| Tô fora |
Cheguei em casa e
queimei aquela porcaria de contrato. Agora, nenhuma prova concreta a Talita
teria para me chantagear, somente sua palavra contra a minha, ambas sem
credibilidade alguma.
Joguei-me sobre à cama
rindo, feito um idiota. Comemorei sozinho o sucesso da minha ideia estúpida,
mas eficiente.
Peguei o interfone e liguei na recepção:
-Recepção,
Emerson!
-Preciso
que você venha até o meu apartamento.
Desliguei o interfone. Separei o quadro que havia retirado da casa do Leonardo
e o deixei sobre a cama, embrulhado em um pano. Assim que o Emerson chegasse,
pediria sua ajuda para me livrar de tudo que um dia fez-me envergonhar de meu
passado.
Alguém bateu à porta, e pela característica da batida eu já sabia quem era.
-Entre
rápido.
- Falei puxando o Emerson pela manga comprida de seu uniforme.
-Não
posso demorar muito, Claus...
-Tudo
bem. Preciso de alguns favores seus.
-Que
favor?
Caminhando até o quarto, falei:
-Quero
que você desapareça com esse quadro daqui.
-Mas por
que você não joga fora?
-Porque
ele vale uma fortuna.
-Então
por que quer se livrar dele?
-Quer
parar de perguntar tanto?
-Se você
quer minha ajuda, preciso saber.
-Porque
pode ser um pesadelo em minha vida.
-Pesadelo?
-É... A
destruição de um sonho que eu não quero acordar.
-Não tô
entendendo nada.
-Tudo
bem... Tem como você fazer isso?
-Sim,
tem.
-Ótimo!
-E qual
era o outro favor?
-Preciso
destruir um HDD, ou melhor, dois.
-Vai por
fogo em alguma casa?... Hahaha...
-Eu estou
falando sério.
-Ué... E
como pretende fazer isso?
-Não
sei... Você é cheio de trambiques...
-Bem...
Eu não vou entrar na casa de ninguém pra fazer isso.
-Tem que
haver uma outra maneira de fazer...
-Bem...
Só se você mandar um vírus que faça por você.
-Uau!
Você conhece algum?
-Tenho um
amigo que entende muito disso. Acho que no disco virtual dele tem esse vírus
que destrói todo o HDD do computador.
-Perfeito!
Mas antes eu preciso que você descubra um endereço de e-mail pra mim.
-De quem?
-É de um
advogado.
-Por que
não liga lá e pergunta?
-Eu quero
descobrir o e-mail direto dele, para que assim destrua todas as provas de...
-Que
provas?
-Nada.
Você tem como fazer isso por mim?
-Depende...
-Eu tenho
o e-mail da cliente dele aqui...
Peguei meu computador de mesa e o coloquei sobre a cama. Dei ao Emerson o
endereço eletrônico da Talita, e enquanto ele digitava sem parar, eu andava de
um lado para o outro, ansioso.
-Pronto!
-O quê?
-Consegui
invadir o gerenciador de e-mails dela.
-Veja se
você encontra...
-Doutor
Marcos Pacheco Pinheiro.
-Opa!
-Agora a
gente manda um e-mail pra ele com o arquivo em anexo, assim, quando ele abrir
vai pensar que é dela e pronto!
-O que
irá acontecer?
-O HDD
dele terá perda total.
-Sem
condição de recuperar nada?
-Nada!
-Perfeito!
Agora, mande pra ela também.
-Certo,
vou fazer com que “ele” envie também para toda lista de e-mail dele, consequentemente
ela vai receber e ninguém suspeitará de você.
-Legal!
A Talita se achava muito esperta, mal sabia ela que de maldade eu também
entendia, e muito bem por sinal. Às vezes ela esquecia-se que eu possuía algo
que ela não tinha: a malandragem da vida. Eu não via a hora de acabar com tudo
aquilo. Assim que aquela vigarista abrisse seu correio eletrônico, perderia
tudo que estivesse salvo em seu computador e pastas de webmail, eliminando provas que havia contra o Leonardo, livrando-me
de suas chantagens e permitindo uma briga justa nos tribunais.
Depois que o Emerson saiu, voltei toda minha atenção ao caso da Giovana. Entrei
em alguns sites de relacionamentos e comunidades na Internet para procurar pelo seu professor, ou até mesmo alguma
pista que me levasse a ele. Já havia se passado uma hora e nem sinal do
infeliz, provavelmente camuflava-se ou não tinha perfil na rede.
Parei para descansar, e nesse intervalo o telefone tocou. Levei um susto. Será
que era a Talita ligando-me para agradecer pelo “presente”?
-Alô?
-Clau?
-Oi, mãe!
-Filho...
Segunda feira eu tô ai cocê.
-Sério?
-Sim.
-A
senhora vem mesmo, mãe?
-Vou.
Finalmente eu conseguiria rever minha mãe, e dependendo de sua situação, não a
deixaria mais voltar pra casa. Meus irmãos não tratavam bem dela, só a
exploravam. Claro que eu também não era um exemplo de filho. Dei muito trabalho,
concordo, mas eu havia mudado, e todo o tempo perdido eu queria recuperar.
Voltei à minha pesquisa e, de repente, uma foto chamou-me atenção. A comunidade
era do colégio, e pelas características do professor da Giovana, só poderia ser
ele. O nome era o mesmo, e em seu perfil não havia nada de comprometedor.
Criei um e-mail fictício e mandei uma
mensagem para o suspeito, me fazendo passar por uma aluna. Dependendo de sua
resposta, a verdade poderia aparecer sem que eu precisasse me esforçar muito.
Meu celular começou a apitar, indicando o recebimento de uma mensagem de texto.
Era da Talita, e como sempre, com um teor agressivo dizia:
“QUERO FALAR COM VOCÊ. JÁ CONSEGUIU AQUILO QUE
TE PEDI? VOCÊ TEM VINTE E QUATROS HORAS PARA ME PASSAR.”
Resolvi fazer diferente e ir pessoalmente até sua casa dar-lhe a resposta que
ela realmente merecia. Quem sabe a Talita entenderia definitivamente que eu já
havia caído fora daquele plano estúpido, pois não foi inteligente o suficiente
para perceber que eu já havia o deixado há algum tempo.
Toquei a campainha e logo fui atendido pela Cláudia, que ao me ver estranhou
minha presença.
-Senhor
Claus!?
-Oi. A
Talita está ai?
- Questionei entrando sem pedir licença.
-Está
sim. Vou chamá-la.
- Respondeu toda desconsertada.
Nem precisou que ela
desse um passo, pois logo a Talita apareceu na sala, com sua bolsa na mão.
Enquanto vestia o jaleco, ela dizia em voz alta para a empregada:
-O
iogurte está acabando e precisa de mais. Não esqueça do leite em pó porque o
Artur... Claus!?
- Exclamou espantada.
-Tudo
bem?
-Cláudia,
vá ver se as crianças já estão prontas para ir ao colégio. - Falou com a voz
embargada.
Deu pra ver de longe que
minha presença naquela casa não era bem vinda. Pra ser sincero, eu estava pouco
me importando com isso. Por mim, se ela morresse seria um alívio pra
humanidade.
Irada, a Talita
aproximou-se de mim e questionou:
-Quem
mandou você vir até aqui?
-Mandou?
Já estou bem grandinho para ser mandado...
-Se a
Cláudia comenta alguma coisa com o Leonardo, como irei me explicar? - Questionou
diminuindo seu tom de voz, olhando de um lado pro outro para checar se não
estávamos sendo observados pelos empregados.
-Isso não
é problema meu...
-Olha
aqui, seu malcriado...
-Olha
aqui o caralho. Já estou cansado disso tudo, principalmente da sua cara.
-Mas...
Você pensa que é quem pra falar assim comigo, seu indigente?
-Cansei
de fazer mal para os outros, servir de objeto pra você...
-Hahaha...
E se você não fosse meu objeto, iria trabalhar em quê? Vendendo bijuterias na
25 de março?
-Qualquer
coisa é melhor do que ficar perto de você.
-Coloque
algo em sua cabeça: você não tem estudo, não presta pra nada.
-Sei
muito bem quais são meus valores, e aprendi com uma pessoa maravilhosa... Não
caio mais em suas armadilhas.
-Pois
você não tem opção, querido.
-Tenho
sim... Estou fora desse plano maldito.
-Não se
esqueça que nós temos um contrato.
-Foda-se
você e esse seu contrato, se é que ele ainda existe.
Levando a mão à boca,
ela esbugalhou os olhos e correu para seu quarto. Que paspalha! Claro que ela
entendeu a indireta, e seguiu apressada para conferir. Depois de um tempo,
percebi que a Talita se aproximava, pelo barulho de seu salto tocando o chão.
Furiosa, ela apertou os
olhos e disse coberta de ódio:
-Você
pensa que é mais esperto que eu, né?
-Sinto
muito, Talita... Fui mais esperto que você... Essa guerra você perdeu.
-Não
pense que você vai ficar por cima da carne seca, seu subalterno!
Respondi apenas com um
sorriso sarcástico.
-Você vai
se arrepender de ter me desafiado, Claus.
-Não
tenho medo das suas ameaças.
-Fora, da
minha, casa! Seu caipira ordinário!
-Eu vou
mesmo, porque olhar pra tua cara me enoja.
Assim que cruzei à
porta, a Talita bateu-a, exteriorizando parte de seu ódio por mim. Touché! Respirei fundo. Finalmente eu
estava livre de toda aquela armação, podendo viver minha vida sem culpa,
honrando o primeiro e único amor da minha vida.
Naquela noite o Leonardo e eu havíamos combinado de sairmos. Pra mim, a noite
tinha tudo para ser especial, pois meu peito estava aberto para receber com
reciprocidade o amor do homem mais perfeito do mundo.
Passava um pouco de perfume quando meu celular tocou:
-Alô?
-Boa
noite! Eu gostaria de falar com o cara do sorriso mais lindo do mundo...
-Então eu
acho que você ligou pro número errado...
-Acho que
não... Me disseram que o número era esse...
-Mas eu
sou tão feio!
-Pra mim,
você é a pessoa mais linda do mundo!
-Bem...
Existe louco pra tudo nessa vida.
-Você já
está pronto?
-Uhum... Tô
só aguardando o cara mais meloso desse planeta vir me buscar.
-Uau!
Desce que estou parado em frente à portaria te esperando.
-Já estou
indo.
Desliguei o celular.
Apaguei as luzes e tranquei à porta. Respirei fundo. Meu perfume estava forte,
deixando um rastro por onde eu passava. Apertei ao botão para chamar o
elevador, e não demorou muito ele chegou. No interior estava o outro
recepcionista, que por sinal não era nada bonito.
Do jeito que eu era
curioso, claro que não ia perder a oportunidade de matar minha curiosidade.
Virando-me para ele,
perguntei:
-Você tem
horas?
-Ah!...
Agora são... Dez e quinze...
-Valeu!
-Nada.
-Seu
horário não é de tarde?
-É... Mas
hoje eu troquei com um colega.
-Entendi...
Bem, isso também nem é da minha conta.
-Que
isso...
A porta do elevador
abriu. Cruzei a portaria e desci os degraus rapidamente, focando o veículo onde
meu amor me aguardava. Esperei um carro que passava pela rua e atravessei-a,
caminhando em passos largos.
Com os vidros abertos,
o Leonardo esperava-me, de cabelos arrepiados e perfume moderado, perfeito!
Entrei no carro e demos
um selinho.
-Você
está demais, Claus!
-Pare com
isso...
Saindo com o carro,
olhei para a recepção do flat que era
de vidro escuro, ainda assim consegui ver o Emerson olhando-me, sem perder de
vista. Notei também que um outro rapaz lhe pediu uma informação, e mesmo assim
ele não tirou o olho de mim.
Travando às portas, o Leonardo perguntou:
-O que
você estava fazendo quando eu te liguei?
-Passando
perfume.
-Hum... E
eu vou poder conferir?
-Você
pode tudo.
-Opa!
-Onde
estamos indo?
-À sala
São Paulo.
-Que
diabo é isso?
-É uma
das mais modernas e melhores salas de concertos do mundo.
-Concertos?
-É...
Você nunca foi a um?
-Não...
Lá vinha ele com aquelas ideias de girico. Só esperava não dormir e pagar mico
ao lado dele, pois eu tinha a consciência de que o Leonardo estava fazendo
aquilo para me agradar, mesmo sem saber que eu não gostava dessas coisas.
Às vezes criamos em nossa cabeça conceitos de fogem do real. Óperas e
espetáculos musicais pra mim não passavam de babaquice, uma verdadeira perda de
tempo. Mas logo mudei de opinião quando ouvi pela primeira vez o som
sincronizado dos instrumentos. Que mágico! Tocou minha alma, meu coração,
emocionando por completo aquele coração que deixava de ser pedra para ser amor.
-Você
gostou?
- Perguntou o Leonardo ao sairmos da sala.
-Nossa!...
Nunca pensei que fosse algo tão bonito...
-Sinceramente?
Achei que você não fosse gostar.
-Eu
também.
-Hahaha...
-Mas não
se preocupe, gostei muito.
-Se você
diz, eu acredito.
-Pode
acreditar, porque é de coração.
Abraçados, caminhamos até o estacionamento onde estava seu carro. Parado em
frente à porta do lado do motorista, o Leonardo apalpava seus bolsos,
procurando o dispositivo para abrir o carro.
-Droga!
-O que
houve?
-Travei o
carro e esqueci o dispositivo no porta-luvas.
-Nossa! E
agora?
-Vamos
ter que voltar pra casa de táxi.
-Mas não
tem táxi por aqui...
-A gente
pega o trem e depois o metrô...
-Tá bom!
Pegamos o trem até a estação Palmeiras Barra Funda e seguimos até a Vila
Mariana, próximo de onde o Leonardo morava.
Ao cruzarmos à catraca,
o bilhete do Leonardo não estava liberando sua passagem. Depois de efetuar três
tentativas, entreguei o meu para ele dizendo:
-Xiiiiiiiiiiiii...
Ele não gostou de você.
-Mas eu
sou tão bonzinho!
-Então
ela quer nos separar.
-Hahaha...
Eu te agarro bem forte e ninguém vai conseguir desgrudar.
-Hummmm...
Vai me agarrar aqui na frente de todo mundo?
-Você
dúvida?
-Sim.
Cruzando o bloqueio, ele falou:
-Vem aqui
então.
-Mas
primeiro você vai ter que me pegar. - Disse correndo pelas escadas em direção à
plataforma.
Desci pelos degraus os pulando de dois em dois. Logo atrás de mim vinha o
Leonardo, louco para me agarrar. Céus, que rápido! Por pouco ele não me
alcançou, pois corria tanto quanto eu, mas fui vencido pelo cansaço.
Ao final da plataforma, eu já não aguentava mais correr, foi quando ele
conseguiu alcançar-me. Recebi um forte abraço, com aquela pegada firme que só
ele sabia dar. Que delícia! Pensei que fosse pirar.
Encostando-me à parede de concreto, atrás do painel de informações, o Leonardo
prendeu-me com seu corpo. Tesão! Suas pernas estavam bem abertas e, os quadris,
um colado no outro. Que loucura! Nossa respiração já ofegante, e o ritmo
cardíaco disparado após aquela maratona.
Tocando em minha face ele olhou-me fundo nos olhos e disse com a voz da alma:
-Eu te
amo!
-Também
amo você!
Começamos a nos beijar. Ele conseguia me tirar do sério. Seu abraço envolveu-me
por completo, e o cheiro de sua pele ficava cada vez mais intenso, deixando-me
ainda mais envolvido. Se eu soubesse que amar era tão bom, já teria me
permitido há muito mais tempo.
A plataforma estava completamente vazia, apenas duas pessoas e nós dois,
distantes do mundo, desfrutando de um universo do qual cabia somente nós dois.
Permanecemos nos beijando até o metrô chegar. Provavelmente aquele seria o
último trem do dia, pois vários sacos de lixo já estavam sendo acumulados nas
extremidades das plataformas para serem levados.
Segurando em minha mão, entramos no último vagão. Parados próximo à porta, o
Leonardo encostou-se ao apoio e puxou-me para próximo dele. Que demais! Olhando
para sua face, eu via a concretização do amor, e a certeza de que estava
realmente apaixonado.
Pouco tempo depois entrou um garoto que começou a distribuir umas guloseimas
para as pessoas com um papel contendo alguma informação ou pedido. Vê-lo
daquela forma fez-me lembrar de quando cheguei à São Paulo, quase passando
fome, contando apenas com a sorte.
O garoto não aparentava ter mais que quinze anos. Fisionomia agradável, porém,
olhar triste. Provavelmente estava vendendo aqueles doces para ajudar em casa,
maltratado pela vida e indiferença das pessoas.
A calça que o coitado
usava possivelmente era de alguém três vezes maior que ele, pois um cordão
fazia papel de cinto ao amarrá-la, além de estar toda “emafronhada” na cintura.
-Claus...
Claus...
- Chamava-me o Leonardo.
-Oi?
-O que
houve?
-Nada...
Por quê?
-Estou
falando com você, mas não me responde.
-Veja
aquele garoto...
-O que
tem?
-É quase
uma criança, já tendo responsabilidade de adulto. - Comentei indignado.
Ao se aproximar de nós, o Leonardo o chamou:
-Garoto...
Vem aqui.
-Senhor?
-Você
estuda?
-Não...
-Mora com
quem?
-Minha
mãe e meus quatro irmão.
-Eles
trabalham?
-Não,
meus irmão são pequeno.
-Você é o
mais velho?
-Sim.
Entregando ao garoto um cartão, o Leonardo disse:
-Pega
aqui o meu cartão. Quero que você me ligue, tenho uma coisa boa pra você.
-Tá bom.
Obrigado!
Dando um aperto de mão, o Leonardo respondeu:
-De nada.
Mas é pra ligar mesmo, hein?
-Pode
deixar.
-Pode
ligar a cobrar.
Descemos na próxima estação para fazer baldeação. Enquanto caminhávamos um do
lado do outro, perguntei ao Leonardo:
-Qual a
finalidade de dar aquele cartão ao garoto?
-Lembra
que você tinha comentado que eu precisava de um funcionário para realizar
serviços externos?
-Sim.
-Então...
Vou dar uma oportunidade pra esse garoto.
Fiquei com ciúme e raiva ao mesmo tempo. Sabendo de minha situação, por que não
reservou aquela função pra mim? Afinal, achei que por sermos namorados, eu
teria prioridade.
-Bem que
você poderia ter dado a mim esse emprego...
-Não
gosto de misturar as coisas. Vamos manter distância da vida profissional e
pessoal. Não se preocupe, vou encontrar um emprego pra ti.
-De
qualquer forma eu vou ter que deixar o flat.
-Por quê?
-Porque
não tenho mais com o que pagar.
-Pode
deixar que esse mês eu pago. Depois, arrume um lugar mais barato pra ficar.
-Vou
acabar voltando pra casa da minha mãe.
-E vai me
deixar aqui?
-Não
posso dormir na rua.
-Então a
gente vai ter que casar.
-Casar?
-É...
Você vem morar comigo, me fazer companhia pro resto da vida.
-Quem
sabe...
Já na estação Paraíso, o Leonardo desceu comigo e ficou esperando passar o
metrô sentido à Avenida Paulista. Que gentil! Por ser uma linha menos extensa,
o intervalo entre os trens é maior, e o aviso sonoro já informava:
Atenção,
informamos que a partir desse momento, nossas operações estão encerradas. Boa
noite!
Logo chegou o vagão para que eu embarcasse. Abraçando-me, o Leonardo falou:
-Vem aqui
pra eu me despedir de você...
Demos um delicioso beijo. Todas às vezes que ele me tinha em seus braços, eu me
derretia como manteiga. Não sei explicar, mas tudo no Leonardo era perfeito,
meu eterno amor.
O toque avisando que as portas iriam fechar soou. Tentei correr para entrar,
mas o Leonardo segurou minha mão. Droga! Perdi meu último metrô.
-Não...
Leonardo, eu preciso ir nesse... É o último.
-Era...
Agora já foi.
-Não!
-Hahaha...
-E agora?
O que vou fazer?
-Vai ter
que dormir comigo.
Agarrando-me, demos mais um molhado beijo. Deixamos a estação e seguimos até o
ponto de táxi mais próximo. Caminhamos abraçados, como um casal de namorados
apaixonados. Ao seu lado eu me sentia protegido, amado. Nada me preocupava, o
mundo éramos só nós dois e, o tempo, congelava.
Dentro do táxi, voltando para casa, falei ao Leonardo:
-Tenho
uma coisa pra te contar.
-Também
tenho.
-Então
comece você.
-Não.
Você primeiro.
-Tá
bem... Segunda feira minha mãe vem me visitar.
-Que
bacana!
-E... Eu
tomei uma decisão.
-Que
decisão?
-Vou
contar sobre nós pra minha mãe.
-Contar?
-Sim...
Contar que você é o homem que eu amo.
-Nossa!
Por que isso?
Levei sua mão em meu peito e falei:
-Será que
responde sua pergunta?
Calado, ele deu-me um beijo. Afastando-me, perguntei:
-E você?
-Não vou
mais contar...
-Por quê?
-Vou
fazer uma surpresa.
-Para!
-Sim...
-Conte,
vai?
-Não,
não.
-Tudo
bem, eu confio em você.
Ao chegarmos em sua casa, todos já dormiam. Luzes apagadas, apenas os abajures
ligados, na companhia do silêncio absoluto. Entramos sem fazer barulho, e após
trancar a porta o Leonardo pegou em minha mão e seguimos para seu quarto.
Particularmente, eu não moraria sozinho em uma casa tão grande como aquela, e
só de pensar, já me causava arrepio. Talvez fosse pelo motivo das histórias que
meu pai contava quando éramos crianças, dos casarões assombrados, porém, de
qualquer forma um espaço tão grande e vazio não me agradava.
Dando um abraço por trás e beijando meu pescoço, o Leonardo sugeriu:
-Vamos
tomar um banho de banheira?
-Hum...
Com bastante espuma?
-Uhum...
E com bastante amor também.
Cada palavra que ele proferia, fazia-me apaixonar ainda mais. Às vezes eu
ficava pensando na sorte grande que havia tirado, em quantas pessoas nesse
mundo não gostariam de estar em meu lugar, inclusive a Talita, mas eu era o
privilegiado.
Beijávamo-nos profundamente, com parte dos corpos imersos à água. O gosto de
sua boca era mágico, causando efeito da dependência, como um viciado em drogas,
mas naquele caso, era a “droga” do amor.
Acariciando minha face, ele falou-me olhando nos olhos após um profundo
suspiro:
-Sabe o
que eu gostaria?
-O quê?
-De
escrever nossa história na areia.
-E qual a
finalidade disso?
-Para
toda vez que a onda apagá-la, nós podemos reescrever uma outra diferente, e
assim viver momentos inesquecíveis dia após dia.
-Hummm...
Você não existe, cara.
Aproximando-se de mim, ele respondeu:
-Existo
sim... Tô aqui pra te amar.
Deu-me um selinho.
-Daqui a
pouco estarei numa sala de aula... - Falei.
-Fazendo
vestibular!
-Pois é.
-Um
pequeno passo para um longo caminho.
-Sim.
-Mas já é
um começo.
-Sem
dúvida.
-Nossa!
-O que
foi?
-Agora
que eu lembrei... Preciso trocar a água do aquário.
-Mas
precisa ser agora?
-Claro
que não... Pela manhã eu faço isso. Vou comprar uns peixes novos também.
-Daqueles
coloridos?
-É.
-Quanto
custa um peixe daquele?
-Trezentos
reais.
-O quê?
-Hahaha...
Por que o espanto?
-É muito
dinheiro! Com tanta gente no mundo passando fome, você não sente remorso em
gastar tanto dinheiro ao invés de ajudar?
-Calmai...
Eu não tenho culpa que existam pessoas no mundo que passam fome. Eu também já
passei fome na vida e lutei pra sair da situação em que eu estava. Eu trabalho
muito, Claus... E o dinheiro que eu gasto é fruto do meu esforço, porque eu
lutei pra ter o que tenho hoje.
-Mas nem
todo mundo tem a mesma sorte que você.
-Quem
depende de sorte, não tem competência.
-Como?
-Tudo que
tenho foi conquistado com muito trabalho, Claus. Nada me caiu do céu... Tive
uma infância muito pobre...
-Nossa!
-Pois
é... Ninguém viu os tombos que levei, o quanto sofri para conquistar o que
conquistei. Estudei durante três anos sem parar um dia se quer, só para
conseguir uma vaga no curso de Medicina da USP...
-E
conseguiu?
-Claro...
Não varava a noite estudando a toa... Eu tinha um objetivo e lutei por ele até
alcançá-lo.
-Entendo.
-Mesmo
não podendo contar com a ajuda de meus pais para custear meus estudos, nunca os
culpei por nada, muito menos me revoltei e prejudiquei os outros, culpando o
Sistema pela minha situação. Se não estava bom para mim eu tinha que fazer algo
para mudar, e fiz. Ao invés de colocar a culpa no outro e passar o resto da
vida lamentando a desgraça que não fiz nada para mudar.
O Leonardo era muito sensato, inteligente e justo. Não tinha como não concordar
com o que ele havia dito, e assim passei a admirá-lo ainda mais pela força,
coragem e determinação que demonstrava ter. Suas palavras tocaram-me fundo,
pois o que ele havia dito era exatamente a forma com que eu me comportava,
culpando os outros pelas desgraças que nada fiz para mudar.
Próximo capítulo: |
A triste notícia |
Dia 29/03
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