
agora preciso ir.
-Mas já?
-Vou
aproveitar que a chuva deu uma trégua.
Tentando levantar-me do sofá, falei:
-Eu te
acompanho até a porta.
-Não
precisa. Fique ai deitado para que os pontos não arrebentem.
-Tudo
bem.
-Vou
deixar meu cartão aqui. - Falou colocando-o sobre a mesa.
-Tudo
bem.
-Qualquer
coisa você me liga, atrás tem meu telefone celular.
-Pode
deixar.
Encostando a porta, ele
saiu discretamente. Por um lado, parte do meu plano deu errado, e com isso
ganhei uma pequena lição no joelho. Por outro lado eu teria algumas outras
oportunidades de reencontrá-lo e assim poder insistir naquela conquista cretina
planejada pela Talita.
Assim que o Leonardo
deixou o flat, peguei o telefone e
disquei para sua ex:
-Alô!
-Talita
... Sou eu... Claus.
-Já
chegou no Rio?
-Não.
Voltei pro flat.
-Por quê? - Questionou com o tom
de voz um pouco alterado.
-Calma...
Por causa desse caos todo nos aeroportos do país.
-Inferno! - Exclamou após um
profundo suspiro.
-Mas não
se preocupe, tudo está correndo como o combinado.
-Pois não
parece... Olha aqui, Claus... Tudo isso está me custando muito caro, espero que
você cumpra com sua função o quanto antes.
-Calma...
Ocê nem me deixou falar...
-Tá...
Fala?
-O
Leonardo acabou de sair daqui.
-Como assim?
-Pois
é... Eu trouxe ele aqui pra casa...
-Hum?...
Mas já?... Tô vendo que você é mais esperto do que eu pensava...
-Vou
encarar isso como um elogio.
-O que
ele foi fazer aí? -
Questionou ansiosa.
-Ele me
deu uma carona...
-O que
mais?
-O que
mais o quê?
-Só isso?
-Ocê
queria o quê? Que eu agarrasse o cara?
-No
mínimo...
-Procê as
coisas são muito fáceis, né? Acha que o mundo é um fantoche e temos o poder de
manipular nas mão. Por conta desse plano, fodi meu joelho.
-Hahaha...
Sofreu um acidente?
- Perguntou ironizando.
-Levei um
tropeção no tapete e cortei o joelho na queda, mas isso não vem ao caso agora.
-Afff...
Que tonto!
-Levei
ponto e tudo. Meu único receio é ficar com cicatriz.
-Foi o
Leonardo quem cuidou do ferimento?
-Foi.
-Então
relaxa, não ficará nenhuma marca.
-Ele me
disse a mesma coisa.
-É um
ótimo profissional, não se preocupe. Mas você perdeu a oportunidade... E agora?
-Nem tudo
está perdido. Ele me deu o cartão da clínica dele. Pediu pra eu ir até lá tirar
os pontos.
-Imagine
a má impressão que você deixou nele?
-Acho que
não... O Leonardo pareceu ser um cara tão bacana...
-Não se
iluda, meu querido. O Leonardo é uma pessoa muito perigosa... E agora, o que
pretende fazer?
-Iremos
combinar um jantar, e outras oportunidades virão. Confie em mim.
-Pelo
dinheiro que estou te pagando, estou confiando até em Papai Noel.
-Deixa
comigo, vou te ajudar a ganhar a guarda dos seus filhos.
-Assim
espero. Me ligue quando tiver mais novidades.
-Tudo
bem. Tchau!
-Até
mais.
Desliguei o telefone,
vesti uma bermuda e desci até o infocentro do flat. Algumas ideias me vinham à mente, e para iniciar meus planos
maquiavélicos eu iria precisar comprar uma câmera fotográfica digital, porém,
impossibilitado de sair de casa por conta daquele joelho arrebentado, tive que
comprar pela internet.
Ao contrário do que a
Talita havia falado, o Leonardo parecia ser um cara pacífico, mais dócil e
tonto do que eu pensava, ou seja, preza fácil.
Próximo capítulo: | Armadilha |
Dia 04/03
Adquira a obra completa através do link: https://www.clubedeautores.com.br/book/139687--Profissao_Amante#.VtbgwPkrLIUhttps://www.clubedeautores.com.br/book/139687--Profissao_Amante#.VtbgwPkrLIU
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