| Noite de Natal |
Véspera de Natal. Sem ter onde e com quem passar, acabei aceitando o convite do
Leonardo para passar em sua casa com ele e os pirralhos. No início não gostei
muito da ideia, porém, o "pacote" vinha completo, com direito a pai e
filho, sendo assim, eu teria que me conformar.
O relógio do meu quarto marcava onze horas da manhã. Enquanto tomava banho ouvi
o telefone tocar. Desliguei o chuveiro. Enrolei a toalha na cintura e corri
para atendê-lo, molhado e pingando:
-Alo?
-Bom dia,
meu moleque!
-Bom dia!
-Que
horas você vem?
- Perguntou o Leonardo com a voz embargando.
-Daqui a
pouco eu tô indo... Estava tomando banho. - Respondi olhando no relógio.
-Ops!
Desculpa...
-Não foi
nada.
-Bem,
então depois que você terminar, pegue um táxi e venha pra cá... Não vou poder
buscá-lo porque a Talita ficou de trazer as crianças pra cá.
-Pensei
que seus filhos passariam o Natal com ela...
Após um suspiro, ela
falou:
-Eu já
tinha te falado que eles passariam comigo.
-É mesmo!
Eu esqueci.
-A Talita
nem liga pros filhos que tem... Enfim... Não demore, tá?
-Tudo
bem.
-Beijão.
-Outro.
Após fazer a barba, vesti a roupa nova que havia comprado especialmente para
aquele dia. Sobre a cama estava o presente que eu escolhi para o Leonardo,
cheio de frescuras assim como ele. Depois de estilizar meu cabelo e olhar-me ao
espalho por mais de dez vezes, peguei a sacola e sai.
O trânsito estava ótimo, ruas vazias. Aqueles que não viajaram, lotaram suas
casas com seus familiares, preparando uma festa da qual eu nunca havia
comemorado antes na vida.
Para ser sincero, eu nunca gostei de Natal. Sempre achei uma data triste,
injusta, onde uns comemoram com fartura, enquanto outros passam fome. O pior de
tudo é o propósito pelo qual se comemora, que deveria ser em benefício de
todos, quando na verdade não passa de um comércio mascarado e cruel.
Chegando à casa do Leonardo, toquei à campainha e ele abriu à porta para mim.
Dando-me um forte abraço, seguido de um delicioso beijo molhado ele perguntou:
-Você
está bem?
-Uhum. - Respondi balançando
a cabeça com o peito apertado.
Logo quando entrei, avistei na sala ao lado da escada principal uma bela árvore
de Natal, com dois metros de altura, cheia de piscas e enfeites.
Caminhando em direção a ela, falei:
-Vou
colocar o meu presente embaixo da árvore...
O Leonardo seguiu para a cozinha, logo o acompanhei. Duas empregadas preparavam
o que seria servido na ceia, e aparentemente, só maravilhas estavam sendo
postas à mesa. Olhar foi o bastante para meu estômago começar a se manifestar,
deixando-me até um pouco constrangido, pois o Leonardo percebeu.
-Nossa!
Quanta comida... Vai dar tempo delas prepararem tudo? - Perguntei com o
olho maior que a barriga.
-Não há o
que preparar... Tratei de comprar tudo já pronto. Elas só estão enfeitando e
montando.
-Hum... E
o que você comprou?
-Para
hoje à noite teremos bacalhau assado, salada de maionese, farofa de nozes,
arroz com passas, peru, tender...
-Até o
peru você comprou pronto?
-Não...
Comprei no mercado e mandei assar na padaria.
-Hum...
Adoro!
-Tem
também salada de polvo, abacaxi com...
-Chega!
Quanta coisa... Já estou faminto.
-Não se
preocupe, comida tem de sobra.
Correndo em trajes de banho, seus filhos entraram pela porta da cozinha a
gargalhadas. Segurando-me para não dar um cascudo naqueles dois, perguntei com
um sorriso forçado à Giovana:
-O que
vocês estão fazendo?
Sem responder os dois deram uma volta em torno da mesa e correram pra sala.
Abrindo à geladeira, o Leonardo perguntou:
-Gosta de
uva?
-Sim.
-Pegue! - Exclamou aproximando
uma baixela com frutas para mim.
Não resisti ao ver àquela bandeja de uva verde em minha frente. Sentei-me à
mesa e comecei a comer, uma por uma. Para ser sincero eu nunca havia comido uma
uva tão doce e suculenta como aquela, só podia ser rico mesmo pra degustar
daquelas maravilhas.
Com uma toalha pendurada no ombro, a Giovana voltou à sala. Vasculhando algo na
geladeira, o Leonardo perguntou à sua filha:
-Giovana...Você
vai voltar pra piscina?
-Não!
-Então vá
tirar esse biquíni e tomar um banho.
-Tá!
Crianças insuportáveis! Aquelas gargalhadas estavam me irritando, mas eu não
poderia deixar transparecer minha irritação, pelo contrário, para qualquer
efeito, eu "gostava" das crianças.
No início da noite a mesa para a ceia já estava toda montada, algo tão lindo
que eu só havia visto nas revistas e novelas. Após arrumarem tudo, as
empregadas foram para suas casas passarem com suas famílias, ficando naquela
enorme casa apenas o Leonardo, seus filhos e eu.
Confesso que não esperava muito daquela noite, mas quando vi a bela mesa
decorada, rendi-me ao bom gosto do anfitrião.
Encostado à janela, olhando pro jardim eu me perdi nos pensamentos. De banho
tomado e usando um perfume delicioso o Leonardo desceu à escada, deu-me um beijo
no meu pescoço, perguntando-me em seguida:
-O que
você tem?
-Estou
preocupado, com saudade da minha mãe...
-Por que
não liga pra ela?
-Tenho
medo.
-Medo de
quê?
-De
alguma notícia ruim...
-Mas ela
está doente?
-Sim.
-O que
ela tem?
-Não sei
ao certo... É uma doença rara... A última vez que nos falamos ela havia passado
muito mal.
Tirando seu celular do bolso e entregando-me, o Leonardo falou:
-Pegue!
-Pra quê?
-Ligue
pra ela...
-Mas
Léo...
-Não se
preocupe, notícias ruins chegam rápido. Se algo tivesse acontecido, você já
estaria sabendo.
-Obrigado!
Peguei o telefone e comecei a discar, encorajado pelo Leonardo que permaneceu
ao meu lado, abraçado a mim, tocando suavemente minha pele com seus lábios
levemente umedecidos.
-Mãe!
-Clau...
Meu filho...
Comecei a chorar em silêncio.
-Como a
senhora está?
- Perguntei apreensivo.
-Eu tô
bem... E ocê?
-Agora eu
estou melhor, por ouvir sua voz e saber que está bem.
-Estou
muito feliz por ocê ter ligado...
-Feliz
Natal, mãe!
-Procê
também... Eu gostaria tanto de tá do teu lado agora...
-Não se
preocupe, ano que vem nós passaremos todos juntos, como uma família de verdade.
-Eu quero
muito... Mas não sei se vô tá viva até lá.
-Pare com
isso, mãe... Não repita isso nunca mais.
-Eu te
amo, meu filho.
-Também
te amo, mãe. Dê um feliz Natal a todos ai por mim, tá?
-Tá bem.
-Beijos.
-Bejo.
Desliguei o telefone e desabei a chorar. Aquela foi a primeira vez que minha
mãe disse que me amava, tocando fundo em meu coração. Recebi um forte abraço
como conforto, encontrando no Leonardo o apoio que eu precisava naquele
momento.
Limpando minhas lágrimas ele falou:
-Viu só?
Não há motivos pra se preocupar...
Olhando em seus olhos, respondi:
-Eu não mereço
você, cara.
-Pare com
isso, moleque...
Acariciando minha face, ele olhou em meus olhos e perguntou:
-Você
quer namorar comigo?
Na hora não acreditei no que acabara de ouvir.
-E
então?... Aceita?
-Você tem
alguma dúvida de que eu te quero? - Respondi realizado.
Puxando-me para mais próximo, ele ia dar-me um beijo, quando seus filhos
desceram à escada, de banho tomado e vestidos impecavelmente, assim como o pai.
Tentando subir ao sofá, o Artur disse:
-Papai, tô
com fome.
Olhando para mim o Leonardo questionou:
-Vamos
jantar?
-Mas
ainda são dez horas...
-Eu sei,
mas as crianças já estão com fome.
-Entendi.
Vamos então.
Seguimos para a sala de jantar, nos sentamos à mesa e antecipamos a ceia. O
Leonardo tinha um bom gosto indiscutível. Cada detalhe impecavelmente arrumado
com adereços temáticos de Natal, e a comida cuidadosamente escolhida e
decorada, proporcionando o melhor para seus filhos.
-Que
linda, papai!
- Exclamou o Artur tentando sentar-se à cadeira.
-Você
viu?
Sentando-me, comentei:
-Engraçado...
-O quê?
-Mesmo
você ter nascido e crescido como pobre, não parece... Quem vê de fora acha que
você já nasceu rico.
Após sentar o Artur na cadeira, o Leonardo respondeu:
-Pobreza
é um estado de espírito. Eu trabalho duro, mereço desfrutar dos recursos que
meu trabalho me proporciona.
-Você tem
razão.
-A vida é
muito curta para se deixar de aproveitar o que de bom ela pode oferecer.
-Concordo.
Levando a colher à boca, o Artur perguntou:
-Papai...
-Oi?
-Cadê o
Papai Noel?
-Já, já
ele chega.
-E eu vou
ganhar presente?
-Você se
comportou direitinho durante o ano?
-Sim.
-Foi
obediente?
-Fui!
-Então
ele não vai esquecer de você.
-Oba!
Enquanto cortava um pedaço do pernil, perguntei:
-E eu?...
Será que o Papai Noel se lembrará de mim?
Sorrindo, o Leonardo perguntou:
-Você se
comportou direitinho durante o ano?
Mesmo sendo uma brincadeira, acabou tocando-me a alma. Reconheço que eu havia
sido muito mau pelas ações imorais que vinha cometendo, porém, até então eu não
me arrependi de nada.
Segurando uma colher, a Giovana falou:
-Papai...
O que tem nessa farofa?
Limpando a boca com um guardanapo, ele respondeu:
-Tem
coração de frango, nozes, ovo, cebola...
-Eu posso
pegar um pouco?
-Pode.
Quer ajuda?
-Quero.
Pegando à colher de sua mão, falei:
-Deixa
que eu te ajudo...
Esforcei-me ao máximo para fingir ser gentil e agradar o Leonardo, quando na
verdade eu tinha vontade era de dar um cascudo em cada um deles, pois eu odiava
criança.
Após o jantar fomos todos pra sala. Minha barriga estava enorme de tanto que eu
havia comido, mal conseguia andar. Depois de ligar a TV o Leonardo seguiu em
direção à janela para fechar à cortina.
Tentando subir ao sofá o Artur disse:
-Papai...
Eu quero ver desenho.
-Qual
desenho você quer ver?
-Aquele
que o menino perde a mãe.
Sentando-me ao braço do sofá e segurando uma taça de espumante, perguntei:
-Que
desenho é esse?
Enquanto a Giovana vasculhava os DVD's empilhados em uma enorme estante, o
Leonardo respondeu:
-É um
desenho japonês de um garoto que vai sozinho pra cidade grande procurar sua
mãe.
Sussurrando, ele completou:
-Chato
pra caramba.
-Hahaha...
Sentamos os quatro ao sofá e começamos a assistir aquele filme idiota. Enquanto
a atenção de todos estava concentrada no vídeo, fiquei analisando minha vida e
comparando com a deles. Nunca em toda minha existência tive um momento família,
onde todos se juntavam para ver TV, jantar, conversar. Por muitas vezes achei
que coisas assim só existissem nas novelas e comerciais de margarina, e se os
pais soubessem a falta que detalhes como esse fazem na vida de seus filhos, o
mundo não seria tão violento como está se tornando.
Em pouco tempo as crianças adormeceram, ficando somente eu e o Leonardo
acordados naquela sala enorme. Aos poucos ele foi levantando-se, tomando cuidado
para não acordá-los.
Caminhando na ponta dos pés, o Leonardo falou baixinho:
-Me ajuda
a colocar os presentes embaixo da árvore?
-Claro!
Enchemos a árvore de pacotes, deixando-a ainda mais linda. Agachado, ajeitava
as bolinhas prateadas para que brilhassem com os piscas sincronizados.
Olhando para mim, o Leonardo disse:
-Vamos
até a cozinha?
-Fazer o
quê? -
Respondi sussurrando.
-Beber um
pouco de vinho.
-Opa!
Após fechar à porta sanfonada, o Leonardo começou a beijar-me loucamente. Tenho
que assumir, ele tinha uma pegada muito gostosa, forte e de personalidade.
Chupando meu pescoço ele encostou-me à parede, continuando nossos beijos com
mais intensidade. Levei minha mão à sua calça, e quando abri o primeiro botão
ouvimos umas risadas bem baixinhas.
Afastando-se um pouco, o Leonardo questionou:
-Será que
eles acordaram?
-Vamos lá
ver...
Abri à porta e avistei os dois mexendo nos pacotes embaixo da árvore, exibindo
sorrisos que iam de uma orelha a outra. Provavelmente o espírito do Natal tocou
meu coração naquele instante, pois pela primeira vez eu os vi sem sentir
qualquer sentimento repugnante.
Segurando um pacote quase do seu tamanho o Artur caminhou em direção ao pai
exclamando:
-Olha
papai!
-O que é
isso?
-Meu
presente!
-E quem
trouxe?
-O Papai
Noel.
-Que
bacana! E você gostou?
-Sim...
-E cadê
ele?
-O Papai
Noel já foi embora...
-E o que
ele disse pra você?
-Não sei,
não vi.
-Será que
ele estava com pressa?
-Sim,
porque ele tem que entregar os outros presente das otra criança...
Olhando ao relógio, perguntei:
-Que
horas são, Leo?
Nesse momento fogos começaram a disparar. Sorrindo, o Leonardo olhou pra mim e
disse:
-Meia
noite. Feliz Natal!
-Feliz
Natal!
- Respondi dando-lhe um forte abraço.
Ele correspondeu com um muito gostoso também, fazendo-me sentir todo afeto que
aquela data especial nos passa. Aquela foi a primeira vez que comemorei o Natal
após a morte do meu pai, ou melhor, esbocei um sorriso contemplando os outros
ao meu redor.
Pegando seus dois filhos no colo ao mesmo tempo, o Leonardo deu um beijo em
cada um deles dizendo:
-Feliz
Natal, amores da minha vida!
-Feliz
Natal, papai!
Na hora senti um certo repúdio ao vê-los naquele contentamento todo. Acredito
que esse tipo de sentimento tivesse algo a ver com a falta de ter recebido
carinho de pai como estavam recebendo, ou seja, eu estava era com inveja
daqueles pentelhos por terem aquilo que eu nunca tive, mas muito desejei.
Enquanto eles curtiam seus luxuosos brinquedos, caminhei em direção à árvore,
peguei o presente que havia comprado para o Leonardo e o entreguei dizendo:
-Esse é
meu presente para você.
-Uau!
Obrigado.
Abrindo o pacote, exclamou:
-Caramba!
Era o perfume que eu estava querendo...
-Pois é.
-Como
você sabe que era esse?
-Eu sei
tudo sobre você.
-Nossa! - Exclamou
afastando-se de mim.
-O quê
foi?
-Você
falou de uma maneira que me causou até medo.
Mudando de assunto, questionei:
-E eu...
Não ganho nada?
-Claro
que ganha...
Tocando em minha mão ele arrastou-me em direção à porta dizendo:
-Crianças...
O papai já volta.
Curioso, perguntei:
-Aonde
você vai me levar?
-É surpresa.
Feche os olhos.
-Pronto.
-Reservei
hoje pra você dois presentes. Um eu já te dei que foi o pedido em namoro.
-E o
outro?-
Perguntei ansioso.
-Aguarde...
Segurando em seu braço eu caminhava de olhos fechados, tomando cuidado para não
cair nos obstáculos que havia pelo caminho. A curiosidade era imensa,
corroendo-me feito corrente elétrica.
Ao pararmos, respirei fundo e esperei ele dizer algo.
-Agora...
Abra os olhos.
Não vi presente nenhum, desanimando-me na mesma hora. Estávamos na garagem de
sua casa, cheia de tranqueiras.
Abrindo à porta de um dos carros, o Leonardo falou:
-Você
sabe dirigir?
-Sei.
-Então me
leve pra dar um rolê?
Dando a volta por trás do veículo, resmunguei:
-Olha...
As crianças não podem ficar aqui sozinhas...
-Só uma
passada rápida no shopping. - Falou rindo com ironia.
Sentei-me no banco do motorista, puto da vida e resmungando:
-É
ridículo querer comprar presente de última hora.
-Não é
isso...
-Então o
que é?
-Eu só
queria que você me levasse pra dar uma volta no seu carro...
-Você é
muito folga... Meu carro?
-É... Não
gostou?
Fiquei sem palavras, anestesiado. Por um certo tempo fiquei sem acreditar que
acabara de ganhar um carro, um lindo, moderno e quase novo automóvel.
-Se
gostei?... Poxa... Estou sem palavras. - Respondi entusiasmado acariciando o volante.
-Não vai
me dar nem um beijo?
- Perguntou apoiando-se à porta.
-Mas é
claro que vou.
Desci do carro e o agarrei. Demorou pra cair à ficha de que eu havia ganhado um
veículo do qual jamais imaginei ter.
Enquanto todos dormiam, levantei-me da cama e desci até a sala para contar a
novidade a Talita:
-Alô?
-Talita?
-Eu...
O barulho de fundo era muito alto, parecia estar numa balada.
-Você
está me ouvindo?
- Perguntei tapando o ouvido esquerdo.
-Estou,
fala logo o que você quer?
Aos poucos os ruídos foram diminuindo, como se ela estivesse se distanciando do
local barulhento.
-Não
trocou as ferraduras hoje? Feliz Natal, né?
-Feliz
Natal pra você também!
-Você
está onde?
-Estou em
um sítio com meus familiares.
-Ganhou
muitos presentes?
-Alguns...
Espero que você tenha alguma pra me dar também.
-Ainda
não tenho nada, mas em breve eu lhe dou.
-Assim espero.
-Sabe o
que eu ganhei?
-O quê?
-Um
carro.
-Um
carro?
-Sim!
-Mas um
carro zero?
-Não...
Mas é praticamente zero, porque está em ótimo estado.
-Acho que
já sei qual é... Deve ser um que estava na garagem dele...
-É esse
mesmo.
-Parabéns!
-Obrigado.
-As
crianças já foram dormir?
-Sim.
Você nem ligou pra eles...
-Nem
precisou, eles me ligaram e nós já nos falamos.
Olhando o jardim através da janela, comentei:
-Sabe que
eu não estou encontrando no Leonardo aquele canalha que você havia pintado?
-Você só
o conhece há alguns meses.
-Pode ser
que seja isso... Tenho mais uma novidade!
-Qual?
Ganhou uma casa também?
-Não seja
irônica.
-Hahaha...
Se você soubesse o quanto estou abismada...
-Posso
imaginar.
-E então?
Qual a novidade?
-Finalmente
ele me pediu em namoro.
-Aleluia!
-Agora
nós temos...
- Interrompi a conversa ao ouvir passos.
Desliguei o telefone sem me despedir. Guardei o celular dentro da cueca, logo
avistei alguém descendo à escada. Sem camisa e vestindo uma samba-canção, o
Leonardo perguntou-me após bocejar:
-O que
houve, moleque?
-Nada...
-Ouvi
vozes. Estava falando com alguém?
-Não...
Estava falando comigo mesmo.
Dando-me um forte abraço e um beijo na nuca, comentou:
-Hum...
Senti sua falta na minha cama...
-Eu já
estou voltando...
-Vou
subir e te esperar então.
-Tá bom.
Eu precisava me policiar mais. Por pouco o Leonardo não me pegou no flagra, e
essa possibilidade eu tentava nem imaginar a consequência caso acontecesse.
Acordamos tarde. Após levantar-me da cama, escovei os dentes, lavei o rosto e
fui até a cozinha, pois estava com muita fome. A casa estava silenciosa, vazia.
Enquanto todos ainda dormiam, abri a geladeira e peguei umas uvas para comer.
Vendo um panetone trufado de chocolate dando sopa, não resisti e o belisquei
também. Se eu fosse comer todas aquelas maravilhas, morreria de congestão.
Puxei à cadeira e
sentei-me à mesa. Enquanto mastigava uma uva meu celular começou a toca.
-Alô?
-Claus?...
Espero que você tenha alguma novidade pra mim.
-Oi,
Talita!... Bem, ainda não tive como...
-Como
não? Você teve a madrugada inteira para...
-Calma!
Não é assim também, você precisa ser mais paciente...
-Então eu
acho melhor você começar a preparar sua malinha pra dormir nas escadarias da
Catedral da Sé, pois não pagarei um dia se quer do flat a mais por...
-Está
bem... Vou ver se consigo algo hoje.
-Estou
esperando.
-Feliz
Natal.
-Pra
vocês também.
E agora, como iria sair
dessa? Eu estava lascado, literalmente. Pior era que não me vinha nenhuma ideia
a cabeça, e com a pressão que a Talita me fazia, tornava-se mais difícil ainda,
pois eu não conseguia pensar em nada.
Almoçamos já eram quase cinco da tarde. Pegando um pouco de farofa, observava o
Leonardo de canto de olho, ajudando o Artur comer um pedaço de peru. Ainda não
havíamos terminado quando a Vera chegou. Parecia uma vendedora ambulante, cheia
de sacolas arrastando pelo chão, sem contar o perfume horroroso de pobre que
empestou o ambiente.
-Verinha! - Exclamou o Artur
levantando o braço esquerdo.
-Oi meu
amor! Titia Vera trouxe bolo de chocolate pra vocês...
-Oba!
Segurando o Artur à cadeira, o Leonardo reclamou:
-Vera...
Você não tinha que anunciar dessa forma.
-Desculpa,
doutor Leonardo.
Curioso, perguntei:
-Ué... O
que tem de mal nisso?
-A
Giovana não pode comer doce.
-Por quê?
-Ela tem
diabetes Tipo I.
-Nossa!
Mas tão novinha?
-Ela já
nasceu assim.
Tenho que admitir, eu era um cara de sorte. Foi só esperar que logo apareceu
uma oportunidade de conseguir algo pra Talita. Naquele momento vi uma chance de
me dar bem, e logo aquela cretina teria o que tanto queria.
A Diabetes Tipo I inicia-se normalmente na infância, caracterizada pela falta
de insulina, devido a destruição de determinadas células do pâncreas decorrente
de processos idiopáticos ou autoimunes. Essa classificação da doença era
conhecida como “diabetes infantil” ou “diabetes mellitus insulinodependente”.
Querendo saber mais, questionei ao Leonardo:
-Ela
nunca poderá comer doces?
-Não como
uma pessoa normal. Cada vez que ela come, tem que tomar insulina para quebrar
as moléculas.
Devido a pouca ou nenhuma produção de insulina, pessoas que sofrem dela devem
receber injeções diárias de insulina. A quantidade diária é variável de acordo
com o tratamento escolhido pelo médico, levando também em consideração a
quantidade de insulina que o pâncreas é capaz de produzir.
A insulina sintética,
ou seja, aquela que é aplicada através de injeções, pode ser de ação rápida ou
lenta, de acordo com a necessidade de ingestão do alimento. Após grandes
refeições, deve ser aplicada a de efeito rápido. Já a de ação lenta é aplicada
ao acordar e antes de dormir. Não basta apenas medicar-se. Há três fatores que
devem ser combinados e são de extrema importância, que é a aplicação adequada
de insulina, combinada com a alimentação e a prática de exercícios.
Antes das nove horas da noite todos os empregados já estavam de volta,
inclusive a babá. O relógio da sala marcava dez e quinze. As crianças ainda
estavam acordadas, brincando sobre o tapete da sala e assistindo televisão.
Eu sabia que a Giovana iria ter que tomar seu remédio antes de dormir. Enquanto
estavam entretidos, fui até a cozinha e peguei uma das ampolas de insulina que
estavam na porta da geladeira. Coloquei-a dentro da cueca sem que a Vera nem a
Cláudia vissem, seguindo até o jardim onde cavei um buraco à grama e enterrei a
prova do crime.
Ao voltar tratei de ser
discreto. Entrei pela porta da cozinha e dei de cara com a empregada, tudo para
atrapalhar meus planos. Levei um susto, pois se ela estivesse visto o que eu
estava aprontando, estaria fodido.
-Senhor
Claus?
-Oi!
-Está
tudo bem? Precisa de algo? - Perguntou com o olhar desconfiado.
-Não...
Ou melhor, preciso sim. Você poderia servir um pedaço de bolo para nós, lá na
sala?
-Tá... Eu
levo sim.
-Obrigado,
Vera.
-Nada.
Voltei pra sala tremendo. Logo o Leonardo perguntou descendo à escada:
-Aonde
você foi?
-Eu?
-É.
-Eu...
Fui até o banheiro...
-Banheiro?
-É...
-Usou o
banheiro de empregado?
-Não...
-Os
banheiros estão no andar de cima.
-Tá bom,
eu conto a verdade... Fui pedir pra Vera trazer um pedaço de bolo de chocolate
para nós, com bastante cobertura.
Levantando-se do sofá, o Artur exclamou:
-Oba! Eu
quero.
Percebi que o Leonardo não havia gostado muito da ideia, porém, eu estava pouco
me importando se havia o agradado ou não.
Levantando-se de onde estava deitada, a Giovana perguntou:
-Papai...
Eu vou poder comer também?
- Tudo
bem, mas só um pedacinho, tá?
-Tá.
Trazendo uma bandeja com pedaços de bolo cortado, a Vera exclamou:
-Olha o
bolo!
Tirando um objeto de vidro de cima da mesa de centro, o Leonardo falou:
-Pode por
aqui.
-Hum...
Está com uma cara ótima! - Comentei salivando.
-Calma,
Giovana... Deixa que o papai pega pra você.
Enquanto comíamos, o
Leonardo fiscalizava o que sua filha ingeria. Desse jeito seria impossível
aprontar algo. Alguma coisa precisava ser feita para que ele se afastasse por
um tempo.
Peguei mais uma fatia e
coloquei em meu prato. Borrifei um pouco de cobertura para descarregar minha
raiva. Parti um pedaço com o garfo e ao levá-lo a boca tive uma ideia. Deixei
que parte caísse sobre minha camiseta propositalmente, torcendo para que meu
plano desse certo.
-Droga! - Exclamei aparentando
estar irritado.
Mastigando, o Leonardo
fez sinal questionando o que havia acontecido.
-Derrubei
bolo na camiseta que eu ganhei da minha mãe...
-Vá até a
cozinha limpar.
-Se eu
levantar daqui vai melar tudo... Não quero manchar, gosto muito dela...
Levantando-se de onde estava, ele falou:
-Deixa eu
buscar alguma coisa pra você limpar isso...
Enquanto o Leonardo deixou a sala, aticei a Giovana para que comesse mais um
pouco do bolo:
-Hum...
Mas esse bolo está gostoso mesmo... Pegue mais um pedaço, Giovana.
-Eu posso
comer outro?
-Claro!
Deixa que eu ponho mais um pouco pra você...
-Oba!
Coitada, abocanhou o doce como um peixe de volta ao mar. Assustado, o Artur
olhava para sua irmã estático, dizendo em tom moderado:
-Gi...
Num podi... Você vai fica dodói...
Quanto mais ela comesse, melhor. Se ela passasse mal por conta da comida e não
tivesse o remédio para ajudar, a responsabilidade do Leonardo poderia
certamente ser questionada, com isso a Talita já teria pontos a seu favor.
Quando o Leonardo
voltou acompanhado da Vera, nem percebeu que a Giovana havia comido além do que
devia. Enquanto aquela velha mocoronga tirava a bandeja de cima da mesa de
centro, ele disse a ela:
-Leve
esse bolo daqui e não tire da geladeira tão cedo.
-Tudo
bem. Com licença...
-Crianças...
Vamos subir pra trocar de roupa, escovar os dentes e dormir. Cláudia! - Gritou da sala para
a babá que estava no quarto.
Ao aparecer na metade da escala, o Leonardo disse a ela:
-Chamou,
doutor?
-Leve
eles pra dormir, por favor.
Estendendo seus braços ela questionou sorrindo:
-Vamos
pra cama?
-Vamooooo! - Gritaram subindo á
escada.
Sozinhos, ficamos eu e o Leonardo deitados ao sofá, vendo TV a cabo. A
programação estava pra lá de chata. Eu já estava pegando no sono quando a
Cláudia desceu á escada, chamando atenção preocupada:
-Doutor
Leonardo...
-Oi?
-Por
favor, venha até o quarto da Giovana que ela parece não estar passando bem...
-O que
ela tem?
- Perguntou subindo os degraus de dois em dois.
-Não
sei...
-Você
aplicou nela a insulina antes de dormir?
-Sim.
Enquanto ele foi até o quarto da Giovana, fiquei na sala, calado na minha, pois
sabia que o culpado do que estava acontecendo era eu, só o que eu não sabia era
a gravidade da situação que havia provocado.
Encostada à porta da cozinha, a Vera olhava-me como quem dizia: "Você não
me engana".
-O que
foi que você está me olhando? - Questionei irritado e ao mesmo tempo
cabreiro.
Calada, ela deu-me as
costas. Atirei-lhe uma almofada com raiva, cujo não acertou.
-Volta
pra cozinha que lá é o seu lugar. - Falei para completar.
Se aquela empregada maldita tivesse visto alguma coisa que pudesse me
comprometer, eu estaria perdido. A melhor coisa que tinha a fazer era vigiá-la
de perto, pois qualquer sinal de perigo eu seria capaz de eliminá-la sem
dúvida.
Deitado ao sofá eu permaneci, louco de curiosidade para saber o que estava
acontecendo lá em cima.
Não demorou muito e o Leonardo passou pela sala voando em direção á cozinha.
Sentei-me. Como um foguete ele voltou à sala, seguindo em direção á escada.
Minha curiosidade era tanta que não contive-me em perguntar:
-Leo... O
que está havendo?
Sem parar de correr, respondeu ofegante:
-A
Giovana precisa tomar insulina para digerir a montanha de bolo que comeu.
-A babá
já não aplicou?
-Aplicou
a de efeito lento.
Levantei-me e fui atrás dele questionando:
-Então
por que não aplica a outra?
-Porque
não tem.
-Nossa!
Você esqueceu de comprar?
-Não. Eu
tenho quase certeza que tinha na geladeira...
Até que me saí melhor do que eu pensava, pois minha intenção era eliminar a de
efeito lento, porém, os frascos eram tão parecidos e meu tempo tão limitado que
acabei confundindo-me.
Meu contentamento durou por pouco tempo, até ver o Leonardo descendo novamente
à escada vestindo uma blusa ao mesmo tempo em que dizia:
-Eu não
demoro, e qualquer coisa me liga no celular, Cláudia.
-Pode
deixar.
- Gritou do quarto da Giovana.
Preocupado, desci até a sala e questionei:
-Vai
sair?
-Vou ver
se encontro alguma farmácia aberta para comprar insulina...
-Mas e se
você não encontrar?
Parado à minha frente, ele olhou-me triste nos olhos e falou quase chorando:
-Reze
para que isso não aconteça, porque não estou preparado para perder uma filha.
Apressado ele saiu. Suas palavras fizeram um arrepio frio percorrer minha
espinha. A situação era mias grave do que eu pensava, havendo sérias
possibilidades de se tornar trágica.
Comecei a ficar
assustado. Eu não tinha a pretensão de matar uma criança, apenas dar um susto.
Subi até o quarto da Giovana e à avistei deitada em sua cama, sem cor. Parecia
estar morta. Ao seu lado estava a Cláudia que segurava sua mão, e com a outra o
telefone.
Caminhando em passos curtos, de braços cruzados, adentrei ao quarto
perguntando:
-Como ela
está?
-Muito
mal... Será que se eu ligar para a dona Talita o doutor Leonardo irá se
importar?
-Acho que
não... Liga lá.
Enquanto ela telefonava, meu celular tocou:
-Alô?
-Claus...
Estou ligando pra casa, mas só dá ocupado.
-É que a
Cláudia está no telefone, Leo.
-Eu não
falei que era pra deixá-lo desocupado?
-Sim, eu
sei... Mas achei importante avisar a mãe dela que...
-Você fez
o quê?
- Questionou gritando.
-Calma,
eu achei que...
-Você fez
muito mal... Avise à Cláudia que não estou encontrando nenhuma farmácia
aberta...
-Céus!
-Diga a
ela que já estou voltando pra casa. Deixe a Giovana preparada, vou levá-la ao
pronto socorro urgente...
-Vou
dizer.
Meu Deus! O que foi que eu fiz? Desliguei o telefone morto de arrependimento.
-Cláudia...
Deixe ela preparada que o Leonardo vai levá-la ao hospital.
-Sim.
Sai do quarto com o
coração apertado, sentindo-me a pessoa mais suja do mundo. Enquanto descia à
escada lembrei-me que na Avenida Paulista havia farmácias abertas durante vinte
e quatro horas, e não demorou muito para que eu tomasse alguma iniciativa.
Lá fora começou a chover muito forte. Voltei ao quarto rapidamente e entregando
um papel pra Cláudia, falei:
-Escreve
pra mim o nome do remédio...
-Ah!...
Tudo bem...
Se eu havia colocado aquela pobre garota naquela situação, eu mesmo iria
tirá-la. Vesti minha jaqueta, peguei a chave do meu carro e saí como um louco
para procurar aquele remédio.
A chuva estava tão
forte que pouco se via à frente. Se aquela garota morresse por minha culpa,
jamais iria me perdoar.
Próximo capítulo: |
Arrependimento mata |
Dia 17/03
Adquira a obra completa através do link: https://www.clubedeautores.com.br/book/139687--Profissao_Amante#.VtbgwPkrLIUhttps://www.clubedeautores.com.br/book/139687--Profissao_Amante#.VtbgwPkrLIU
Nenhum comentário:
Postar um comentário