segunda-feira, 22 de agosto de 2016

O QUE OLHOS NÃO VEEM - CAPITULO 16



Naquela noite, tivemos o melhor jantar de nossas vidas até então, pela primeira vez um momento mãe e filho.
-O que você acha se eu fizesse uma reforma na lanchonete?
-Sabe que eu acho... Você deveria transformar aquele lugar em um bar-restaurante.
-Como assim?
-Aproveitar melhor os espaços... O que acha de uma pista de dança no segundo andar?
-Mas pista de dança não combina com restaurante...
-Restaurante durante o dia, né?
-E a noite música?
-Sim.
-Até que não é uma má ideia.
-Mãe... Ele não te procurou mais?
-Rustom...
-Por favor, não esconda nada de mim.
-Não... Ele não me procurou mais.
-Melhor assim.
            Fiquei aliviado em saber que meu pai parou de procurar pela minha mãe. Provavelmente ele havia se conformado com a separação proposta pela minha mãe, e finalmente nos deixando em paz para sempre.
            Após jantarmos, voltamos para casa. O relógio marcava dez e dez da noite. Entramos pela porta da cozinha, e após deixar a chave à fechadura minha mãe colocou sua bolsa sobre à mesa dizendo:
-Nossa... Me deu uma vontade de comer um bolo...
-Agora que você vem dizer?
-É porque agora que me deu vontade.
-Vontade de comer bolo às dez da noite...
-O que tem de errado?
-Nada... Mas na geladeira não tem um de laranja?
-Sim, mas minha vontade é de chocolate... Eu vou fazer um.
-Hum... Então eu não vou dormir tão cedo... Quero um pedaço de bolo também.
-Tá...
-Enquanto isso eu vou ver TV no meu quarto...
-Te aviso quando estiver pronto.
-Acho que o cheiro me avisa antes...
            Subi para o meu quarto, troquei de roupa e deitei em minha cama. O Cauê não me saia da cabeça. É impressionante como algumas pessoas podem mudar outras vidas, deixando em nossas mãos a felicidade, como um controle remoto do destino.
            De braços cruzados, encostei-me ao canto da janela enquanto observava o movimento da rua no breu do quarto, pensando e planejando o meu futuro ao lado do meu amor. Em um certo momento, reparei algo suspeito no portão. Imediatamente peguei meu celular que estava sobre a cama e disquei para a polícia.
-Alô? É da polícia?
-Sim...
-É que tem alguém tentando entrar em minha casa...
-Tente manter a calma e me passe o endereço.
-Tudo bem.
            Enquanto falava com a pessoa que me atendeu, permaneci próximo à janela, observando atentamente o indivíduo que tentava entrar em minha casa.
-Você consegue me dizer como essa pessoa é?
-Não dá pra ver... O rosto está encoberto pela aba do boné...
-São quantas pessoas?
-Só vejo uma.
            Nesse momento ele conseguiu abrir o portão e entrar. Assustado, exclamei:
-Oh! Ele conseguiu entrar...
            Deixei o telefone cair e corri em direção à porta. Desci a escada em dois pulos, seguindo direto para a cozinha. Minha mãe colocava o bolo no forno, e ao ver-me em prantos, perguntou:
-Rustom! O que é isso?
-Vem, mãe...
            Peguei pelo seu braço puxando-a em direção ao meu quarto. Preocupada, ela questionou:
-O que está acontecendo, Rustom?
-A gente precisa sair daqui, mãe.
            Ao entrarmos em meu quarto, tranquei à porta. Apreensiva, ela quis saber:
-Fala, Rustom? O que está havendo?
-Alguém entrou em casa, mãe...
-Mas quem?
-Não sei... Não te passa nenhuma ideia na cabeça de quem seja?
-Será?
-Sim... Ele veio se vingar...
            Minha suspeita era de que fosse meu pai, e logo se confirmou quando ele conseguiu arrombar à porta da sala gritando:
-Eu sei que vocês estão ai...
-Ah meu Deus!
-Calma, mãe...
            Até então, não sabíamos o que ele queria, mas algo de bom não haveria de ser, pois a maneira com que ele entrou em casa não estava pra fazer amigos. Com receio do que ele pudesse fazer, nos trancamos dentro do banheiro em meu quarto. Minha mãe estava trêmula, com medo do que ele pudesse fazer contra nós.
            Sentando-me ao chão encostado à parede, exclamei:
-Caramba!
-O que foi?
-Esqueci de pegar o telefone... Eu vou lá buscar.
-Não! Por favor, Rustom...
-Calma, mãe. Eu tomarei cuidado...
-Rustom...
-Já volto.
            Abri à porta do banheiro e dei a volta até o outro lado da cama para pegar o telefone que eu havia deixado cair. Peguei-o do chão, e quando me aproximava do banheiro ouvi uma forte pancada à porta do quarto. O susto fez-me tropeçar e cair, desmaiando logo ao bater a cabeça ao chão.
            Permaneci ali, caído, à mercê da violência alheia sem motivo. Preocupada, minha mãe saiu do banheiro e tentou reanimar-me, porém, continuei desacordado. Nervosa ela colocou meu celular em seu bolso, logo em seguida pegou em meus braços e arrastou-me para o banheiro. Não sei quanto tempo permaneci desmaia, só sei que acordei um pouco tonto. Segurando-me a mão, minha mãe chorava com medo que meu pai invadisse o ambiente e nos fizesse alguma maldade. Isso não demoraria a acontecer, pois pela violência com que ele batia à porta, com certeza ela não resistiria por muito tempo.
            Abraçados, mantínhamos distância da porta, porém, não conseguimos evitar a rendição. O ódio que ele sentia por nós estava estampado em sua face, e na sua mão direita havia uma arma de fogo, deixando-nos em pânico ao ser apontada para nós.
-Renato... Pelo amor de Deus...
            Irritado ele pegou pelo braço da minha mãe e a jogou com força sobre minha cama. Nesse momento, quatro viaturas policiais pararam na porta de casa.
-Não põe a mão na minha mãe.
-Cala essa boca, moleque.
            As sirenes das viaturas chamaram sua atenção. Nervoso, meu pai puxou-me pelos cabelos e me arrastou até a janela do quarto. Apontando a arma para minha cabeça, gritava aos quatro ventos:
-Se alguém entrar, eu mato todo mundo.
            A partir daquele instante, estava caracterizado um sequestro, tendo o próprio chefe de família como o criminoso. Em pouco tempo o número de viaturas já havia se multiplicado. A rua foi isolada, os vizinhos cercaram o portão e as emissoras de TV os céus com seus helicópteros.
            Eu parecia estar vivenciando um pesadelo. Por um momento meu pai fechou à janela, nos deixando totalmente isolados. A tortura psicológica era constante. Quatro horas se passaram e após amarrar-me à cama, foi a vez da minha mãe tornar-se alvo daquele covarde.
-Está pensando que eu vou deixar tudo de mão beijada pra você?
-Renato, por favor...
-Se você acha que vai se sair bem dessa, está enganada.
-Você não está bem...
-Eu vou acabar com tudo isso...
-Por favor, vamos conversar?
            Pegando forte em seus cabelos, ele questionou:
-Conversar? Agora que você quer conversar?
-Será que você não vê que está prejudicando ainda mais sua situação?
-Estou pouco me importando... Ninguém vai sair vivo daqui.
            Acredito que toda aquela situação poderia ter sido evitada se minha mãe o tivesse denunciado desde o começo, seguindo meus conselhos. Acredito que ela não tenha feito isso por medo que ele fizesse alguma coisa contra mim, pois embora ela negasse, eu sempre desconfiei que as ameaças contra nós eram constantes.
            A vítima ao chegar à delegacia registra um Boletim de Ocorrência, em seguida ela passará pelo exame de corpo de delito. Se a parte agredida não retirar a queixa posteriormente (Como acontece em grande parte dos casos por medo de represálias) o agressor será notificado a comparecer à Delegacia de Defesa da Mulher e dar seu depoimento. Após isso, o processo será encaminhado ao Fórum e a justiça quem ficará responsável em penalizar o agressor, e não a delegacia.
            Após anos sofrendo violência verbal e física, muitas mulheres procuram a delegacia para denunciar as agressões.

            "Eu lavava, passava, deixava a comida pronta para quando ele chegasse do serviço poder jantar, e ele me xingava de nomes que eu nunca havia ouvido na vida, falava que não eu prestava. Sempre deixei pra lá, até que minha filha me levou à delegacia e eu prestei queixa."  (Sandra, 45 anos, aguentou as agressões durante 12 anos)

            De janeiro a dezembro de 2006, mais de três mil casos de violência foram registrados na Delegacia de Defesa da Mulher (DDM).
            O tempo parecia não passar, e respirar tornava-se cada vez mais difícil, pois uma meia havia sido colocada em minha boca para que eu não falasse ou gritasse. A negociação com os policiais se estendeu pela madrugada adentro, e ao amanhecer, ainda nada estava resolvido.
            Todos estávamos exaustos. Eu já perdia as esperanças, quando avistei alguém se escondendo próximo à porta. Ao mesmo tempo em que fiquei feliz, o medo de que um conflito nascesse também era presente.
            O relógio da parede já marcavam nove horas da manhã. Foi por um descuido de um policial que vi nossas vidas por um fio. Irado, meu pai avistou que haviam entrado em casa e que ele estava praticamente cercado.
-Larga a arma e põe a mão na cabeça...
-Se alguém chegar perto eu mato todo mundo e me mato.
            Imediatamente ele apontou a arma para mim, ameaçando atirar caso alguém se aproximasse. Encorajada pelo instinto materno minha mãe jogou-se sobre mim, usando seu corpo para cobrir-me, servindo como escudo.
            Em 7 de agosto de 2006, o presidente Lula sancionou a lei de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher, recebendo o nome de Lei Maria da Penha. A nova lei altera o Código Penal, permitindo que os agressores tenham prisão preventiva decretada e sejam presos em flagrante, acabando também com aquelas penas solidárias, onde o agressor doa cestas básicas ou paga multa.

"Essa mulher renasceu das cinzas para se transformar em um símbolo da luta contra a violência doméstica no nosso país." (Presidente Lula)

            Após ouvir muitos gritos masculinos e vários passos de pessoas correndo, um tiro soou alto. Percebi que minha mãe havia parado de se mover, fazendo-me entrar em desespero. Por um instante achei que ela estava morta, mas tudo não passou de um susto, pois o tiro havia sido disparado por um policial, atingindo meu pai, e nos livrando de um pesadelo.
            Existem momentos em nossas vidas que nos põe à prova, testando nossas forças e mostrando a nós mesmos até onde as pessoas podem chegar. Sei que cada ser humano possui um limite, e eu já estava próximo do meu.
            A Lei de Execuções Penais altera para permitir que o juiz obrigue o agressor a comparecer em programas de recuperação e reeducação. Além disso, a lei trás uma série de medidas que protegem a mulher agredida, que esteja em situação de agressão onde a vida corre riscos. Uma delas é a saída do agressor de casa. Reaver seus bens materiais e proteção dos filhos também estão incluídos. Passa a ser considerada violência doméstica a violência psicológica. Caso seja constatada a necessidade de tratamento físico ou psicológico, a mulher poderá ficar afastada de seu trabalho por até seis meses sem perder o emprego.
            Para denunciar a prática de violência e orientar os procedimentos, a Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres criou o telefone 180, que recebe diariamente mais de três mil ligações por dia.
            Foram momentos intermináveis que marcariam nossas vidas para sempre, mas que terminou com final feliz, graças a Deus.

            Passei o resto daquele dia dormindo, tentando aliviar o trauma psicológico que havia se instalado em nós. Por mais que eu e meu pai não nos gostássemos, ver seu corpo caído em meu quarto foi traumático, assustador. 

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