quinta-feira, 3 de março de 2016

LIVRO: PROFISSÃO AMANTE - CAPÍTULO 3




 | O encontro forjado |
  
Eu sempre fui um cara preguiçoso, não gostava de acordar cedo, querendo só vida boa. Algumas adaptações eu teria que fazer em minha rotina, e uma delas seria encurtar o sono.
Depois de ler o pequeno dossiê sobre o Leonardo feito pela Talita, resolvi iniciar uma aproximação da maneira mais sutil possível, e sabendo que ele corria pelo Parque do Ibirapuera todos os dias, parti pra batalha.
A manhã ainda estava escura. Puxei a cortina, olhei pela janela do quarto e o trânsito já começava a se formar, e com ele o stress de toda metrópole. Cidade grande funciona vinte e quatro horas sem parar, e pessoas de cidades não tão grandes como eu, causa um estranhamento no início, mas nada como o tempo para ajudar a acostumar.
Vestindo uma roupa leve, segui até o parque do Ibirapuera caminhando, em passos largos pelas calçadas da Avenida Brigadeiro Luís Antônio.
Como eu nunca havia estado lá, acabei me perdendo naquele enorme parque. Distraído, quase fui atropelado por uma bicicleta ao andar pela ciclovia, e em meio aquele monte de árvores gigantescas, resolvi aguardar um pouco deitado sobre a grama gelada, próximo ao lago da fonte luminosa.
Tirei a foto do Leonardo do bolso traseiro da calça para familiarizar-me com sua aparência física, e tendo traços marcantes conforme mostraram as fotos, não seria difícil reconhece-lo se nos cruzássemos por ai.
Enquanto aguardava por algum sinal dele, observava o movimento das pessoas que por ali se exercitavam. Difícil era ver alguém feio, pois os que passavam por mim, além de pessoas bonitas, aparentavam dispor de uma boa situação financeira.
Paquerar no Parque do Ibirapuera deveria ser tudo de bom. Claro que, tendo o conhecimento de seu público frequentador, não me custaria nada dar o ar de minha graça mais vezes naquele lugar, e quem sabe encontrar alguém disposto a me bancar permanentemente.
Depois de quase quarenta minutos no aguardo, eis que observo alguém parecido com as características físicas do Leonardo. Fingindo estar exercitando-me, entrei na pista e aos poucos me aproximei para vê-lo mais de perto, e assim certificar-me de que realmente era ele.
Vestindo um calção vermelho, o rapaz corria sem camisa, com um cinto cruzando o peito, que provavelmente seria um medidor de batimentos cardíacos. De tempo em tempo notei que o rapaz olhava em seu relógio no pulso esquerdo, preocupado com o tempo talvez.
Ao perceber que ele havia parado para refrescar-se no pulverizador de água, discretamente aproximei-me, puxando assunto logo em seguida:
-Calor uma hora dessa... Ninguém merece!
-Pois é... Essa cidade está cada vez mais quente.
-Melhor, porque eu adoro calor.
-Eu não gosto muito, prefiro o inverno.
Levei logo uma cortada. Mesmo ele não me dando muita atenção, não desisti.
-Agora é melhor eu descansar um pouco... Sempre quando me exercito sinto uma dor aqui... - Falei levando a mão à barriga do lado direito.
-Provavelmente você esteja respirando errado. - Respondeu dando um gole na água de seu squeeze.
-Será?
-Sim... Procure respirar pelo nariz e soltar pela boca.
-Vai melhorar?
-Aos poucos vai passando, você nem perceberá.
-Que bacana!
-Bem, agora preciso ir.
-Beleza.
-Bom treino pra você.
-Pra ti também.
Colocando seus óculos escuros de volta ao rosto, retornou a pista e deu continuidade em seu exercício, enquanto permaneci lá, com cara de tacho pensando que o Leonardo me daria bola, e acabei caindo do cavalo.
Voltei para o flat e logo telefonei para a Talita, informando-a sobre minha ideia idiota de abordá-lo daquela maneira, além do fracasso da primeira tentativa.
-Talita?
-Oi.
-Estive com o Leonardo hoje.
-Como foi isso?!
-Acordei cedo e fui assistir seus exercícios no parque.
-E você conseguiu encontrá-lo com facilidade?
-Não, e por pouco não fui atropelado por uma bicicleta.
-Hahaha... Que ridículo!
-Seu ex-marido é muito chato.
-Você achou?
-Acredita que ele nem me deu atenção?
-O Leonardo é uma pessoa muito difícil. Você terá que ser insistente e paciente.
            Dobrando a perna sentado ao sofá, respondi:
-Bem... Pelo dinheiro que você está me pagando, vale a pena.
-Comunique-me quando tiver mais novidades.
-Tudo bem.
-Até mais.
-Até.
Desliguei o telefone e fui dormir um pouco, pois havia acordado muito cedo e como não estava acostumado, acabei ficando bêbado de sono.
Dois dias se passaram. Nesse período só desfrutei do conforto que me cercava, tremendo golpe de sorte. Esparramado sobre aquela enorme cama, nu em pelos, dormia profundamente após passar uma noite na balada, até ser acordado com o toque do telefone:
-Alô?
-Claus?
-Sim.
-É a Talita.
-Bom dia!          
-Bom dia. Hoje você vai viajar.
-Eu?
-Sim. O Leonardo vai para um congresso de medicina no Rio de Janeiro, e você vai com ele.
-Está bem. Mas como?
-Não me faça perguntas... Arrume suas malas que daqui a pouco estarei ai.
-Está bem.
-Até mais.
Desliguei o telefone e corri para arrumar minha mala. Fui pego de surpresa. Claro que a novidade deixou-me contente, pois eu nunca havia estado no Rio, e poder viajar as custas dos outros era bom demais.
Em menos de uma hora o recepcionista interfonou avisando que a Talita aguardava-me na recepção. Nossa! Como ela era rápida! Antes de deixar o apartamento, fechei as janelas, desliguei o ar condicionado e sai.
O relógio do elevador marcava 10h20. Para meu agrado desci sozinho, porque clima de elevador é muito chato. Todo mundo fica parado, tentando esconder seus problemas aparentes, fazendo cara de paisagem como se a vida fosse perfeita.
Ao chegar à recepção, avistei a Talita sentada ao sofá, de óculos escuros e pernas cruzadas. Vestindo uma calça preta e uma blusa azul, levantou-se de onde estava e deu sua fatal jogada de cabelo.
Aproximei-me dela dizendo:
-Vamos?
-Sim. - Respondeu caminhando até mim.
Entramos em seu carro, e no caminho do aeroporto ela foi explicando-me parte de seu plano, ideias mirabolantes:
-O voo de vocês está marcado para as 11h45.
-Vai eu e seu ex no mesmo voo?
-Sim... Um ao lado do outro, se possível.
-Nossa!... Mas você é maquiavélica... Como conseguiu todas as informações?
-Não se esqueça que ele é pai dos meus filhos.
-Entendi.
-Bom, agora o resto é com você, já fiz minha parte.
-Deixa comigo.
-Ah!... Reservei um quarto para você no mesmo hotel que o Leonardo ficará.
-Belezaaaa...
-Ele não deu certeza se volta ainda hoje, mas independente disso você saberá se sair bem. Espero.
-Pode apostar.
Chegamos ao aeroporto e já era possível notar uma certa confusão. Ainda dentro do carro, a Talita comentou:
-Ele já deve estar chegando. Preciso sair logo aqui...
Abrindo à porta do veículo, falei:
-Quando eu chegar lá, te ligo e conto tudo que rolou.
-Boa sorte!
-Valeu.
Caminhei até o balcão da companhia aérea para checar informações sobre o voo, e fui informado de que iria atrasar. O aeroporto estava lotado. Muitas pessoas já cansadas de esperar deitaram sobre suas malas, chorando, estressadas. Havia voos com até vinte horas de atraso, um absurdo.

-“Eu não quero saber, vocês pensam que a gente é palhaço? Eu vou quebrar tudo isso aqui...” - Gritava uma mulher que aguardava há horas para embarcar.

            A crise aérea no Brasil deu início no final do mês de outubro de 2006, quando controladores de voos começaram protestos contra o afastamento de colegas para que fossem efetuadas investigações sobre o acidente envolvendo o boing da Gol, ocasionando a morte de mais de 150 pessoas sobre a selva amazônica. Desde então, a situação dos aeroportos brasileiros tornou-se um caos, piorando ainda mais no feriado do dia 2 de novembro daquele mesmo ano.
            No mês seguinte, mais precisamente em cinco de dezembro, o Brasil se deparou com a maior pane aérea na história do país, ocasionada por uma falha em um equipamento, impedindo a comunicação entre as aeronaves e o centro de controle de Brasília.
 -Por favor, tem alguma ideia de quando o voo de... - Perguntei com a mochila nas costas.
-Sinto muito senhor, mas todos os voos estão sem previsão de partida até o momento.

Sem informação e previsão para embarcar, fiquei aguardando próximo às pessoas que aparentemente viajariam no mesmo voo que eu. Os painéis que indicavam os embarques estavam praticamente congelados, todos atrasados. Cada minuto que passava o saguão ficava mais cheio, deixando todos irritados.
            Desde o início da crise, o governo tentou minimizar o problema convocando mais controladores, além de negociar com a categoria. Enquanto efetuava as negociações, o ministro da Defesa, Waldir Pires, assumiu desmilitarizar o setor, que até então era controlado por militares da Aeronáutica. Uma das reivindicações dos profissionais era a péssima condição de trabalho, além da pressão, salários, escalas de folgas.
Minhas pernas já começavam a doer quando avistei o Leonardo aproximando-se do balcão da companhia. Usando um boné com a aba virada para trás e uma camiseta colada, trazia em sua mão direita uma maleta de computador portátil, enquanto a esquerda puxava sua mala com rodas tamanho médio.
Quase uma hora depois os voos começaram a operar, porém, ainda estava longe de nós embarcarmos. Distraído, o Leonardo soltou sua mala enquanto falava ao celular, dando brecha para que eu agisse. Aproveitando o tumulto, discretamente peguei-a e me afastei por alguns metros. De longe fiquei observando sua reação, que ao desligar o celular olhava de um lado para o outro procurando.
Aproximei-me dele, e com um leve sorriso falei:
-Oi... Essa mala que ocê procura?
-É!
            Fazendo uma engraçada careta, comentou:
-Eu acho que te conheço de algum lugar...
-Do parque. Lembra?
-Ah, é!... O que minha mala está fazendo com você?
-Desculpa, mas você tava distraído e percebi que havia uma pessoa de olho nela, então resolvi guardá-la...
-Muito obrigado!
-De nada...
Vendo que ele não me daria muita atenção, resolvi puxar assunto:
-Que coincidência você aqui!...
-Essa cidade é mesmo pequena. - Falou com um tom irônico.
-Hahaha... Sem gozação, vai.
-Tá indo aonde?
-Rio e você?
-Também, mas estou quase desistindo.
-Entendo... Com essa confusão toda...
            Nesse momento ouvimos uma gritaria, seguida de uma movimentação no balcão da Companhia ao lado. Revoltada com a situação, uma passageira resolveu agredir uma funcionária do check-in, como se ela tivesse a culpa dos atrasos e bloqueio temporário do espaço aéreo nacional.
-Eu não quero saber...
-Senhora, por favor, tente se acalmar.
-Tá pensando que sou idiota? - Gritava como uma louca, segurando um bebê de colo que esperneava tanto quanto ela.
-A senhora não tem o direito de gritar comigo. Eu estou fazendo o que posso para lhe ajudar... - Respondeu a funcionária já entrando em desespero.
            Fazendo-se de vítima, a mulher sentou-se no chão e começou a gritar para todos ouvir, acusando a recepcionista de agressão. Vendo a cena, seu marido indignou-se com a atitude da funcionária de responder à sua esposa, porém, deveria ter tapado os olhos quando ela tentou agredi-la para mostrar quem mandava mais.
            Apertando os olhos, o Leonardo dirigiu-se até lá me dizendo:
-Dá um tempo ai que já venho... Cuide das minhas coisas, por favor.
-Tá!
            Tomando as dores, ele caminhou até o casal e falou para o rapaz:
-Todos nós estamos indignados com a situação em que se encontra aqui, porém, isso não nos dá o direito de agredir os funcionários como sua esposa fez...
            Subindo sobre a esteira da Companhia, ele continuou:
-É agredindo os outros que se pede ordem? Vocês acham que a nossa imagem perante o mundo, quebrando um aeroporto e batendo em funcionários, vai nos beneficiar em algo?
            Todos pararam para ouvi-lo.
-Assim como nós, esses funcionários são vítimas do nosso sistema... E o que cada um de vocês está fazendo para que isso mude... Colocando a culpa no outro? E se não estivessem aqui, sentindo na pele, estariam brigando pelo problema que não afeta você? A gente não muda um país sozinho, todos nós constituímos o Brasil, e ao invés de ficar jogando a culpa no outro, vamos assumir nossa omissão e cobrar providências do governo. Deixem o posto de vítimas e assumam o papel de consumidores exigentes.
            Descendo de onde estava, olhou para a “louca” e falou:
-Apontar a culpa no outro é muito fácil. Difícil é enxergar e assumir nossos erros.
            Calada, ela apenas o olhou. Após um profundo suspiro, ele caminhou até mim, pegou suas malas e disse:
-Obrigado por cuidar...
-Você... Falou bonito. - Comentei admirando suas palavras.
-Apenas falei o que eles precisavam ouvir. - Desabafou.
-Acho que ainda vai demorar um pouco para nosso voo sair... Quer me acompanhar num café?
            Olhando ao relógio, respondeu:
-Tudo bem, quem sabe me acalmo mais.
            Enquanto caminhávamos em direção à cafeteria, avistei através do vidro no hall das escadas que lá fora chovia demais. Assim que percebeu, o Leonardo exclamou:
-Nossa!
-Tô ferrado...
-Mais um motivo pro aeroporto fechar.
            Não demorou muito para o anúncio soar informando que a pista seria fechada devido às más condições de tempo.
-Acho que vou embora. - Disse o Leonardo.
            Fazendo-me de coitado, comentei:
-Pior é que eu não posso sair daqui, porque não trouxe grana para pegar um táxi...
-Você mora onde?
-Eu moro no Itaim Bibi.
-É aqui pertinho.
-Não tão perto.
-Bom... Meu carro está aqui no estacionamento do aeroporto. Se você quiser, eu posso te dar uma carona...
-Não vou te atrapalhar? - Perguntei esboçando um sorriso na face.
-É caminho, estou indo para Moema.
-Se for assim, tudo bem.
Pegamos nossas malas e seguimos para o estacionamento, onde seu carro estava guardado. Até que dessa vez o Leonardo foi mais simpático, diferente do dia no Parque do Ibirapuera, onde quase levei um coice daquele mal humorado.
-Acho que a gente não se apresentou ainda...
-É verdade! Meu nome é Claus, e o seu?
-O meu é Leonardo.
-Prazer, Leonardo!
-Prazer!
-Você trabalha com o que, Leonardo?
-Sou médico. E você?
-Eu?
-É...
-Bem... Eu... Eu trabalho com informática...
-Que bacana!
Pouco a pouco o Leonardo foi permitindo que eu me aproximasse cada vez mais de sua pessoa, interagindo com minhas perguntas e até rindo de algumas piadas que fiz durante o caminho. Se tudo continuasse como estava, o plano da Talita tinha tudo pra dar certo.
Ligando o limpador do para-brisa, ele perguntou:
-Entro na próxima rua?
-Sim, à esquerda.
-Caramba... Que chuva! - Comentou olhando para o céu com o corpo inclinado para frente.
O temporal aumentava cada vez mais. A visibilidade era pouca, obrigando os motoristas a diminuírem a velocidade e ascender os faróis.
Aproveitando que o Leonardo estava mais simpático, resolvi não perder a oportunidade de iniciar naquele dia mesmo o maquiavélico plano de sua ex-esposa.
Paramos no hall de desembarque do flat. Após puxar o freio de mão, o Leonardo baixou um pouco o vidro do seu lado, dando um profundo suspiro logo em seguida, permanecendo calado.
Olhando para ele, perguntei enquanto tirava o cinto:
-Você não quer entrar?
-Eu vou voltar pra clínica...
-Só enquanto passa essa chuva... É perigoso ocê dirigir com o tempo assim...
-Tudo bem.
-Deixe que o manobrista estaciona seu carro...
-Não tem perigo?
-Claro que não.
-Então está bem.
Pedi a um dos funcionários que levasse minha mala para o meu quarto, em seguida entramos no elevador. Apertei o botão para o décimo nono andar e falei em seguida:
-Espero que a faxineira já tenha limpado meu AP.
-O serviço de quarto não tem horário para passar?
-Às vezes aparecem pela manhã, às vezes à tarde...
-Que desorganização!
            Caminhamos em direção à porta da suíte 1906, onde eu estava hospedado. Seu delicioso perfume importado espalhou-se pelo corredor, deixando um rastro do elevador até minha suíte.
Fechando à porta, disse em seguida:
-Fique à vontade. Aceita um café?
-Aceito. - Respondeu com um sorriso tímido.
-Vou preparar...
            Uma vez eu vi em uma novela que um romance começou após um derrubar café na blusa do outro, e se deu certo na ficção, por que não daria na vida real?
            Resolvi testar a estratégia, levando a vantagem de que sua camiseta era branca.
-Você mora aqui sozinho? - Perguntou colocando suas mãos ao bolso da calça, parado em pé próximo à porta de acesso a varanda.
-Sim... Minha família toda mora em Minas Gerais.
-Entendi.
-E ocê?
-Eu moro sozinho também, mas aos finais de semana meus filhos vão passar comigo.
-Filho? Tão jovem e já tem filhos? - Perguntei colocando o pó do café na cafeteira.
-Sim... São pequenos... Uma de seis anos e um de três.
-Nossa! Mas quantos anos ocê têm?
-Adivinha?
-28?
-Não.
-29?
-Também não.
-Desisto!
-Hahaha... Eu tenho 41 anos.
-O quê? Ocê só pode estar tirando uma com minha cara...
-É sério! E você, quantos anos tem?
-Tenho 19.
-Rapaz bem jovem.
-Nunca eu te daria mais que 30 anos.
-Opa... Está querendo ser gentil.
-Nada disso...
Assim que o café ficou pronto, coloquei a xícara sobre a bandeja e caminhei em sua direção, mirando sua camiseta onde eu pretendia despejá-lo “sem querer”. Tudo ocorria bem, conforme o planejado, até que fiz a idiotice de não olhar pro chão, tropeçando no maldito tapete que estava no caminho.
Caí com a xícara e tudo. Paguei o maior mico. No impacto, a porcelana se quebrou, e dei o azar de cair com o joelho esquerdo sobre os cacos. Idiota! Tinha que acontecer algo para atrapalhar, pois logo desconfiei que estava tudo perfeito demais para ser verdade.
O corte foi feio, começando a sangrar imediatamente.
-Caralho! - Exclamei ao ver o sangue escorrer pela minha perna.
Surpreso, o Leonardo levantou-se do sofá e foi ajudar-me.
-Cuidado, garoto!... Você se machucou?
-Um pouco... O joelho... - Falei mancando.
-Deixa eu ver?
-Não foi nada...
-Mesmo assim, deixa eu ver. - Insistiu colocando-me ao sofá.
-Ai, ai...
-É... Foi um corte profundo. Você vai precisar levar uns pontos ai.
            Tremi.
-Que pontos?
            Caminhando em direção à porta, ele disse:
-Minhas coisas estão lá no carro. Vou buscar e já volto.
-O que ocê pretende fazer? - Questionei assustado.
-Cuidar desse ferimento. Ou você prefere pegar uma infecção?
            Morrendo de medo do que poderia ser feito, perguntei:
-Você vai demorar?
-Não, vou e volto rápido.
-Tudo bem.
Enquanto o Leonardo saiu para ir buscar seus instrumentos no carro, aguardei por ele sentado ao sofá, sem me mover, morto de vergonha e com ódio de mim mesmo por ser tão estabanado e imbecil.
Os minutos pareciam não passar. Olhando para o teto, esperava por uma ideia que me ajudasse a retirar aquela má impressão, porém, nada me veio à cabeça. Sem bater ele abriu à porta, colocou sua maleta sobre a mesa e perguntou tirando algumas bugigangas dela:
-Você vai precisar tirar essa calça. Consegue fazer isso sozinho? - Perguntou remexendo naquela bolsa.
Pensei em responder que sim, mas enxerguei uma nova possibilidade de reatar meu plano, mesmo estando parcialmente “aleijado”.
-Não sei... Você pode me ajudar? - Falei fazendo cara de coitado.
-Claro. - Respondeu colocando as luvas.
Iniciei desabotoando a calça, e para facilitar, passei meu braço direito sobre seu pescoço, aproveitando para roçar discretamente meu corpo ao seu. Homem cheiroso! Toquei em seu boné e o tirei propositalmente, parecendo não ser proposital. Pele firme e poucos pelos, além de moderados músculos que definiam suas formas masculinas.
Quando o vi passando uma linha em uma agulha com um formato bizarro, tremi. Quase pulei do sofá, questionando já preparado para dar um grito:
-O que ocê vai fazer com essa agulha? - Perguntei enquanto ele borrifava um spray sobre o machucado.
-Vou fechar esse ferimento.
-Com essa agulha?
-Sim... Não seja covarde, você já é um homem.
-Inferno!... Agora eu tô ferrado! - Exclamei apertando os olhos.
-Vai doer um pouco depois, mas você vai ficar bem, não se preocupe.
-Ah, claro... Ocê fala assim porque não é ocê que vai ficar com uma escabrosa cicatriz no joelho.
            Concentrado, o Leonardo respondeu:
-Você não ficará com cicatriz.
-Como não? O tamanho do corte...
-Eu sou doutorado em medicina estética. - Disse interrompendo-me.
-Ocê garante?
-Quer apostar quanto? - Propôs olhando-me nos olhos.
-Hum... Um cinema?
-Só isso?
-Bem... E uma partida de boliche?
-É pouco.
-Caraca!... Sei lá... Um jantar aqui em casa?
-Fechado!
-Ótimo, então fica combinado um jantar.
-Nada disso... Pode incluir também o boliche e o cinema.
-Os três?
-Claro... Já que é pra apostar, faremos isso direito.
-Tá bom.
-Aportado. Agora feche os olhos que vou começar...
-Ai!
-Só abra quando eu disser.
-Beleza.
Confesso que não senti muita dor, com exceção da anestesia, cujo foi a pior parte. Cuidadoso, o Leonardo fez de tudo para que o procedimento fosse o menos doloroso possível, conquistando minha confiança a partir daquele momento.
-Pronto!
-Uau!... Ocê é bom mesmo hein?
-Pare com isso.
            Puxando a almofada, perguntei:
-Não gosta de receber elogios?
-Quem não gosta? - Respondeu enfático.
-Ah, bom...
            Tirando as luvas, o Leonardo disse:
-Bem... Daqui uma semana você já pode tirar os pontos.
-Mas eu posso ir em qualquer hospital?
-Vou deixar com você o cartão da minha clínica. Ligue avisando que está indo e eu tiro pra você.
-Nossa, cara!... Nem sei como te agradecer.
-Não esquenta.
-Quanto é?
-O quê?
-Quanto lhe devo pelo serviço prestado?
-A gente não cobra por um favor.
-Ficarei sem graça desse jeito.
-Relaxa... Você já terá que pagar a aposta, porque tenho certeza que vou ganhar.
-Sei...
-E olha que vou querer pipoca e tudo mais que tiver direito.
-Hahaha... Pode deixar.
-Bem, agora preciso ir.
-Mas já?
-Vou aproveitar que a chuva deu uma trégua.
            Tentando levantar-me do sofá, falei:
-Eu te acompanho até a porta.
-Não precisa. Fique ai deitado para que os pontos não arrebentem.
-Tudo bem.
-Vou deixar meu cartão aqui. - Falou colocando-o sobre a mesa.
-Tudo bem.
-Qualquer coisa você me liga, atrás tem meu telefone celular.
-Pode deixar.
Encostando a porta, ele saiu discretamente. Por um lado, parte do meu plano deu errado, e com isso ganhei uma pequena lição no joelho. Por outro lado eu teria algumas outras oportunidades de reencontrá-lo e assim poder insistir naquela conquista cretina planejada pela Talita.
Assim que o Leonardo deixou o flat, peguei o telefone e disquei para sua ex:
-Alô!
-Talita ... Sou eu... Claus.
-Já chegou no Rio?
-Não. Voltei pro flat.
-Por quê? - Questionou com o tom de voz um pouco alterado.
-Calma... Por causa desse caos todo nos aeroportos do país.
-Inferno! - Exclamou após um profundo suspiro.
-Mas não se preocupe, tudo está correndo como o combinado.
-Pois não parece... Olha aqui, Claus... Tudo isso está me custando muito caro, espero que você cumpra com sua função o quanto antes.
-Calma... Ocê nem me deixou falar...
-Tá... Fala?
-O Leonardo acabou de sair daqui.
-Como assim?
-Pois é... Eu trouxe ele aqui pra casa...
-Hum?... Mas já?... Tô vendo que você é mais esperto do que eu pensava...
-Vou encarar isso como um elogio.
-O que ele foi fazer aí? - Questionou ansiosa.
-Ele me deu uma carona...
-O que mais?
-O que mais o quê?
-Só isso?
-Ocê queria o quê? Que eu agarrasse o cara?
-No mínimo...
-Procê as coisas são muito fáceis, né? Acha que o mundo é um fantoche e temos o poder de manipular nas mão. Por conta desse plano, fodi meu joelho.
-Hahaha... Sofreu um acidente? - Perguntou ironizando.
-Levei um tropeção no tapete e cortei o joelho na queda, mas isso não vem ao caso agora.
-Afff... Que tonto!
-Levei ponto e tudo. Meu único receio é ficar com cicatriz.
-Foi o Leonardo quem cuidou do ferimento?
-Foi.
-Então relaxa, não ficará nenhuma marca.
-Ele me disse a mesma coisa.
-É um ótimo profissional, não se preocupe. Mas você perdeu a oportunidade... E agora?
-Nem tudo está perdido. Ele me deu o cartão da clínica dele. Pediu pra eu ir até lá tirar os pontos.
-Imagine a má impressão que você deixou nele?
-Acho que não... O Leonardo pareceu ser um cara tão bacana...
-Não se iluda, meu querido. O Leonardo é uma pessoa muito perigosa... E agora, o que pretende fazer?
-Iremos combinar um jantar, e outras oportunidades virão. Confie em mim.
-Pelo dinheiro que estou te pagando, estou confiando até em Papai Noel.
-Deixa comigo, vou te ajudar a ganhar a guarda dos seus filhos.
-Assim espero. Me ligue quando tiver mais novidades.
-Tudo bem. Tchau!
-Até mais.
Desliguei o telefone, vesti uma bermuda e desci até o infocentro do flat. Algumas ideias me vinham à mente, e para iniciar meus planos maquiavélicos eu iria precisar comprar uma câmera fotográfica digital, porém, impossibilitado de sair de casa por conta daquele joelho arrebentado, tive que comprar pela internet.

Ao contrário do que a Talita havia falado, o Leonardo parecia ser um cara pacífico, mais dócil e tonto do que eu pensava, ou seja, preza fácil.


Próximo capítulo:   | Armadilha |
Dia 04/03


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