No sexto dia após o
acidente, acordei com uma sensação estranha. Nada mais fazia sentido pra mim,
tamanho era o vazio que aquele desastre me deixou. Ainda vestindo apenas uma cueca
samba-canção, desci até a cozinha para beber um copo d'água, e ao chegar
avistei a Soraia e o Kico sentados à mesa conversando com minha mãe.
Assim que perceberam minha presença, pararam de falar.
-Bom dia!
-Bom dia!... Filho... Preciso
falar com você...
-É, Tom...
No fundo eu já sabia, e a presença dos meus dois melhores
amigos à uma hora daquela só confirmaram minha suspeita:
-É o que estou pensando,
não é?
-Foi identificado o corpo
do Cauê.
-Corpo? Que corpo? Meu
Cauê não é um corpo... Nós vamos pra praia, mãe... Vamos conhecer o mar... Ele
disse que iria esperar por mim, ele prometeu...
Chorando, a Soraia abraçou-me dizendo:
-Miguxo... Ele está
presente... Em nossos corações pra sempre...
-Por que as pessoas têm
que morrer, Sô?
-Não sei...
-Roubaram a minha vida, Sô.
-Nós estamos aqui para te
apoiar, Tom.
-Mãe...
-Oi?
-Eu tô morrendo...
-Por favor, não diga uma
coisa dessas...
A identificação mais rápida do corpo do Cauê foi possível
graças à Soraia, que comunicou o IML sobre o bracelete que supostamente ele
estaria usando no momento do acidente, o mesmo bracelete que eu havia lhe dado
antes de embarcar para sempre.
Eu já não tinha mais lágrimas para chorar. Recebi um
abraço como conforto, porém, remédio algum poderia curar minha dor. Eu já não
sentia mais fome, sede, sono. Para dormir eu precisava da ajuda de remédios,
pois nada mais eu sentia, como se deixasse de existir, de viver.
Graças à Soraia e sua mãe, todos os trâmites burocráticos
foram resolvidos para a liberação dos corpos, pois eu não tinha condições
físicas nem psicológicas pra isso. É em hora como essa que nós vemos quem são nossos
amigos de verdade, e graças a Deus eu tinha eles por mim.
Acordei no dia seguinte graças à minha mãe, que entrou ao
quarto trazendo em suas mãos um terno preto, pois se dependesse de mim,
dormiria pra sempre. Ainda um pouco tonto, levantei-me da cama e perguntei:
-Mãe... De quem é isso?
-Seu.
-Pra quê?
-É que hoje terá a missa
de sétimo dia das vítimas na Catedral da Sé...
-Missa... Nós vamos rezar
pelo meu mozinho?
-Sim, meu querido.
-Eu tenho que vestir essa
roupa?
-Sim.
-Tudo bem. Eu vou tomar um
banho e já visto.
-Só não demore, porque a
missa está marcada para daqui a pouco.
-Tá.
Por baixo do terno vesti uma camiseta, com uma foto do
Cauê estampada nela, assim como minha mãe, a Soraia, e todos aqueles que se
sentiram solidários comigo.
Chegamos à igreja e logo entramos. Estava lotada. Sentamo-nos
à primeira fileira, onde estava reservada para os familiares. Eu parecia estar
anestesiado, pois não sentia nada. Emocionada, a irmã da Irene veio
cumprimentar-me, dando um forte abraço e molhando meu ombro com suas lágrimas.
Segurando um lenço branco em sua mão esquerda, ela assuou o nariz e caminhou em
direção à outra fileira.
Permaneci sentado, calado, ferido. Enquanto a missa não
começava eu observava o coroinha ascendendo as velas do altar. Na primeira
fileira, uma senhora segurava em suas mãos um objeto, provavelmente pertencia
ao seu ente querido vítima do acidente. A cada pessoa que a cumprimentava ela
iniciava um ataque de choro, como se revisse os momentos de tortura, vendo quem
ama sendo consumido pela parede de chamas daquela noite.
Olhei para meu lado esquerdo e avistei a imagem de Nossa
Senhora sentada, e em seus braços segurava seu filho Jesus, ferido. Fiquei
imaginando a dor que ela sofreu naquele instante, incontavelmente maior que a
minha, pois sendo mãe o sofrimento é indescritível.
Acariciando meu cabelo, minha mãe disse:
-Você está bem, filho?
-Eu nunca estarei bem,
mãe.
-Não fale assim, Tom...
-Mãe... Alguma vez você já
se imaginou dentro de um tudo de vidro, sem oxigênio?
-Não.
-Pois é assim que estou me
sentindo... Sufocado.
Assisti à missa calado, com a cabeça apoiada ao ombro de
minha mãe. Meus pensamentos estavam longe, perdidos, gritando por socorro em um
deserto de tristeza. Ainda faltando um pouco para terminar a missa, o padre
pediu para que eu fosse à frente, ou melhor, prestar uma homenagem ao Cauê.
Não hesitei. Levantei-me de onde estava e caminhei em
direção ao púlpito enquanto era aplaudido.
-Boa noite!
-Boa noite!
-Bem... Não estou em
condições de falar muito, assim como a maioria de todos vocês, mas farei um
esforço pelo grande amor que sinto... Perder alguém que se ama não é fácil.
Somente quem já passou por isso sabe o quanto dói, marca... Está sendo muito
difícil pra mim ter que me conformar com essa perda, e claro, já se tornou uma
ferida incurável dentro do meu peito. Tem uma música que se chama “Cidade
triste”, cujo a letra diz tudo que sinto nesse momento. Por isso, irei cantá-la
agora, dedicando ao Cauê e todas as vítimas desse trágico acidente...
Quando a banda começou a tocar a melodia, pensei que não
iria conseguir continuar. Comecei a chorar, relembrando os momentos em que fui
feliz ao lado do meu mozinho, e quando estava quase desistindo senti uma leve
brisa me tocar. Naquele momento eu percebi que não estava sozinho, e que o Cauê
estava ali, ao meu lado, esperando ansioso pela minha homenagem.
Cidade triste
A, dor, de ter ver ir
embora,
Fechando as portas,
não dá pra entender
Eu, vi, a cidade sumindo,
Não têm mais sentido,
Não é mais, o meu lugar
Já tentei me perder,
pra não sofrer,
Agora tudo lembra você
E essa solidão,
que me faz ver
A cidade dos sonhos,
Não tem mais o brilho,
Tudo o que é belo se foi
Agora só restou uma cidade
triste (cidade triste)
Composição: Indisponível
Intérprete: Juliana Baroni
Fui aplaudido de pé. Olhando aquela multidão de pessoas a
minha frente, percebi que consegui comover boa parte delas, além do padre
também.
A meu pedido, o corpo do Cauê foi
cremado, e suas cinzas jogadas por mim ao mar, onde um dia eu havia prometido
levá-lo para conhecer. Foi um momento muito especial, onde a brisa do mar
cortando meu rosto fez-me sentir sua presença ali, comigo, como se quisesse me
dizer que estava tudo bem, e que ainda me amava.
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