terça-feira, 15 de março de 2016

LIVRO: PROFISSÃO AMANTE - CAPITULO 13


 | Noite de Natal |
  
            Véspera de Natal. Sem ter onde e com quem passar, acabei aceitando o convite do Leonardo para passar em sua casa com ele e os pirralhos. No início não gostei muito da ideia, porém, o "pacote" vinha completo, com direito a pai e filho, sendo assim, eu teria que me conformar.
            O relógio do meu quarto marcava onze horas da manhã. Enquanto tomava banho ouvi o telefone tocar. Desliguei o chuveiro. Enrolei a toalha na cintura e corri para atendê-lo, molhado e pingando:
-Alo?
-Bom dia, meu moleque!
-Bom dia!
-Que horas você vem? - Perguntou o Leonardo com a voz embargando.
-Daqui a pouco eu tô indo... Estava tomando banho. - Respondi olhando no relógio.
-Ops! Desculpa...
-Não foi nada.
-Bem, então depois que você terminar, pegue um táxi e venha pra cá... Não vou poder buscá-lo porque a Talita ficou de trazer as crianças pra cá.
-Pensei que seus filhos passariam o Natal com ela...
            Após um suspiro, ela falou:                    
-Eu já tinha te falado que eles passariam comigo.
-É mesmo! Eu esqueci.
-A Talita nem liga pros filhos que tem... Enfim... Não demore, tá?
-Tudo bem.
-Beijão.
-Outro.
            Após fazer a barba, vesti a roupa nova que havia comprado especialmente para aquele dia. Sobre a cama estava o presente que eu escolhi para o Leonardo, cheio de frescuras assim como ele. Depois de estilizar meu cabelo e olhar-me ao espalho por mais de dez vezes, peguei a sacola e sai.
            O trânsito estava ótimo, ruas vazias. Aqueles que não viajaram, lotaram suas casas com seus familiares, preparando uma festa da qual eu nunca havia comemorado antes na vida.
            Para ser sincero, eu nunca gostei de Natal. Sempre achei uma data triste, injusta, onde uns comemoram com fartura, enquanto outros passam fome. O pior de tudo é o propósito pelo qual se comemora, que deveria ser em benefício de todos, quando na verdade não passa de um comércio mascarado e cruel.
            Chegando à casa do Leonardo, toquei à campainha e ele abriu à porta para mim. Dando-me um forte abraço, seguido de um delicioso beijo molhado ele perguntou:
-Você está bem?
-Uhum. - Respondi balançando a cabeça com o peito apertado.
           Logo quando entrei, avistei na sala ao lado da escada principal uma bela árvore de Natal, com dois metros de altura, cheia de piscas e enfeites.
            Caminhando em direção a ela, falei:
-Vou colocar o meu presente embaixo da árvore...
            O Leonardo seguiu para a cozinha, logo o acompanhei. Duas empregadas preparavam o que seria servido na ceia, e aparentemente, só maravilhas estavam sendo postas à mesa. Olhar foi o bastante para meu estômago começar a se manifestar, deixando-me até um pouco constrangido, pois o Leonardo percebeu.
-Nossa! Quanta comida... Vai dar tempo delas prepararem tudo? - Perguntei com o olho maior que a barriga.
-Não há o que preparar... Tratei de comprar tudo já pronto. Elas só estão enfeitando e montando.
-Hum... E o que você comprou?
-Para hoje à noite teremos bacalhau assado, salada de maionese, farofa de nozes, arroz com passas, peru, tender...
-Até o peru você comprou pronto?
-Não... Comprei no mercado e mandei assar na padaria.
-Hum... Adoro!
-Tem também salada de polvo, abacaxi com...
-Chega! Quanta coisa... Já estou faminto.
-Não se preocupe, comida tem de sobra.
            Correndo em trajes de banho, seus filhos entraram pela porta da cozinha a gargalhadas. Segurando-me para não dar um cascudo naqueles dois, perguntei com um sorriso forçado à Giovana:
-O que vocês estão fazendo?
            Sem responder os dois deram uma volta em torno da mesa e correram pra sala. Abrindo à geladeira, o Leonardo perguntou:
-Gosta de uva?
-Sim.
-Pegue! - Exclamou aproximando uma baixela com frutas para mim.
            Não resisti ao ver àquela bandeja de uva verde em minha frente. Sentei-me à mesa e comecei a comer, uma por uma. Para ser sincero eu nunca havia comido uma uva tão doce e suculenta como aquela, só podia ser rico mesmo pra degustar daquelas maravilhas.
            Com uma toalha pendurada no ombro, a Giovana voltou à sala. Vasculhando algo na geladeira, o Leonardo perguntou à sua filha:
-Giovana...Você vai voltar pra piscina?
-Não!
-Então vá tirar esse biquíni e tomar um banho.
-Tá!
            Crianças insuportáveis! Aquelas gargalhadas estavam me irritando, mas eu não poderia deixar transparecer minha irritação, pelo contrário, para qualquer efeito, eu "gostava" das crianças.
            No início da noite a mesa para a ceia já estava toda montada, algo tão lindo que eu só havia visto nas revistas e novelas. Após arrumarem tudo, as empregadas foram para suas casas passarem com suas famílias, ficando naquela enorme casa apenas o Leonardo, seus filhos e eu.
            Confesso que não esperava muito daquela noite, mas quando vi a bela mesa decorada, rendi-me ao bom gosto do anfitrião.
            Encostado à janela, olhando pro jardim eu me perdi nos pensamentos. De banho tomado e usando um perfume delicioso o Leonardo desceu à escada, deu-me um beijo no meu pescoço, perguntando-me em seguida:
-O que você tem?
-Estou preocupado, com saudade da minha mãe...
-Por que não liga pra ela?
-Tenho medo.
-Medo de quê?
-De alguma notícia ruim...
-Mas ela está doente?
-Sim.
-O que ela tem?
-Não sei ao certo... É uma doença rara... A última vez que nos falamos ela havia passado muito mal.
            Tirando seu celular do bolso e entregando-me, o Leonardo falou:
-Pegue!
-Pra quê?
-Ligue pra ela...
-Mas Léo...
-Não se preocupe, notícias ruins chegam rápido. Se algo tivesse acontecido, você já estaria sabendo.
-Obrigado!
            Peguei o telefone e comecei a discar, encorajado pelo Leonardo que permaneceu ao meu lado, abraçado a mim, tocando suavemente minha pele com seus lábios levemente umedecidos.
-Mãe!
-Clau... Meu filho...
            Comecei a chorar em silêncio.
-Como a senhora está? - Perguntei apreensivo.
-Eu tô bem... E ocê?
-Agora eu estou melhor, por ouvir sua voz e saber que está bem.
-Estou muito feliz por ocê ter ligado...
-Feliz Natal, mãe!
-Procê também... Eu gostaria tanto de tá do teu lado agora...
-Não se preocupe, ano que vem nós passaremos todos juntos, como uma família de verdade.
-Eu quero muito... Mas não sei se vô tá viva até lá.
-Pare com isso, mãe... Não repita isso nunca mais.
-Eu te amo, meu filho.
-Também te amo, mãe. Dê um feliz Natal a todos ai por mim, tá?
-Tá bem.
-Beijos.
-Bejo.
            Desliguei o telefone e desabei a chorar. Aquela foi a primeira vez que minha mãe disse que me amava, tocando fundo em meu coração. Recebi um forte abraço como conforto, encontrando no Leonardo o apoio que eu precisava naquele momento.
            Limpando minhas lágrimas ele falou:
-Viu só? Não há motivos pra se preocupar...
            Olhando em seus olhos, respondi:
-Eu não mereço você, cara.
-Pare com isso, moleque...
            Acariciando minha face, ele olhou em meus olhos e perguntou:
-Você quer namorar comigo?
            Na hora não acreditei no que acabara de ouvir.
-E então?... Aceita?
-Você tem alguma dúvida de que eu te quero? - Respondi realizado.
            Puxando-me para mais próximo, ele ia dar-me um beijo, quando seus filhos desceram à escada, de banho tomado e vestidos impecavelmente, assim como o pai.
            Tentando subir ao sofá, o Artur disse:
-Papai, tô com fome.
            Olhando para mim o Leonardo questionou:
-Vamos jantar?
-Mas ainda são dez horas...
-Eu sei, mas as crianças já estão com fome.
-Entendi. Vamos então.
            Seguimos para a sala de jantar, nos sentamos à mesa e antecipamos a ceia. O Leonardo tinha um bom gosto indiscutível. Cada detalhe impecavelmente arrumado com adereços temáticos de Natal, e a comida cuidadosamente escolhida e decorada, proporcionando o melhor para seus filhos.
-Que linda, papai! - Exclamou o Artur tentando sentar-se à cadeira.
-Você viu?
            Sentando-me, comentei:
-Engraçado...
-O quê?
-Mesmo você ter nascido e crescido como pobre, não parece... Quem vê de fora acha que você já nasceu rico.
            Após sentar o Artur na cadeira, o Leonardo respondeu:
-Pobreza é um estado de espírito. Eu trabalho duro, mereço desfrutar dos recursos que meu trabalho me proporciona.
-Você tem razão.
-A vida é muito curta para se deixar de aproveitar o que de bom ela pode oferecer.
-Concordo.
            Levando a colher à boca, o Artur perguntou:
-Papai...
-Oi?
-Cadê o Papai Noel?
-Já, já ele chega.
-E eu vou ganhar presente?
-Você se comportou direitinho durante o ano?
-Sim.
-Foi obediente?
-Fui!
-Então ele não vai esquecer de você.
-Oba!
            Enquanto cortava um pedaço do pernil, perguntei:
-E eu?... Será que o Papai Noel se lembrará de mim?
            Sorrindo, o Leonardo perguntou:
-Você se comportou direitinho durante o ano?
            Mesmo sendo uma brincadeira, acabou tocando-me a alma. Reconheço que eu havia sido muito mau pelas ações imorais que vinha cometendo, porém, até então eu não me arrependi de nada.
            Segurando uma colher, a Giovana falou:
-Papai... O que tem nessa farofa?
            Limpando a boca com um guardanapo, ele respondeu:
-Tem coração de frango, nozes, ovo, cebola...
-Eu posso pegar um pouco?
-Pode. Quer ajuda?
-Quero.
            Pegando à colher de sua mão, falei:
-Deixa que eu te ajudo...
            Esforcei-me ao máximo para fingir ser gentil e agradar o Leonardo, quando na verdade eu tinha vontade era de dar um cascudo em cada um deles, pois eu odiava criança.
            Após o jantar fomos todos pra sala. Minha barriga estava enorme de tanto que eu havia comido, mal conseguia andar. Depois de ligar a TV o Leonardo seguiu em direção à janela para fechar à cortina.
            Tentando subir ao sofá o Artur disse:
-Papai... Eu quero ver desenho.
-Qual desenho você quer ver?
-Aquele que o menino perde a mãe.
            Sentando-me ao braço do sofá e segurando uma taça de espumante, perguntei:
-Que desenho é esse?
            Enquanto a Giovana vasculhava os DVD's empilhados em uma enorme estante, o Leonardo respondeu:
-É um desenho japonês de um garoto que vai sozinho pra cidade grande procurar sua mãe.
            Sussurrando, ele completou:
-Chato pra caramba.
-Hahaha...
            Sentamos os quatro ao sofá e começamos a assistir aquele filme idiota. Enquanto a atenção de todos estava concentrada no vídeo, fiquei analisando minha vida e comparando com a deles. Nunca em toda minha existência tive um momento família, onde todos se juntavam para ver TV, jantar, conversar. Por muitas vezes achei que coisas assim só existissem nas novelas e comerciais de margarina, e se os pais soubessem a falta que detalhes como esse fazem na vida de seus filhos, o mundo não seria tão violento como está se tornando.
            Em pouco tempo as crianças adormeceram, ficando somente eu e o Leonardo acordados naquela sala enorme. Aos poucos ele foi levantando-se, tomando cuidado para não acordá-los.
            Caminhando na ponta dos pés, o Leonardo falou baixinho:
-Me ajuda a colocar os presentes embaixo da árvore?
-Claro!
            Enchemos a árvore de pacotes, deixando-a ainda mais linda. Agachado, ajeitava as bolinhas prateadas para que brilhassem com os piscas sincronizados.
            Olhando para mim, o Leonardo disse:
-Vamos até a cozinha?
-Fazer o quê? - Respondi sussurrando.
-Beber um pouco de vinho.
-Opa!
            Após fechar à porta sanfonada, o Leonardo começou a beijar-me loucamente. Tenho que assumir, ele tinha uma pegada muito gostosa, forte e de personalidade.
            Chupando meu pescoço ele encostou-me à parede, continuando nossos beijos com mais intensidade. Levei minha mão à sua calça, e quando abri o primeiro botão ouvimos umas risadas bem baixinhas.
            Afastando-se um pouco, o Leonardo questionou:
-Será que eles acordaram?
-Vamos lá ver...
            Abri à porta e avistei os dois mexendo nos pacotes embaixo da árvore, exibindo sorrisos que iam de uma orelha a outra. Provavelmente o espírito do Natal tocou meu coração naquele instante, pois pela primeira vez eu os vi sem sentir qualquer sentimento repugnante.
            Segurando um pacote quase do seu tamanho o Artur caminhou em direção ao pai exclamando:
-Olha papai!
-O que é isso?
-Meu presente!
-E quem trouxe?
-O Papai Noel.
-Que bacana! E você gostou?
-Sim...
-E cadê ele?
-O Papai Noel já foi embora...
-E o que ele disse pra você?
-Não sei, não vi.
-Será que ele estava com pressa?
-Sim, porque ele tem que entregar os outros presente das otra criança...
            Olhando ao relógio, perguntei:
-Que horas são, Leo?
            Nesse momento fogos começaram a disparar. Sorrindo, o Leonardo olhou pra mim e disse:
-Meia noite. Feliz Natal!
-Feliz Natal! - Respondi dando-lhe um forte abraço.
            Ele correspondeu com um muito gostoso também, fazendo-me sentir todo afeto que aquela data especial nos passa. Aquela foi a primeira vez que comemorei o Natal após a morte do meu pai, ou melhor, esbocei um sorriso contemplando os outros ao meu redor.
            Pegando seus dois filhos no colo ao mesmo tempo, o Leonardo deu um beijo em cada um deles dizendo:
-Feliz Natal, amores da minha vida!
-Feliz Natal, papai!
            Na hora senti um certo repúdio ao vê-los naquele contentamento todo. Acredito que esse tipo de sentimento tivesse algo a ver com a falta de ter recebido carinho de pai como estavam recebendo, ou seja, eu estava era com inveja daqueles pentelhos por terem aquilo que eu nunca tive, mas muito desejei.
            Enquanto eles curtiam seus luxuosos brinquedos, caminhei em direção à árvore, peguei o presente que havia comprado para o Leonardo e o entreguei dizendo:
-Esse é meu presente para você.
-Uau! Obrigado.
            Abrindo o pacote, exclamou:
-Caramba! Era o perfume que eu estava querendo...
-Pois é.
-Como você sabe que era esse?
-Eu sei tudo sobre você.
-Nossa! - Exclamou afastando-se de mim.
-O quê foi?
-Você falou de uma maneira que me causou até medo.
            Mudando de assunto, questionei:
-E eu... Não ganho nada?
-Claro que ganha...
            Tocando em minha mão ele arrastou-me em direção à porta dizendo:
-Crianças... O papai já volta.
            Curioso, perguntei:
-Aonde você vai me levar?
-É surpresa. Feche os olhos.
-Pronto.
-Reservei hoje pra você dois presentes. Um eu já te dei que foi o pedido em namoro.
-E o outro?- Perguntei ansioso.
-Aguarde...
            Segurando em seu braço eu caminhava de olhos fechados, tomando cuidado para não cair nos obstáculos que havia pelo caminho. A curiosidade era imensa, corroendo-me feito corrente elétrica.
            Ao pararmos, respirei fundo e esperei ele dizer algo.
-Agora... Abra os olhos.
           Não vi presente nenhum, desanimando-me na mesma hora. Estávamos na garagem de sua casa, cheia de tranqueiras.
            Abrindo à porta de um dos carros, o Leonardo falou:
-Você sabe dirigir?
-Sei.
-Então me leve pra dar um rolê?
            Dando a volta por trás do veículo, resmunguei:
-Olha... As crianças não podem ficar aqui sozinhas...
-Só uma passada rápida no shopping. - Falou rindo com ironia.
            Sentei-me no banco do motorista, puto da vida e resmungando:
-É ridículo querer comprar presente de última hora.
-Não é isso...
-Então o que é?
-Eu só queria que você me levasse pra dar uma volta no seu carro...
-Você é muito folga... Meu carro?
-É... Não gostou?
            Fiquei sem palavras, anestesiado. Por um certo tempo fiquei sem acreditar que acabara de ganhar um carro, um lindo, moderno e quase novo automóvel.
-Se gostei?... Poxa... Estou sem palavras. - Respondi entusiasmado acariciando o volante.
-Não vai me dar nem um beijo? - Perguntou apoiando-se à porta.
-Mas é claro que vou.
           Desci do carro e o agarrei. Demorou pra cair à ficha de que eu havia ganhado um veículo do qual jamais imaginei ter.
            Enquanto todos dormiam, levantei-me da cama e desci até a sala para contar a novidade a Talita:
-Alô?
-Talita?
-Eu...
            O barulho de fundo era muito alto, parecia estar numa balada.
-Você está me ouvindo? - Perguntei tapando o ouvido esquerdo.
-Estou, fala logo o que você quer?
            Aos poucos os ruídos foram diminuindo, como se ela estivesse se distanciando do local barulhento.
-Não trocou as ferraduras hoje? Feliz Natal, né?
-Feliz Natal pra você também!
-Você está onde?
-Estou em um sítio com meus familiares.
-Ganhou muitos presentes?
-Alguns... Espero que você tenha alguma pra me dar também.
-Ainda não tenho nada, mas em breve eu lhe dou.
-Assim espero.
-Sabe o que eu ganhei?
-O quê?
-Um carro.
-Um carro?
-Sim!
-Mas um carro zero?
-Não... Mas é praticamente zero, porque está em ótimo estado.
-Acho que já sei qual é... Deve ser um que estava na garagem dele...
-É esse mesmo.
-Parabéns!
-Obrigado.
-As crianças já foram dormir?
-Sim. Você nem ligou pra eles...
-Nem precisou, eles me ligaram e nós já nos falamos.
            Olhando o jardim através da janela, comentei:
-Sabe que eu não estou encontrando no Leonardo aquele canalha que você havia pintado?
-Você só o conhece há alguns meses.
-Pode ser que seja isso... Tenho mais uma novidade!
-Qual? Ganhou uma casa também?
-Não seja irônica.
-Hahaha... Se você soubesse o quanto estou abismada...
-Posso imaginar.
-E então? Qual a novidade?
-Finalmente ele me pediu em namoro.
-Aleluia!
-Agora nós temos... - Interrompi a conversa ao ouvir passos.
            Desliguei o telefone sem me despedir. Guardei o celular dentro da cueca, logo avistei alguém descendo à escada. Sem camisa e vestindo uma samba-canção, o Leonardo perguntou-me após bocejar:
-O que houve, moleque?
-Nada...
-Ouvi vozes. Estava falando com alguém?
-Não... Estava falando comigo mesmo.
            Dando-me um forte abraço e um beijo na nuca, comentou:
-Hum... Senti sua falta na minha cama...
-Eu já estou voltando...
-Vou subir e te esperar então.
-Tá bom.
            Eu precisava me policiar mais. Por pouco o Leonardo não me pegou no flagra, e essa possibilidade eu tentava nem imaginar a consequência caso acontecesse.
            Acordamos tarde. Após levantar-me da cama, escovei os dentes, lavei o rosto e fui até a cozinha, pois estava com muita fome. A casa estava silenciosa, vazia. Enquanto todos ainda dormiam, abri a geladeira e peguei umas uvas para comer. Vendo um panetone trufado de chocolate dando sopa, não resisti e o belisquei também. Se eu fosse comer todas aquelas maravilhas, morreria de congestão.
Puxei à cadeira e sentei-me à mesa. Enquanto mastigava uma uva meu celular começou a toca.
-Alô?
-Claus?... Espero que você tenha alguma novidade pra mim.
-Oi, Talita!... Bem, ainda não tive como...
-Como não? Você teve a madrugada inteira para...
-Calma! Não é assim também, você precisa ser mais paciente...
-Então eu acho melhor você começar a preparar sua malinha pra dormir nas escadarias da Catedral da Sé, pois não pagarei um dia se quer do flat a mais por...
-Está bem... Vou ver se consigo algo hoje.
-Estou esperando.
-Feliz Natal.
-Pra vocês também.
E agora, como iria sair dessa? Eu estava lascado, literalmente. Pior era que não me vinha nenhuma ideia a cabeça, e com a pressão que a Talita me fazia, tornava-se mais difícil ainda, pois eu não conseguia pensar em nada.
            Almoçamos já eram quase cinco da tarde. Pegando um pouco de farofa, observava o Leonardo de canto de olho, ajudando o Artur comer um pedaço de peru. Ainda não havíamos terminado quando a Vera chegou. Parecia uma vendedora ambulante, cheia de sacolas arrastando pelo chão, sem contar o perfume horroroso de pobre que empestou o ambiente.
-Verinha! - Exclamou o Artur levantando o braço esquerdo.
-Oi meu amor! Titia Vera trouxe bolo de chocolate pra vocês...
-Oba!
            Segurando o Artur à cadeira, o Leonardo reclamou:
-Vera... Você não tinha que anunciar dessa forma.
-Desculpa, doutor Leonardo.
            Curioso, perguntei:
-Ué... O que tem de mal nisso?
-A Giovana não pode comer doce.
-Por quê?
-Ela tem diabetes Tipo I.
-Nossa! Mas tão novinha?
-Ela já nasceu assim.
            Tenho que admitir, eu era um cara de sorte. Foi só esperar que logo apareceu uma oportunidade de conseguir algo pra Talita. Naquele momento vi uma chance de me dar bem, e logo aquela cretina teria o que tanto queria.
            A Diabetes Tipo I inicia-se normalmente na infância, caracterizada pela falta de insulina, devido a destruição de determinadas células do pâncreas decorrente de processos idiopáticos ou autoimunes. Essa classificação da doença era conhecida como “diabetes infantil” ou “diabetes mellitus insulinodependente”.
            Querendo saber mais, questionei ao Leonardo:
-Ela nunca poderá comer doces?
-Não como uma pessoa normal. Cada vez que ela come, tem que tomar insulina para quebrar as moléculas.
            Devido a pouca ou nenhuma produção de insulina, pessoas que sofrem dela devem receber injeções diárias de insulina. A quantidade diária é variável de acordo com o tratamento escolhido pelo médico, levando também em consideração a quantidade de insulina que o pâncreas é capaz de produzir.
A insulina sintética, ou seja, aquela que é aplicada através de injeções, pode ser de ação rápida ou lenta, de acordo com a necessidade de ingestão do alimento. Após grandes refeições, deve ser aplicada a de efeito rápido. Já a de ação lenta é aplicada ao acordar e antes de dormir. Não basta apenas medicar-se. Há três fatores que devem ser combinados e são de extrema importância, que é a aplicação adequada de insulina, combinada com a alimentação e a prática de exercícios.
            Antes das nove horas da noite todos os empregados já estavam de volta, inclusive a babá. O relógio da sala marcava dez e quinze. As crianças ainda estavam acordadas, brincando sobre o tapete da sala e assistindo televisão.
            Eu sabia que a Giovana iria ter que tomar seu remédio antes de dormir. Enquanto estavam entretidos, fui até a cozinha e peguei uma das ampolas de insulina que estavam na porta da geladeira. Coloquei-a dentro da cueca sem que a Vera nem a Cláudia vissem, seguindo até o jardim onde cavei um buraco à grama e enterrei a prova do crime.
Ao voltar tratei de ser discreto. Entrei pela porta da cozinha e dei de cara com a empregada, tudo para atrapalhar meus planos. Levei um susto, pois se ela estivesse visto o que eu estava aprontando, estaria fodido.
-Senhor Claus?
-Oi!
-Está tudo bem? Precisa de algo? - Perguntou com o olhar desconfiado.
-Não... Ou melhor, preciso sim. Você poderia servir um pedaço de bolo para nós, lá na sala?
-Tá... Eu levo sim.
-Obrigado, Vera.
-Nada.
            Voltei pra sala tremendo. Logo o Leonardo perguntou descendo à escada:
-Aonde você foi?
-Eu?
-É.
-Eu... Fui até o banheiro...
-Banheiro?
-É...
-Usou o banheiro de empregado?
-Não...
-Os banheiros estão no andar de cima.
-Tá bom, eu conto a verdade... Fui pedir pra Vera trazer um pedaço de bolo de chocolate para nós, com bastante cobertura.
            Levantando-se do sofá, o Artur exclamou:
-Oba! Eu quero.
            Percebi que o Leonardo não havia gostado muito da ideia, porém, eu estava pouco me importando se havia o agradado ou não.
            Levantando-se de onde estava deitada, a Giovana perguntou:
-Papai... Eu vou poder comer também?
- Tudo bem, mas só um pedacinho, tá?
-Tá.
            Trazendo uma bandeja com pedaços de bolo cortado, a Vera exclamou:
-Olha o bolo!
            Tirando um objeto de vidro de cima da mesa de centro, o Leonardo falou:
-Pode por aqui.
-Hum... Está com uma cara ótima! - Comentei salivando.
-Calma, Giovana... Deixa que o papai pega pra você.
Enquanto comíamos, o Leonardo fiscalizava o que sua filha ingeria. Desse jeito seria impossível aprontar algo. Alguma coisa precisava ser feita para que ele se afastasse por um tempo.
Peguei mais uma fatia e coloquei em meu prato. Borrifei um pouco de cobertura para descarregar minha raiva. Parti um pedaço com o garfo e ao levá-lo a boca tive uma ideia. Deixei que parte caísse sobre minha camiseta propositalmente, torcendo para que meu plano desse certo.
-Droga! - Exclamei aparentando estar irritado.
Mastigando, o Leonardo fez sinal questionando o que havia acontecido.
-Derrubei bolo na camiseta que eu ganhei da minha mãe...
-Vá até a cozinha limpar.
-Se eu levantar daqui vai melar tudo... Não quero manchar, gosto muito dela...
            Levantando-se de onde estava, ele falou:
-Deixa eu buscar alguma coisa pra você limpar isso...
            Enquanto o Leonardo deixou a sala, aticei a Giovana para que comesse mais um pouco do bolo:
-Hum... Mas esse bolo está gostoso mesmo... Pegue mais um pedaço, Giovana.
-Eu posso comer outro?
-Claro! Deixa que eu ponho mais um pouco pra você...
-Oba!
            Coitada, abocanhou o doce como um peixe de volta ao mar. Assustado, o Artur olhava para sua irmã estático, dizendo em tom moderado:
-Gi... Num podi... Você vai fica dodói...
            Quanto mais ela comesse, melhor. Se ela passasse mal por conta da comida e não tivesse o remédio para ajudar, a responsabilidade do Leonardo poderia certamente ser questionada, com isso a Talita já teria pontos a seu favor.
Quando o Leonardo voltou acompanhado da Vera, nem percebeu que a Giovana havia comido além do que devia. Enquanto aquela velha mocoronga tirava a bandeja de cima da mesa de centro, ele disse a ela:
-Leve esse bolo daqui e não tire da geladeira tão cedo.
-Tudo bem. Com licença...
-Crianças... Vamos subir pra trocar de roupa, escovar os dentes e dormir. Cláudia! - Gritou da sala para a babá que estava no quarto.
            Ao aparecer na metade da escala, o Leonardo disse a ela:
-Chamou, doutor?
-Leve eles pra dormir, por favor.
            Estendendo seus braços ela questionou sorrindo:
-Vamos pra cama?
-Vamooooo! - Gritaram subindo á escada.
            Sozinhos, ficamos eu e o Leonardo deitados ao sofá, vendo TV a cabo. A programação estava pra lá de chata. Eu já estava pegando no sono quando a Cláudia desceu á escada, chamando atenção preocupada:
-Doutor Leonardo...
-Oi?
-Por favor, venha até o quarto da Giovana que ela parece não estar passando bem...
-O que ela tem? - Perguntou subindo os degraus de dois em dois.
-Não sei...
-Você aplicou nela a insulina antes de dormir?
-Sim.
            Enquanto ele foi até o quarto da Giovana, fiquei na sala, calado na minha, pois sabia que o culpado do que estava acontecendo era eu, só o que eu não sabia era a gravidade da situação que havia provocado.
            Encostada à porta da cozinha, a Vera olhava-me como quem dizia: "Você não me engana".
-O que foi que você está me olhando? - Questionei irritado e ao mesmo tempo cabreiro.
Calada, ela deu-me as costas. Atirei-lhe uma almofada com raiva, cujo não acertou.
-Volta pra cozinha que lá é o seu lugar. - Falei para completar.
            Se aquela empregada maldita tivesse visto alguma coisa que pudesse me comprometer, eu estaria perdido. A melhor coisa que tinha a fazer era vigiá-la de perto, pois qualquer sinal de perigo eu seria capaz de eliminá-la sem dúvida.
            Deitado ao sofá eu permaneci, louco de curiosidade para saber o que estava acontecendo lá em cima.
            Não demorou muito e o Leonardo passou pela sala voando em direção á cozinha. Sentei-me. Como um foguete ele voltou à sala, seguindo em direção á escada. Minha curiosidade era tanta que não contive-me em perguntar:
-Leo... O que está havendo?
            Sem parar de correr, respondeu ofegante:
-A Giovana precisa tomar insulina para digerir a montanha de bolo que comeu.
-A babá já não aplicou?
-Aplicou a de efeito lento.
            Levantei-me e fui atrás dele questionando:
-Então por que não aplica a outra?
-Porque não tem.
-Nossa! Você esqueceu de comprar?
-Não. Eu tenho quase certeza que tinha na geladeira...
            Até que me saí melhor do que eu pensava, pois minha intenção era eliminar a de efeito lento, porém, os frascos eram tão parecidos e meu tempo tão limitado que acabei confundindo-me.
            Meu contentamento durou por pouco tempo, até ver o Leonardo descendo novamente à escada vestindo uma blusa ao mesmo tempo em que dizia:
-Eu não demoro, e qualquer coisa me liga no celular, Cláudia.
-Pode deixar. - Gritou do quarto da Giovana.
            Preocupado, desci até a sala e questionei:
-Vai sair?
-Vou ver se encontro alguma farmácia aberta para comprar insulina...
-Mas e se você não encontrar?
            Parado à minha frente, ele olhou-me triste nos olhos e falou quase chorando:
-Reze para que isso não aconteça, porque não estou preparado para perder uma filha.
            Apressado ele saiu. Suas palavras fizeram um arrepio frio percorrer minha espinha. A situação era mias grave do que eu pensava, havendo sérias possibilidades de se tornar trágica.
Comecei a ficar assustado. Eu não tinha a pretensão de matar uma criança, apenas dar um susto. Subi até o quarto da Giovana e à avistei deitada em sua cama, sem cor. Parecia estar morta. Ao seu lado estava a Cláudia que segurava sua mão, e com a outra o telefone.
            Caminhando em passos curtos, de braços cruzados, adentrei ao quarto perguntando:
-Como ela está?
-Muito mal... Será que se eu ligar para a dona Talita o doutor Leonardo irá se importar?
-Acho que não... Liga lá.
            Enquanto ela telefonava, meu celular tocou:
-Alô?
-Claus... Estou ligando pra casa, mas só dá ocupado.
-É que a Cláudia está no telefone, Leo.
-Eu não falei que era pra deixá-lo desocupado?
-Sim, eu sei... Mas achei importante avisar a mãe dela que...
-Você fez o quê? - Questionou gritando.
-Calma, eu achei que...
-Você fez muito mal... Avise à Cláudia que não estou encontrando nenhuma farmácia aberta...
-Céus!
-Diga a ela que já estou voltando pra casa. Deixe a Giovana preparada, vou levá-la ao pronto socorro urgente...
-Vou dizer.
            Meu Deus! O que foi que eu fiz? Desliguei o telefone morto de arrependimento.
-Cláudia... Deixe ela preparada que o Leonardo vai levá-la ao hospital.
-Sim.
Sai do quarto com o coração apertado, sentindo-me a pessoa mais suja do mundo. Enquanto descia à escada lembrei-me que na Avenida Paulista havia farmácias abertas durante vinte e quatro horas, e não demorou muito para que eu tomasse alguma iniciativa.
            Lá fora começou a chover muito forte. Voltei ao quarto rapidamente e entregando um papel pra Cláudia, falei:
-Escreve pra mim o nome do remédio...
-Ah!... Tudo bem...
            Se eu havia colocado aquela pobre garota naquela situação, eu mesmo iria tirá-la. Vesti minha jaqueta, peguei a chave do meu carro e saí como um louco para procurar aquele remédio.

A chuva estava tão forte que pouco se via à frente. Se aquela garota morresse por minha culpa, jamais iria me perdoar. 





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Dia 17/03


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