quarta-feira, 20 de abril de 2016

O QUE OLHOS NÃO VEEM - CAPÍTULO 3




CAPITULO 3 - O PRIMEIRO BEIJO


                        No sábado o dia amanheceu ensolarado. Embora eu não gostasse muito de sol forte, tenho que confessar que o dia estava bonito, céu limpo, sem nuvens. Acordei com o celular tocando. Levantei-me da cama, tirei-o da mochila e com a voz um pouco travada, atendi:
-Alô?
-Tom... É o Kico...
-Oi...
-O senhor estava dormindo?
-Sim.
-Nossa... Foi mal...
-Fale?
-O quê?
-Pra que você ligou?
-Ah é!... Eu te liguei pra saber se você está a fim de sair.
-Pra onde?
-Lá no nosso ponto de encontro de costume.
-Na Liberdade?
-É.
-Quem vai?
-A Prizinha, eu, o Xandi, a Debi e o Dudu.
-Humpft... Que horas vocês irão se encontrar lá?
-Às uma da tarde.
-Que horas são agora?
-Agora são nove horas.
-Tudo bem. Mais tarde eu colo lá.
-Beleza.
-Beijo.
-Beijo.
                        Desliguei o telefone e fui tomar um banho. Em casa não havia ninguém, estavam todos trabalhando. Ao ligar o chuveiro, senti que a água estava muito gelada. Enquanto esperava que ela esquentasse, me veio o Cauê em pensamento. Eu nunca havia conhecido alguém com deficiência visual antes de uma forma tão próxima como ele. É engraçado como as coisas são diferentes quando estamos fora, e ao vermos de um outro ângulo desfazemos toda aquela imagem distorcida que tínhamos por falta de conhecimento de causa.
                        Acredito que nada na vida acontece por acaso, e conhecer o Cauê só iria ensinar-me a viver melhor, sentir o mundo através de uma forma que menosprezamos, pois o campo visual torna-se prioritário no mundo em que vivemos, desprezando os outros sentidos.
                        Após o banho desci até a cozinha, apenas com a toalha enrolada à cintura. Na geladeira havia suco de laranja, bolo, e algumas outras coisas gostosas. Minha barriga já roncava de fome. Passei manteiga em um pão e o coloquei na chapa para dourar um pouco. Sentei-me à mesa para tomar meu café da manhã traquilamente. Aproveitei que a torrada estava crocante e comi três com geléia de morango.
                        Tomar café da manhã não era um hábito que eu exercia com frequência. Geralmente eu não sentia fome na parte da manhã, mas como naquele dia minha barriga amanheceu pedindo comida preferi não contrariá-la.
                        Depois de me fartar, voltei ao meu quarto e vesti uma bermuda, em seguida entrei à internet para checar meus e-mails e conversar um pouco com meus amigos. Algum tempo depois o telefone tocou. Corri até a sala para atendê-lo, mas ao segundo toque parou de chamar. Voltei ao quarto e continuei o que estava fazendo.

/// Srtº Tom \\\  diz:
volteiiiiiii

----KiCo----  diz:
tom... eu tow mt afim da debi...

/// Srtº Tom \\\  diz:
e vuxe jah disse issu pra ela????

----KiCo----  diz:
inda naum

/// Srtº Tom \\\  diz:
puke?

----KiCo----  diz:
to cum medu di leva um NAUM

/// Srtº Tom \\\  diz:
mais issu faix part

/// Srtº Tom \\\  diz:
converxa cum ela e conte o q vuxe ta sentindu!!!!

----KiCo----  diz:
axu ki vo faze issu memu

----KiCo----  diz:
maix mudandu de assuntu... eu liguei pro thi e eli disse q num vai hj

/// Srtº Tom \\\  diz:
puke?

----KiCo----  diz:
pk onti uns puks bateu neli

/// Srtº Tom \\\  diz:
nuss! Ondi?

----KiCo----  diz:
na avenida paulista... eli tava saindu du metro ai os kara viram eli e pegaram... nem deu tempu deli corre

/// Srtº Tom \\\  diz:
mais bateram mt neli?

----KiCo----  diz:
naum puke a policia tava passandu e ajudou eli... mas si num fosse isso axu ke teria matadu ele de tantu bater...

/// Srtº Tom \\\  diz:
ki horror... as pessoas naum podem nem ser o ke saum soh puke um grupu axa erradu, feiu...

----KiCo----  diz:
essax pessoax naum sabem comu u mundu seria xatu si todax as pessoax foxem tudu iguaix


                        A internet é uma das formas mais ativas de demonstração do preconceito contra os Emos. Sendo o principal divulgador e responsável por propagar a tribo no Brasil, a internet tornou-se também um veículo para demonstrações e exibições de agressões contra os jovens pertencentes à tribo. O que impressiona é o crescimento contínuo de adeptos à prática dessa violência, provando que a juventude brasileira vem tornando-se cada vez mais rebelde influenciada por grupos intolerantes à diferenças, criados e praticados em outros países e copiados aqui.

"Preconceito, com qualquer forma de estilo novo que está surgindo sempre existirá, é inevitável, o lance é lutar contra isso..." (Felipe, 22, Brasília)

"Já me chamaram de demônio quando eu estava voltando pra casa. Uma vez um menino chegou por trás e me enforcou, não sei se por brincadeira, mas ele me machucou." (Prizinha, 17 anos, Salvador.)

                        No começo da tarde fui encontrar o pessoal no bairro da Liberdade. Ao chegar, avistei a galera sentada aos degraus da escadaria da estação do metrô. Aproximei-me do pessoal e cumprimentei todos com um beijo no rosto.
                        Acariciando meu cabelo a Ana perguntou:
-Quais são as novidades, lindo?
-Humpft... Começaram as aulas na faculdade.
-E você ta gostando?
-Estou.
                        Naquela tarde o pessoal estava bem animado, falando alto, contando sobre as férias, baladas. Em meio a conversa do grupo acabei me pegando em meus pensamentos e viajando pra bem longe.
-Tom?... Tom?... Tom!
-Oi linda!
-O que houve?
-Nada... Por quê?
-Você de repente ficou ai calado...
-Humpft... Desculpe, é que estava pensando no que aconteceu essa semana...
-O que aconteceu?
-Lá na faculdade... Tentaram afogar um garoto que é cego.
-Nossa!
-Que horror, miguxo!
-Pois é.
                        Deitando sua cabeça sobre o meu colo o Cadu falou:
-Você está sabendo da novidade?
-Não... Qual?
-O Kico e a Debi estão ficando.
-Ficando?
-É.
-Desde quando?
-Desde agora há pouco...
-Cadê eles?
-Foram no mercado comprar suco de soja pra gente e daqui a pouco estão de volta.
-Entendi... Que inveja deles.
-Por que inveja?
-Ah... Eu também estou a fim de um amor.
-Mas logo você encontra, miguxo.
-Gente... Eu posso apresentar a vocês o Cauê?
-Quem é Cauê?
-É aquele garoto cego que comentei com vocês.
-Claro que pode, Tom!
-Vocês vão adorar o Cauê. Ele é um cara super alegre, bonito, legal, inteligente...
-Uau... O Tom ta apaixonado...
-Eu?
                        Sem que eu esperasse, todos começaram a gritar:
-Ta apaixonado, ta apaixonado, ta apaixonado...
-Gente, por favor... Não tem nada a ver...
                        Confesso que senti um pouco de inveja quando soube que o Kico estava ficando com a Debi. Não que fosse dos dois, mas pela situação em si. Fazia tempo que eu não me envolvi com ninguém, e isso estava fazendo-me falta.
                        Voltei pra casa já havia anoitecido. Ao chegar, meus pais já estavam em casa, e não foi preciso dizerem nada para que eu percebesse um clima melancólico no ar. Subi para meu quarto e de lá não sai, nem para jantar.
                        Deitado em minha cama, não conseguia pensar em outra coisa que não fosse o Cauê. Não sei por que aquele garoto não me saía da cabeça, talvez o motivo pudesse ser o episódio inédito que eu acabara de presenciar, porém, algo em mim dizia que não era somente isso. Adormeci pensando nele.
                        Meu domingo começou perfeito. O dia estava ensolarado, lindo. O céu azul sem nuvens estava propício para empinar pipa. Ainda admirando o dia apoiado à janela ouvi altas vozes vindas da cozinha. Troquei de roupa, lavei o rosto e desci para ver o que estava acontecendo. Ao chegar, flagrei meu pai dando um tapa na cara da minha mãe, sendo jogada à parede pelo impacto da pancada.
                        Naquele instante eu perdi a noção de tudo. Voei em cima dele para que não voltasse a fazer nada contra minha mãe, que envergonhada levantou-se do chão e correu em direção ao telefone, ameaçando chamar a polícia para prendê-lo. Em um movimento brusco ele jogou-me ao chão e saiu pela porta da cozinha, pegando o carro e sumindo aos nossos olhos.
                        Violência doméstica é aquela violência explicita ou assistida, praticada dentro do lar por parentes. O ato inclui várias práticas, como maus tratos contra idosos, violência contra a mulher, abuso sexual contra crianças, entre outras.
                        Os tipos de violência podem ser classificados em física, quando envolve a agressão direta contra pessoas pertencentes a família; violência sócio econômica, acontecendo quando um indivíduo possui acesso a recursos econômicos e acesso social controlados por familiar; violência psicológica quando são proferidas agressões verbais, coação, ameaças;
                        Apreensivo, corri até a sala para saber como minha mãe estava. Chorando, ela mal conseguia segurar o telefone. Abracei-a com força e questionei:
-Por que escondeu isso de mim?
-Filho, desculpa?
-Desde quando isso está ocorrendo?
                        Sem responder ela seguiu para seu quarto, trancou a porta e de lá não saiu. Presenciar aquela cena acabou com meu domingo. Não é fácil presenciar um pai bater na mãe, é traumatizante. Chorei sozinho, imaginando a todo tempo o que poderia ter ocorrido se eu não chegasse ou não estivesse em casa.
                        Palavras horríveis, acusações sem fundamentos, ofensas, ameaças, difamação. As palavras ferem e o tom de voz aumenta, e de repente um tapa, um empurrão, soco, falta de controle, são deferidos contra o agredido. Não se pode medir o tamanho dos danos provocados por essa violência que atinge não só ao agredido, mas também a filhos, parentes.
                        As estatísticas mostram que a violência contra a mulher é muito maior do que contra o homem. Conforme a Fundação Perseu Abramo, 43% das mulheres brasileiras confessam terem sofrido algum tipo de violência, sendo que um terço delas dizem ter sofrido agressão física. Com relação a violência psicológica, 27% das mulheres confirmam ter sofrido e as que sofreram assédio sexual somam 11%.
                        Bati à porta de seu quarto, mas ela não abriu. Comecei a entender o porquê da utilização de óculos escuros dentro de casa, e às vezes que perguntei ela abafou o caso, tentando me poupar de saber o verdadeiro caráter do meu pai.
                        Na grande maioria dos casos, os responsáveis pelas agressões domésticas sãos os maridos/namorados, com maior incidência nas classes financeiras mais baixas, ocorrendo também com mulheres da classe média e alta, porém, o medo de se exporem e expor sua família faz com que denunciem menos.                      
                        Passei o dia preocupado, angustiado, aflito. No começo da noite minha mãe finalmente deixou o quarto, escondendo sua face para que eu não visse a vergonha e humilhação estampada em seus olhos. Tentei conversar sobre, mas percebi que ela não estava a fim, sendo assim respeitei e não insisti.
                        No outro dia sai de casa mais cedo. Deixei o carro em casa e fui de ônibus. Meus pensamentos estavam longe, e a angústia tomava conta do meu peito. O trânsito não estava muito bom, e para piorar um caminhão havia provocado um acidente na Marginal, formando um congestionamento de mais de dois quilômetros.
                        Cheguei à faculdade e a aula ainda não havia começado. Entrei na sala e logo em seguida o Cauê chegou. Sentando-se em sua carteira ele falou:
-Tom?
-Oi!
-Bom dia!... O que você tem?
-Nada...
-Como nada? Eu conheço você...
-Humpft... Eu...
-A tristeza em sua voz revela que você não está bem... Se quiser conversar, estou disposto a te ouvir.
-Está bem... Podemos sair depois da aula?
-Claro! Vou te levar para um lugar especial.
-Que lugar?
-Não conto... Será surpresa. Você confia em mim?
-Confio.
                        Após o término da aula, descemos juntos pelo elevador lateral, pois era bem mais vazio. Com o auxílio de sua vareta o Cauê tocou em meu braço, e caminhando em passos lentos questionei:
-Você não veio com o Emílio hoje?
-Não... Ele está adoentado.
-O que ele tem?
-Não sei... Hoje minha mãe vai levá-lo ao veterinário.
-Espero que não seja nada grave.
-Se Deus quiser, não será.
                        Meu peito continuava angustiado. Às vezes vinha em mente aquela cena do domingo, e uma vontade enorme de chorar tornava-se inevitável. O que me preocupava mais era minha mãe, pois eu havia saído sem vê-la e saber como estava.
                        Seguimos o Cauê e eu em direção ao ponto de táxi. Com seu jeito espontâneo ele falava o percurso inteiro, enquanto eu respondia com palavras monossilábicas. Ao chegarmos, o motorista logo foi abrindo a porta do carro quando o viu, exclamando:
-Menino Cauê!
-Bom dia, Nicolau!
-Bom dia? Já é quase boa tarde...
-É que eu ainda não almocei.
                        Fechando a porta do carro o Nicolau questionou:
-Hahaha... Ta certo. Para onde vamos?
-Leve-nos para o céu.
-Pode deixar.
                        Curioso, sussurrei:
-Céu?
-Sim...
-Que lugar é esse?
-O verdadeiro paraíso... Você gosta de natureza?
-Gosto.
-Que bom!
                        Pouco tempo depois chegamos no lugar do qual o Cauê apelidava de “céu”. Ao meu lado direito avistei um lindo parque, cheio de árvores, pássaros voando. Desci do carro, em seguida o ajudei a descer e sem que eu precisasse perguntar o Cauê falou:
-Todas às vezes que estou triste, eu venho pra cá...
-E você me traz para um lugar onde você só vem quando está triste?
-Sim...
-Por quê?
-Porque aqui eu recupero todas as energias boas que alguma coisa ou alguém me fez perder...
                        Sentamos à grama em volta do lago. A brisa suave do começa da tarde batia levemente em nossas faces, acompanhada do cheiro de terra molhada. Cobertos pela sombra de uma das arvores, dividíamos espaço com as folhas secas caídas à grama.
                        Tirando parte da franja do olho perguntei:
-Qual é o nome desse lugar, Cauê?
-Jardim Botânico.
-Ah!
-Um pouco mais à frente fica o Zoológico de São Paulo.
-Eu sabia que já havia passado por aqui antes!

     A origem do Jardim Botânico foi fruto da paixão do naturalista Frederico Carlos Hoehne, em 1928, quando iniciou o Orquidário do Estado, na Água Funda. Hoje, são 143 hectares abrigando várias espécies vegetais. Em seu interior foram construídas duas estufas - que se tornaram a marca do Jardim Botânico -, uma abriga plantas típicas da mata atlântica, enquanto a outra é destinada a exposições temporárias. O Instituto de Botânica dispõe de uma biblioteca com cerca de 6.400 livros, inúmeras obras do século passado e um acervo botânico sem igual no Estado de São Paulo. No Museu Botânico encontram-se inúmeras amostras de plantas da flora brasileira, uma coleção de produtos extraídos de plantas, fibras, óleos, madeiras, sementes e também quadros e fotos representativos dos diversos ecossistemas do Estado. No conjunto arquitetônico-cultural do Jardim Botânico destacam-se, além do Museu, o Jardim de Lineu, inspirado no Jardim Botânico de Uppsala, na Suécia, as estufas históricas, o portão histórico de 1894, e o marco das nascentes do riacho Ipiranga. (Daniel Guimarães,  2007)

                        Deitamos à grama. Enquanto eu observava as nuvens passarem, após um longo suspiro o Cauê perguntou com a voz serena:
-Tom... O que te aflige ao ponto de deixar dessa forma?
-Humpft... A situação em casa não anda nada boa...
-Por quê?
-Alguns problemas de tolerância familiar...
-Ah...
-Mas prefiro não falar nisso por enquanto.
-Claro, não vou te obrigar a nada.
-Obrigado!
                        Tocando à grama, o Cauê perguntou:
-Posso te contar um segredo?
-Pode.
-Pensei em você o final de semana inteiro.
-Em mim?
-É... Pela forma com que me defendeu...
-Deveria ter me ligado.
-Pra quê?
-Pra conversar, sair, somos amigos, não?
-Ah... Humpft... Eu preferi evitar...
-Evitar?
-É.
-Por quê?
-Pra ver se te esqueço um pouco.
-Esquecer de mim? Você não...
-Rustom, desculpa, mas eu acabei confundindo as coisas.
-Que coisas?  
                        Aproximando-se de mim ele tentava explicar:
-Você sempre foi muito legal, e isso acabou mexendo comigo de uma tal maneira que quando me dei conta, era tarde demais, eu já estava apaixonado por você. Eu não quero que a nossa amizade...
-Cauê, fique calmo.
                        Tocando em sua mão, continuei:
-Eu também tenho sentido algo diferente por você.
-O quê?
-Não sei explicar... Passei o final de semana pensando em você, até quis te ligar... Sua presença me faz bem, sinto vontade de te abraçar...
-O que mais?
-De te beijar...
                        Aproximei-me dele, e aproximei-me pouco a pouco, iniciando um delicioso beijo na boca. Meu coração bateu acelerado, e o do Cauê também. Seus lábios tocavam levemente os meus, enquanto sua mão direita apoiava-se em meu peito. Naquele momento o mundo ao nosso redor se transformou. O cheiro da grama tornou-se mais forte, o som dos pássaros mais nítidos e os meus sentimentos mais claros.
                        Chacoalhando a outra mão o Cauê interrompeu o beijo exclamando:
-Ai!... Tem alguma coisa no meu braço...
-Calma... Era só uma borboleta.
-Ah... Pensei que fosse um pássaro perigoso.
-Hahaha... Não... Existe muita diferença entre eles.
-Tom...
                        Acariciando sua mão questionei:
-Eu?
-Como é uma borboleta?
                        Fui pego de surpresa com aquela pergunta. Como eu poderia descrever sobre algo para alguém que não enxergava? Encostei sua cabeça em meu peito e com toda paciência e cautela tentei explicar:
-A borboleta é um ser muito bonito. Possui muitas cores e...
-É como as flores?
-Não, é muito mais colorida... E fina como uma pétala de uma rosa.
-Nossa!... Deve ser realmente linda.
-Muito!
                        Sentando-se novamente à grama o Cauê começou a tocar meu rosto com as pontas dos dedos. Fechei meus olhos. Enquanto ele tocava parte por parte de minha face, uma sensação diferente acariciava minha alma, brotando dentro de mim uma felicidade sem explicação.
                        Esboçando um leve sorriso ele comentou:
-Como você é bonito, Tom!
-Bonito?
-Sim... Muito!
-Como você sabe?
-Um deficiente, devido ao seu problema, acaba desenvolvendo outras habilidades. No meu caso, possuo o tato, olfato e audição mais desenvolvidos.
-Que coisa curiosa! Você já nasceu assim?
-Não. Fui vítima de uma doença chamada Fibroplasia Retrolental
                        A Fibroplasia Retrolental é uma doença ocasionada pelo uso em excesso e não controlado do oxigênio em recém-nascidos. Se diagnosticada precocemente ela pode ser tratada ou evitada.
                        Acariciando seu cabelo comentei:
-Eu acho que todo ser humano seria mais feliz se estivessem essa percepção que você demonstra ter. Hoje em dia as pessoas enxergam apenas o superficial, até onde os olhos podem ver.
-Será que elas são felizes?
-Eu gostaria de ter essa sensibilidade.
-Então desenvolva.
-Como?
-Feche os olhos.
-Fechar meus olhos?
-É... Confie em mim?
-Eu confio.
                        Fechei meus olhos e permaneci sentado à grama. Pouco a pouco fui sentindo suas mãos tocarem meus ombros e deitarem meu corpo. Continuei de olhos fechados. A respiração faltava-me a medida em que minha emoção e sensação de bem estar tornava-se mais forte, intensa.
                        Tocando em minha mão ele colocou algo, dizendo em seguida:
-Pegue...
                        Curioso, questionei:
-O que é isso?
-Sinta e me diga você o que é.
-Deixa eu ver...
-Ver não... Sentir...
-Isso.
                        Logo quando o peguei nas mãos senti que era algo orgânico. Apalpei com as duas mãos e notei a textura áspera, e se desfazia ao apertar com força. Confuso, o apalpei ainda mais. Em momento nenhum eu abri os olhos. Fiz tudo da maneira que ele pediu, e confesso que foi difícil.
-Nossa!
-O quê?
-É muito difícil...
-Não é difícil, basta você sentir com o coração, tocar com a alma...
-Humpft...
-Sinta a forma, textura, cheiro...
-Já sei!
-Já?
-Sim...
-Então o que é?
-Um pinhão.
-Acertou!
                        Abri os olhos e realmente era um pinhão.
-Não entendo...
-O quê?
-Como eu consegui acertar sem muito chonhecer um pinhão.
-É simples... Todas as características dele já estavam em seu inconsciente, bastava ter contato para associá-las.
-Que legal!
-Feche os olhos.
-Outra vez?
-Sim.
-Pronto.
-Sinta o cheiro dessa leve brisa...
-Hum!...
-Ouça o cantar dos pássaros...         
                        Enquanto eu fazia o que ele pedia, diferentes sensações de percepção eu sentia. Jamais havia parado em minha vida para sentir o cheiro do vento, aliás, eu nem sabia que vento tinha cheiro, e o canto dos pássaros passavam despercebidos misturados ao barulho da cidade.
-Cauê...
-Eu?
                        Toquei levemente em seu rosto e o acariciando falei:
-Você é um cara muito especial.
-Por quê?
-Humpft... Você me faz sentir diferente...
-Diferente como?
-Não sei... Sua companhia me faz bem...
-Que bom!
-Com você eu aprendi muito, principalmente a enxergar o verdadeiro valor das coisas.
-Pare que se não vou chorar.
-Tudo bem, não quero que você chore. Posso te dar mais um beijo?
-Com toda certeza.
                        Nos abraçamos novamente, iniciando um beijo molhado e cheio de vontade. O Cauê foi o responsável por me apresentar o lado mais bonito das coisas, um mundo que eu ainda não conhecia, assim como a maior parte da humanidade.
                        Aquela tarde foi inesquecível. Cheguei em casa já estava anoitecendo. Coloquei a mochila sobre o sofá quando o telefone começou a tocar:
-Alô?
-Rustom?
-Oi mãe!
-Estou ligando a tarde inteira e ninguém atende esse telefone...
-É que eu não estava em casa, acabei de chegar.
-Aonde você foi?
-Fui conhecer o Jardim Botânico.
-Humpft... Eu preciso que você tire do freezer o bife para o jantar...
-Tudo bem.
-Nem sei se vai dar tempo de descongelar.
-Então eu vou pôr pra descongelar no microondas.
-Ta.
-Era só isso?
-Só.
-Você está bem?
-Humpft... Estou, filho.
-Ele... Está ai?
-Sim, mas não está falando comigo...
-Melhor assim.
-Preciso ir, filho...
-Então ta bom, vou tomar banho.
-Beijo.

                        Fui até meu quarto pegar uma peça de roupa e deixar minha mochila, logo em seguida entrei no banheiro para tomar banho. A sensação que eu tinha era de estar pisando em algodão, flutuando, pois meu corpo estava leve, e o sorriso ia de orelha a orelha, tamanha era a felicidade que eu estava sentindo.

terça-feira, 19 de abril de 2016

O QUE OLHOS NÃO VEEM - CAPÍTULO 2



CAPITULO 2 - MUDANDO DE SALA

                       Durante aquela noite tive um pesadelo horrível com o Cauê. Talvez fosse a preocupação e ansiedade pelo que acontecera, porém, mesmo sendo um sonho deixou-me muito angustiado. Ao acordar não conseguia me lembrar de nada. Olhei no relógio e faltavam dezessete minutos para as seis.
                        Bocejando, desci até a cozinha. A cafeteira estava ligada. Logo apareceu meu pai, que me cumprimentou com um “bom dia” seco e a cara fechada, típico mau humor ao acordar que ele tinha como ninguém mais. O clima entre ele e minha mãe parecia não estar nada bem.
                        De óculos escuro e colocando os brincos, minha mãe apareceu à cozinha exclamando:
-Bom dia!
-Bom dia, mãe!
-Rustom, vou precisar do carro hoje.
-Tudo bem, eu pego um ônibus.
-Não é necessário. Eu te deixo na faculdade e depois vou trabalhar.
-Ah... Tudo bem então.
                        Sem dizer nada, meu pai saiu batendo a porta da sala. Enquanto isso eu e minha mãe tomávamos nosso café, calados. Achei estranho ela usar um óculos escuro dentro de casa, mas também fiquei sem graça de perguntar.
                        Já no carro, o caminho todo ela foi calada, dando respostas fechadas ao que eu perguntava. Às vezes eu percebia em minha mãe uns comportamentos estranhos, pensava até que fosse coisas de mulher, e por isso evitava querer saber mais do que ela quisesse me contar.
                        Ao chegar na faculdade, nos despedimos com um beijo, em seguida ela foi trabalhar. Eu sentia que alguma coisa havia acontecido, mesmo não me contando, eu a conhecia, e tinha certeza que queria me contar, mas lhe faltava coragem.
                        Na hora do intervalo desci até a praça de alimentação para comprar um sanduíche de pão sírio que eu adorava. Sobre os azulejos brancos das paredes havia um cartaz informando os alunos sobre as novas carteirinhas da escola, próximo ao portão que dava acesso ao prédio de Medicina. Ouvindo meu MP5 notei que as mesas estavam vazias, e ao aproximar-me mais avistei o Cauê tomando seu suco de melão.
                        Comprei meu sanduíche, aproximei-me dele e tapei seu olho, de forma a brincar com o Cauê. Ao tocar em minhas mãos ele deu um sorriso e exclamou em seguida:
-Rustom!
-Acertou! Posso me sentar aqui com você?
-Mas é claro... Queria muito te rever.
-Ah é?
-Sim... Para lhe agradecer por ontem.
-Eu também queria te ver.
-Sério?
-É... Para ter certeza que você está bem.
-Poderia estar melhor se as pessoas me entendessem.
-Por que está dizendo isso?
-Porque o pessoal da sala fica me caçoando...
-Caçoando por quê?
-Porque não enxergo.
-Humpft... Que idiotice...
-Fico muito triste...
-Essas pessoas não sabem reconhecer o verdadeiro valor das outras.
-Acho que vou desistir de fazer faculdade.
-Por causa disso?
-É...
-E vai entregar o ouro na mão do bandido?
-Como assim?
-Se você desistir, eles vão se sentir vitoriosos e você estará dando razão a eles...
-Mas eu fico muito chateado.
-Pois não fique. Mostre a eles que você é mais forte do que aquelas piadas destrutivas.
-Humpft... Você não sabe o quanto suas palavras me fazem bem.
-Posso te contar um segredo?
-Pode.
-Eu também me senti super bem na sua companhia.
-Sério?
-Sim...
-Nossa!... Ninguém nunca disse isso para mim antes.
-Nunca?
-Nunca.
-Então agora eu disse. Pronto.
                        Sem que eu esperasse ele começou a chorar.
-Ei... Por que você está chorando?
-Porque fiquei emocionado.
-Nossa... Eu que sou o Emo e você quem chora.
-Emo?
-É...
-O que é isso?
-Bem... Emo é um estilo de música mais sentimental dentro da categoria do Rock.
                        Emo é a abreviação da palavra inglesa Emotional, pertencentes a um gênero de música denominado Emotionalcore, derivado do Hardcore. Originalmente o termo foi dado às bandas do cenário Punk da cidade de Washington, que compunham num ritmo mais emotivo que o habitual.
                        Hoje em dia, Emo tornou-se um rótulo para os adolescentes que usam roupas com pelo menos dois números menores que seu biotipo, com franjas caídas sobre os olhos, mochilas com bottons e chaveiros com bichos presos aos zíperes, munhequeiras, entre outros.
                        Esboçando um pequeno sorriso o Cauê exclamou:
-Que legal!
-Legal nada, se você soubesse o tanto de preconceito que já sofri e ainda sofro por isso.
-Não entendo...
-O quê?
-Se você é uma pessoa pelo amor, por que existem aquelas que não gostam?
                        Os Emos se autodefinem como sensíveis, carinhosos, calmos e que não gostam de briga, querem apenas amar e serem amados. Por chorarem com frequência e pela forma com que se tratam entre si acabam sendo mal compreendidos, recriminados, marginalizados, agredidos verbalmente e fisicamente por outras tribos, ofendidos, vítimas de preconceito quase que constante.
                        Existem várias versões que tentam explicar a origem desse termo, mas a versão mais aceita como sendo a real é a de que o nome foi criado por publicações alternativas, tal como o fanzine Maximum RocknRoll e também a revista Thrasher, para falar sobre a nova geração de bandas de hardcore emocional que mostrava no meio dos anos 80, derivadas de algumas bandas da gravadora Dischord de Washington.
                        No Brasil, o estilo Emo começou a ganhar muita influência a partir de 2003, começando por São Paulo e espalhando-se depois para todo o país, influenciando adolescentes não apenas a um estilo musical, mas também pelo comportamento emotivo e tolerante de ser. Dentro da cultura alternativa, quando alguém demonstra muita sensibilidade diz-se que é ou está tornando-se Emo.
-Na verdade, a maioria daqueles que não gostam nem sabem o motivo, simplesmente não gostam porque o colega disse que também não curtia. Não fazemos nada de mal a ninguém, apenas acreditamos no amor.


"Esses dias na escola eu estava respondendo o caderno de perguntas da minha melhor amiga, e tinha uma questão perguntando o que a pessoa achava dos Emos. Ela respondeu que Emo era uma palhaçada e que eram gays. Fiquei muito chateada com ela, chegando a conclusão de que ela não gosta de mim, não era minha amiga verdadeira, porque se fosse não iria estar falando isso dos Emos e me apoiaria em qualquer mudança." (Srtá Nahty, 15 anos, São Paulo)


-Eu imagino, Rustom...
-Posso te contar um segredo?
-Claro!
-Eu já fui expulso de três colégios em um único ano.
-Nossa!... Pelo fato de ser Emo?
-Não, por envolvimento em brigas.
-Mas você não disse que é contra tudo isso?
-E sou, mas diferente da maioria dos Emos, não sei apanhar e ficar calado.
-Batiam muito em você?
-Tentavam, mas eu sei me defender muito bem, e também não sou de chorar por qualquer coisa.
-Entendo.
-Vamos subindo? O professor já deve estar na sala...
-Tudo bem.
                        Ao nos levantarmos, peguei em seu braço quando ele falou:
-Não...
-O que foi?
-Deixe que eu seguro em você.
-Ah!... Tudo bem...
-As pessoas têm mania de pegar pelo braço da gente e puxar de uma forma que machuca...
-Sério?
-Sim... Fora aquelas que gritam no nosso ouvido achando que além de cego, somos surdos.
-Que horror! Acontece muito isso?
-Sim, principalmente quando pedimos ajuda ou informação na rua...
                        Enquanto caminhávamos em direção ao elevador, notei que algo de estranho estava acontecendo. As pessoas passavam por nós rindo, cochichando. O motivo eu descobri logo, assim que percebi um papel colado às costas do Cauê onde estava escrito “me chute”.
                        Tratei de tirá-lo sem que ele percebesse, pois poderia magoá-lo ainda mais do que já estava. Esse tipo de coisa deixa-me revoltado, pois enquanto somos punidos e obrigados a nos esconder para demonstrar o amor, guerras acontecem diante aos nossos olhos em plena luz do dia.
                        Após acompanhá-lo até sua sala, voltei para a minha que ficava ao lado. O segundo dia de aula até que foi melhor que o primeiro, pois a matéria era mais interessante e o professor, jovem, bem mais comunicativo e espontâneo. Ele parecia ter “recarregado as baterias” , pois passou tanta lição que meu braço já começava a doer.
                        Ao término da aula, juntei minhas coisas na mochila e parei em frente a sala do Cauê para ver se ele já estava de saída, mas ao aproximar-me avistei o ambiente vazio, provavelmente já haviam sido dispensados mais cedo. Desci pelo elevador de serviço, deixando o prédio da faculdade pelo acesso da praça de alimentação
                        Seguia tranquilamente pela calçada em direção à estação de metrô, quando do outro lado da rua avistei o Cauê, caminhando em passos curtos em direção ao ponto de táxi, com o auxilio de sua vareta. Atravessei à rua e dirigia-me até ele quando dois rapazes o cercaram. Após tirarem a vareta de sua mão, atiraram ao chão seus livros, e sem entender o que acontecia, o Cauê começou a chorar, apreensivo.
-Por favor, não me machuquem...
-Olé... Olé...
-Pára, por favor, pára...
                        Corri até eles e arranquei a mochila do Cauê da mão de um dos caras.
-Tira a mão dele... Eu já chamei a polícia, você tá ferrado...
                        Apreensivos, os garotos saíram correndo sem olhar para trás. Caído ao chão, o Cauê chorava com sua cabeça apoiada sobre seu braço esquerdo. Ver aquela cena partiu-me o coração. Abaixei-me à sua frente, e acariciando seu cabelo falei:
-Ei... Calma, já passou...
                        Ao erguer sua cabeça, notei que o seio direito de sua face estava ferido, decorrente da queda provocada por um empurrão de um dos garotos.
                        Peguei em seu braço e o ajudei a levantar. Entregando seus livros em sua mão falei:
-Não se preocupe, eles já foram.
                        Tremendo, ele disse com a voz embargada:
-Obrigado... É você, Rustom?
-Sim...
-Nossa!...
-O quê?
-Você está sempre me ajudando...
-Vai ver é coisa do destino.
-Você acredita em destino?
-Acredito que nós fazemos nosso destino... Para onde você estava indo??
-Para o ponto de táxi.
-Vamos de metrô...
-Estou com medo de andar de metrô.
-Por quê?
-Hoje pela manhã eu fui empurrado e acabei caindo...
-Nossa! Mas não se preocupe, eu estou aqui com você. Ninguém irá te empurrar.
-Você promete?
-Sim... Confia em mim?
-Humpft... Confio.
-Bem... Guarde esse dinheiro para tomar um sorvete, deixe que eu te acompanho...
-Só se você aceitar tomar esse sorvete comigo.
-Tenho outra opção?
-Não.
-Então ta, eu aceito.
-Oba!
-Agora deixa eu te ajudar...
                        Enquanto caminhávamos íamos conversando:
-Rustom...
-Pode me chamar de Tom.
-Tom?
-É...
-Tudo bem, Tom... Eu ainda não devolvi sua blusa ainda porque minha mãe lavou e não deu tempo de secar, mas não se preocupe que logo ela estará de volta aos seus braços.
-Ah! Obrigado, mas não precisa de tanto...
-Minha mãe estranhou um pouco.
-O quê?
-Os desenhos dela...
-Você se refere aos rebites?
-O que é rebite?
-São aqueles ferrinhos que têm na manga.
-Ah!... Não, foi os botões... Tanto que ela duvidou quando eu disse que era de um menino, mas depois que você me contou que é Emo eu to começando a entender.
-Entender o quê?
-Que todo Emo é gay.
-Isso não é verdade.
-Não?
-Não... Os Emos são sensíveis, gostam de amor e carinho, mas nem todos são gays. Têm aqueles garotos que cumprimentam os amigos com um beijo na boca, mas isso não altera a sexualidade deles, pois as meninas que os atraem...
-Nossa!... Pensei mal de você então.
-Por quê?
-Porque achei que você fosse gay.
-Mas eu sou gay.
-Oh!... Eu já não estou entendendo mais nada.
-Hahaha... Deixa pra lá...
-Então ta...
                        Mesmo não enxergando, o Cauê possuía uma percepção muito aguçada, conseguindo identificar os sentimentos de alguém apenas por um gesto, voz, respiração, uma sensibilidade inigualável que me deixava impressionado.
                        A aula estava um saco. O professor pouco falava, em compensação encheu a lousa de textos, mal dando tempo de respirar enquanto escrevíamos. Quando deu a hora do intervalo, todos respiraram aliviados, e com razão, pois meu braço já estava doendo.
                        Desci a escada em direção ao jardim, e logo ao pisar à grama avistei o Cauê sentado em uma das mesas. Suspirei fundo. Caminhei em sua direção e antes que eu dissesse qualquer coisa ele exclamou:
-Tom!
-Nossa!... Como você sabe que sou eu?
-Reconheci pelo seu perfume.
-E se fosse outra pessoa usando o mesmo perfume que eu?
-Sei reconhecer o seu perfume misturado ao cheiro de sua pele.
-Uau! Eu já ia te procurar...
-Ah sim, não esqueci de sua blusa. Minha mãe já lavou e...
-Não se preocupe. O motivo foi outro...
-Qual?
-Eu queria saber como você estava, apenas.
-Humpft... Eu estou bem.
-Que bom!... Seu rosto está bem melhor...
-Minha mãe colocou um pouco de gelo para diminuir o inchaço.
-E deu resultado.
-Acho que sim, pelo menos não está doendo tanto.
-Humpft... Como foi seu segundo dia de aula?
-Chato. Não gostei muito do pessoal da minha sala...
-Qual curso você está fazendo?
-Direito.
-Eu também!
-Nossa! Por isso sua sala é ao lado da minha.
-Que bacana!
                        Enquanto conversávamos, achando que eu não ia perceber, um garoto trocou discretamente o tubo de ketchup pelo de pimenta. Sem perceber, o Cauê pegou o vidro de pimenta e quase colocou em seu sanduíche, mas antes que isso acontecesse, eu o avisei:
-Não!
-O que foi?
-Um imbecil trocou por pimenta o ketchup...
-Humpft... Eles não cansam de me agredir...
-Agredir?
-É... Não só fisicamente como ontem, mas com piadas, ofensas...
-Que tipo de agressão mais você sofreu?
-Humpft... Deixe pra lá, não vale a pena falar disso.
-Não. As pessoas não podem abusar de você devido sua condição.
-Eu já estou acostumado...
-Mas você não deve aceitar tudo isso calado.
-E o que eu posso fazer?
-Cobre seus direitos.
-Eu tenho medo... As pessoas são más...
-Não precisa ter medo, agora eu estou aqui pra te ajudar.
-Mas você não está ao meu lado o tempo todo.
-Humpft... Não se preocupe. Hoje mesmo vou pedir para mudar de sala, assim ficarei mais próximo de você.
-Tudo isso por mim?
-Não só por você, mas para acabar com um pouco das injustiças que somos vitimados no dia a dia.
-Ah!
-Estou indo até a secretaria.
-Tudo bem.
-Nos vemos depois?
-Claro!
                        Todo início de ano letivo é aquele tumulto. Problemas com os cartões RA, confusão com boleto de matrícula, acumulam o trabalho da secretaria, e aqueles que precisam de uma simples informação acabam prejudicados.
                        A fila na secretaria estava enorme. Peguei a senha de número 122 e fiquei aguardando ser chamado.
-Bom dia!
-Bom dia!... Eu quero saber o procedimento para mudar de sala.
-Por qual motivo você quer mudar de sala?
-Não estou me adaptando nessa turma que estou.
-É que todo início de aula é assim, mas depois os alunos acostumam.
-Sim, os alunos sim, mas eu não sou os alunos, sou um aluno e sei o que eu quero. Por favor, faça minha transferência para a turma ao lado.
-Olha, eu não sei se será possível...
-É possível sim. Por gentileza, me transfira.
-Humpft... Qual é o seu RA?
                        Depois de muito insistir, finalmente consegui a transferência para a turma do Cauê. O que faltava era boa vontade daquela funcionária, pois a turma dele havia metade dos alunos que a  minha, sendo assim não haveria problema quanto a disponibilidade de vaga.
                        Alguns dias se passaram. Cheguei à faculdade ansioso, não vendo a hora de contar ao Cauê a novidade. Peguei uma carona com minha mãe, como fazíamos sempre que ela iria precisar do carro durante as tardes. Enquanto aguardava o elevador, avistei o Cauê entrar pelo acesso de apoio, ao lado das catracas.
                        Aproximando-me dele exclamei:
-Que bom que te encontrei!
-Bom dia, Tom!
-Uau... Você está com um ar de felicidade...
-Sim, estou muito feliz...
-Posso saber o motivo?
                        Colocando o pé direito à frente ele disse sorrindo:
-Veja!... Ganhei da minha mãe.
-Que lindo tênis!
                        Ainda estava um pouco cedo para o início da aula, sendo assim, seguimos para o jardim, e envolta do chafariz continuamos a conversar:
-Minha mãe é tão boa comigo...
-Eu percebo que você fica feliz com coisas bem simples.
-O valor das coisas está na satisfação que elas podem trazer...
-Ganhar um presente de quem a gente gosta não tem preço mesmo.
-Minha mãe falou que ele é vermelho.
-Sim, é muito bonito.
-Tom...
-Eu?
-Como é o vermelho?
-Bem... O vermelho é uma cor muito bonita, viva, chama atenção...
-É parecida com o verde?
-Hahaha... Não, o vermelho é uma cor muito mais quente, agressiva...
-Nossa!... Deve ser muito linda.
-Tenho uma novidade que vai te deixar ainda mais feliz.
-Qual?
-A partir de hoje eu começo a estudar na mesma sala que você.
-Sério?
-Sim.
-Que notícia maravilhosa!
-Agora eu vou estar do seu lado, ninguém mais te fará mal.
                        Demos um abraço e logo depois seguimos para a sala de aula. No início passei desapercebido entre os alunos do primeiro A, mas nem precisei fazer nada para que fosse notado e assim começassem as provocações.
                        Piadinhas rolavam a solta no decorrer da aula, porém, não afetaram-me nem um pouco. Sentado à carteira ao meu lado o Cauê aproximou-se de mim sussurrando:
-Está vendo? É todo dia assim...
-É só fingir que não é com você.
-Às vezes é difícil...
-Você já denunciou à coordenação o ocorrido no primeiro dia de aula?
-Humpft... Não...
-Por quê?
                        Antes que ele respondesse o professor pediu atenção:
-Pessoal, silêncio... Prestem atenção aqui... Abram o livro na página 37 e observem o capítulo 12...
                        Durante o primeiro período de aula tivemos o esclarecimento de alguns capítulos do livro e exercícios complementares. Pra mim foi fácil, pois a turma em que eu estava anteriormente já havia feito aqueles exercícios, estando adiantados com relação a sala do Cauê. 
                        No horário do intervalo segui até a coordenação. Sentada em uma mesa estava a recepcionista, que mesmo notando minha presença, não parou de digitar no computador à sua frente.
-Bom dia?
-Bom dia! Posso ajudar?
-Eu quero falar com o coordenador do curso de Direito.
-Ah!... Com a Gabriela... Bem, ela ainda não chegou...
-E que horas ela chega?
-Não sei se ela vem hoje...
-Como não? Então quem responde pelo curso nesse momento?
-Agora não tem ninguém...
                        Com uma pasta na mão e falando ao celular finalmente a Gabriela chegou. Levantando-se da cadeira a recepcionista disse à ela:
-Gabriela, esse rapaz quer falar com você...
                        Desligando o celular a Gabriela disse:
-Depois eu te ligo, tchau... Você quer falar comigo?
-Sim.
-Pode falar.
-Prefiro que seja em um local reservado.
-Vamos até minha sala então.
                        Entregando-lhe um papel, a recepcionista falou:
-Gabriela, o professor Ricardo deixou esse recado pra você.
-Obrigada!
                        Seguimos pelo corredor até sua sala. O barulho do contato de seu salto com o piso soavam num alto eco. Tirando uma chave de sua bolsa ela lamentou:
-Nossa!... Hoje o trânsito está um caos... Pode entrar...
-Obrigado!
                        Após fechar a porta ela disse:
-Sente-se... Em que posso te ajudar?
-Eu quero fazer uma denúncia.
-Denúncia?
-Sim...
                        Colocando um chiclete em sua boca ela questionou:
-Qual seria?
-Há alguns dias um colega de classe sofreu um trote violento...
-Desculpe, mas qual é o seu nome?
-Rustom.
-Rustom, a faculdade não permite que trotes aconteçam dentro dos campus, mas não temos como impedir que isso aconteça fora... Além do mais, a prática de trote é normal em grandes universidades.
-Entendo, mas o trote que meu amigo sofreu foi na piscina aqui do campus... Se é que se pode chamar aquilo de trote, pois pra mim foi uma tentativa de homicídio.
                        Apoiando-se ao encosto da cadeira ela questionou:
-E o que te fez supor que houve uma intenção homicida nisso?
-Acha normal um grupo de garotos jogar uma pessoa que não sabe nadar em uma piscina semi-olímpica?
-Mas nossa piscina possui bóias, bordas, sinalização... Mesmo não sabendo nadar, identificar as bóias e chegar até elas é simples...
-Não para um deficiente visual.
-Como?
-Gabriela, estamos falando de um deficiente visual.
-Um cego?
-Sim...
-Seria o Cauê do primeiro A?
-Exato.
-Bem, nos falamos há poucos dias e ele nunca tocou nesse assunto...
-Acontece que ele tem medo.
-Humpft... Você sabe quem são esses garotos que o jogaram na piscina?
-Não me recordo da fisionomia deles.
-Há alguma outra testemunha que possa reconhecê-los?
-Acredito que não.
-Nesse caso não posso fazer nada...
-Como não?
-Não há como fazer uma acusação sem ter um culpado.
-E essas câmeras do circuito interno servem para quê?
-Para a segurança de vocês.
-E que segurança é essa que mal consegue identificar um momento como esse?... Como faço para solicitar essa gravação?
-As filmagens ficam armazenadas em um servidor... E há três dias nós tivemos um problema e perdemos todos os dados armazenados...
-Ou seja, nada poderá ser feito. Estou certo?
-Humpft... Infelizmente.
-Que absurdo!
                        Deixei sua sala indignado com o descaso. O que me deixou pior foi a indiferença com que a Gabriela tratou o caso, agindo com naturalidade e não demonstrando em nenhum momento espanto ou qualquer surpresa quanto ao fato.