sexta-feira, 18 de março de 2016

LIVRO: PROFISSÃO AMANTE - CAPÍTULO 14



| Arrependimento mata |

            Ao chegar à Avenida Paulista, parei o carro na primeira farmácia que encontrei aberta. A pressa era tanta que nem tirei a chave do contato, deixando o veículo estacionado de qualquer jeito com o pisca alerta ligado.
            Entreguei o papel para o farmacêutico e para minha sorte havia o remédio. Imediatamente o comprei e voltei pra casa do Leonardo, dirigindo como um louco, correndo contra o tempo.
            Abri à porta da sala e deparei-me com o Leonardo segurando a Giovana no colo, saindo para levá-la ao hospital. Logo atrás vinha a Talita, que ao me ver fingiu não conhecer-me intimamente.
            Percebi que os dois discutiam, e ao entrar exclamei erguendo o pacote:
-O remédio!
-Você conseguiu achar? - Questionou o Leonardo desesperado.
-Sim... Lembrei que na Avenida Paulista têm farmácias que não fecham...
-Putz!... É verdade. Na hora nem me lembrei... Muito obrigado!
            Enquanto ele levou-a de volta ao quarto acompanhado pela babá, permaneci na sala, e junto comigo ficou a Talita. Aproveitando que estávamos sozinhos, ela quis saber:
-Tem dedo seu nisso, não é?
-Eu não sabia da gravidade do problema. - Falei caminhando em direção à janela.
-Só espero que minha filha não seja prejudicada com sua ideia imbecil...
-Escute aqui... Estou fazendo o que eu posso, não tenho como prever se dará certo ou não.
-Faça o que tiver que ser feito, mas tire meus filhos disso...
Percebi que a Vera aproximava-se, então fiz sinal com os olhos para alertá-la. Sem dar mais uma palavra a Talita subiu pro quarto da Giovana, enquanto permaneci onde estava, aguardando ansioso por uma boa notícia.
            Felizmente o pior não aconteceu, e pouco a pouco a Giovana foi se recuperando graças ao remédio que levei, aliviando o peso enorme que devorava minha consciência.
            Durante a semana quase nada fiz. Algumas vezes visitei o Leonardo após seu trabalho, e foi numa dessas noites que ao voltar fui levado à loucura.
Deixei sua casa já passava das onze e meia de quarta-feira. Antes de voltar ao flat  fui dar um passeio pelo Centro, e no caminho de volta, ao pegar à Avenida Nove de Julho, logo após o túnel, passei por alguma coisa que estava caída sobre o asfalto, rebatendo e danificando o escapamento do carro que eu acabara de ganhar.
Merda! Imediatamente percebi uma diferença no veículo, e o barulho que começou a soar não me restou dúvida de que algo de errado havia acontecido. Com medo de ficar pela estrada, entrei na primeira rua à direita e perguntei em um posto de gasolina que havia na esquina:
-Boa noite!
-Boa noite!
-Eu quero saber se por aqui tem algum mecânico aberto há essa hora?
            Apontando para frente, o frentista falou:
-Na Alameda Itu tem uma oficina, mas ela fecha meia noite.
-E onde fica essa rua?
-É aquela de cima.
-Então é melhor eu correr... Valeu!
Arranquei com o carro e subi até a rua de cima, onde o cara havia dito que existia uma oficina mecânica. Meu pé intercalava entre o freio e o acelerador, enquanto meus olhos fixavam entre os dois lados das calçadas daquela deserta rua.
Duas quadras depois avistei um clarão logo à frente. Acelerei em sua direção, e quando aproximei-me percebi que já estavam baixando às portas da oficina. Parei o carro. Somente com o freio de mão acionado, desci do veículo e corri até lá dizendo a um rapaz com um enorme ferro à mão:
-Por favor, será que você poderia me ajudar?
Tirando os pinos do fecho da porta de aço, o cara respondeu:
-Já estou fechando, mano.
-É que estou com um problema... Eu pago a mais se for o caso...
-O que houve? - Questionou sem muito me dar atenção.
-Não sei ao certo o que atingiu meu carro, mas está fazendo um barulho estranho...
Colocando uma chave suja de graxa sobre uma mesa lotada de sucatas, questionou:
-Você percebeu algum vazamento depois disso?
-Não...
-Cadê o carro?
-Está ali. - Falei apontando pro veículo que estava pouco mais de dez metros de distância.
-Vamos lá ver...
Vestindo uma calça jeans manchada e uma camisa aberta na mesma situação, caminhou pela rua em direção ao meu carro. A carteira em seu bolso traseiro direito fazia com que o caimento de sua calça mostrasse sua cueca branca, aparentemente limpa. Barba por fazer, jeito rústico, mãos grandes e maltratadas. Deveria ser um furacão na cama.
O cara não parecia ter mais que trinta anos. Peitoral definido coberto por pelos serrados, porte bem masculino, jeito rústico. Confesso que no começo fiquei um pouco amedrontado com seu olhar de caçador, parecendo que iria me engolir. Safado como eu era, imaginei loucuras observando aquele corpo enquanto ajudava-me.
            Deitando-se ao chão ele entrou embaixo do carro. A forma como fazia demonstrava que possuía muita prática e habilidade naquela função. Que tesão! Enquanto seus braços fortes verificavam, apoiei-me ao capô e observava parte de suas pernas e pés que ficaram pra fora. Coxas torneadas, deveria “bombar” com força, sem dó. 
Olhei ao relógio e já passava da meia noite. Levantando-se, ele falou batendo uma mão à outra:
-Aparentemente não tem nada de errado. Mas vou levar ele até a oficina pra dar uma olhada com mais detalhe... -Disse já entrando em meu carro.
-E você vai entrar com essa calça suja? - Questionei aproximando-me dele.
-Bem... Só se eu tirar.
-Eu não me importaria se isso acontecesse.
Sem responder ele entrou no veículo e o levou até a oficina. Eu deveria ter sido mais incisivo ao impedi-lo de entrar no meu carro, pois assim quem sabe ele tirasse aquela calça logo e me fizesse parar de “sofrer”.
Logo ao entrar notei que havia um carro bem ao fundo. Do meu lado direito existia uma banheira cheia de peças sujas, cujo ocupava um grande espaço na porta do banheiro estampado com vários calendários de mulheres nuas, algo típico desse tipo de lugar.
Curioso, questionei:
-Você... Trabalha aqui... Sozinho?
-Não... Tem mais três mecânicos, mas estão de folga hoje. - Respondeu abrindo o capô do carro, com a calça ainda mais caída.
            Vendo aquela cena, pensei besteira. Por acreditar que todo homem no fundo, no fundo é bissexual, pelo menos na atividade sexual em si, não hesitei em testar até onde eu poderia ir e o que poderia conseguir, porque passar vontade não era comigo.
-E seus colegas são todos assim como você?
-"Assim" como? - Perguntou entrando embaixo do motor.
-Assim... Fortes, sujos de graxa...
-É obvio... Nessa profissão precisa de força.
-Realmente, é uma atividade bem máscula... Excitante...
Deslizando de volta sobre um carrinho, ele perguntou:
-O que você está querendo?
-Eu?
-Essas suas perguntas... Você quer o quê afinal?
-Relaxa, só fiquei curioso em saber um pouco mais sobre a profissão.
Cruzando os braços e apoiando-se na lateral do veículo, ele questionou:
-Beleza, o que você quer saber então?
Fiquei com água na boca ao ver aqueles bíceps ressaltados pelos braços cruzados. Delícia! Uma tatuagem com o desenho de um arame farpado o contornava, deixando-me ainda mais curioso para prová-lo e sentir aquela “potencia” toda.
Suspirei fundo, engolindo a saliva seca. Curioso, quis saber:
-Qual sua idade?
-27.
-Você... O que ocorreu com o carro? Já sabe dizer?
-Sim, foi apenas o escapamento que soltou do suporte e fez aquele barulho que você reclamou, nada demais.
-Você tem certeza? Não quer dar mais uma olhada? - Insisti desanimado.
-Tenho... Eu trabalho com isso, não tem nada mais danificado além desse problema que já arrumei.
-Não sei, mas acho que você deveria dar uma atenção melhor ao meu problema... Será que não danificou o tanque...
Sem responder ele foi até à porta de aço, pegou o longo ferro e a desceu de uma só vez. Fiquei sem reação.
-Ei... Você não vai me trancar aqui, né?
Calado, ele aproximou-se de mim, prendeu-me à parede com seu quadril, tirou sua camisa e começou a me beijar. Sua mão suja, assim como seu corpo, tocavam o meu com vontade. Pegada forte. Iria deixar-me todo marcado, mas não estava nem me importando, porque gostoso do jeito que o mecânico aparentava ser, não deixaria passar aquela oportunidade.
            Com brutalidade ele arrancou minha roupa, arrebentando alguns botões da camisa. Que tesão! Quando desceu sua calça, perdi o fôlego e o juízo. Os indícios do que havia por baixo daquela cueca preta já me deixou cabreiro devido ao volume.
Descendo minha calça, ele virou-me de costas e foi com tudo. Segurei àquelas paredes com força, ou melhor, forçado pela pressão de seu corpo robusto e truculento, cujo nem sabia o nome. Sua mão áspera e calejada alisava minhas costas, exalando cheiro de menta deixado pela camisinha que ele havia colocado.
            Transamos ali mesmo, em pé. O gel que havia em meu cabelo quando cheguei, não deixou rastro, dissolvendo-se entre seus dedos a cada puxão que me dava, seguido de um tranco alavancado. Suas bombadas fortes fizeram com que meu peito ficasse todo arranhado no atrito com a parede.
            Após vestir minha roupa, perguntei:
-Por que você fez isso?
-Você estava pedindo. - Respondeu subindo sua calça.
-Eu?
-Cara, sem essa. Taí seu carro, o problema já está resolvido... - Falou erguendo à porta de aço.
Entrei no carro enquanto ele seguiu para os fundos da oficina. Arranquei daquele lugar imundo, e realmente o barulho havia sido sanado. Quando estava quase chegando em casa dei-me conta de que não havia pagado pelo seu serviço, sendo assim, teria um pretexto para voltar lá qualquer hora, e quem sabe, repetir a dose.
Entrei à sala, peguei meu celular à mão e notei que haviam algumas ligações não atendidas. Joguei-o sobre o sofá dando a mínima importância, pois o número que acusava era privado, e se fosse algo urgente ligariam novamente.
Deitei-me à cama e o telefone de casa começou a tocar:
-Alô?
-Claus?
-Eu!
-O que aconteceu? - Perguntou o Leonardo preocupado.
-Por quê? - Questionei roendo a unha.
-Liguei pra você e não me atendeu...
-Ah... É... É que eu acabei de chegar.
-E o celular?
-Desculpa, é que eu não ouvi...
-Tudo bem, eu fiquei preocupado, pois você saiu daqui tão tarde...
-Relaxa, acabou me dando fome e eu passei numa lanchonete pra comer alguma coisa...
-Tá bom.
            Depois de conversarmos um pouco, desliguei o telefone e fui tomar um banho para tirar aquele cheiro rústico de suor da minha pele, além das manchas de graxa que ficaram por todo meu corpo.
           Ficar em casa o dia inteiro sem fazer anda estava me cansando, ou melhor, aquela vida mansa estava entediando-me. No começo até que estava legal, era tudo maravilha, porém, a falta de novidade somada à monotonia cotidiana chega a ser mais chata do que a de um operário.
            No outro dia fui almoçar no shopping, aproveitando que às segundas feiras costumava ser vazio em relação aos outros dias da semana. Desde que havia chego a São Paulo, eu só havia comido estrogonofe uma vez, e minhas lombrigas já estavam alvoroçadas para que eu provasse novamente.
            Enquanto comia, assistia ao telejornal no televisor de plasma enorme que havia na praça de alimentação. Não sei se meu paladar que não estava muito bom naquele dia ou era a comida, pois pra mim estava horrorosa.
            Deixei metade na bandeja sobre a bancada do lixo e saí daquele lugar, largado às moscas de tão vazio. Como sobremesa tomava um café gelado com creme, e ao descer à escada rolante ouvi meu nome:
-Claus!?
            Virei-me e avistei o Rubens, o mesmo que dividia quarto comigo na pensa daquela velha ordinária, Marcelina:
-Rubens!
-Eaí cara... Como você está?
-Eu tô bem, e você?
-Tô legal também... Casei, saí da pensão...
-Aquilo não era lugar pra ninguém.
-Pois é... Aquela velha me roubou.
-Roubou?
-É... Ela é uma pilantra, não me deu recibo da quinzena e me colocou pra fora.
-E você saiu?
-Foi até bom, sabe... Eu já estava mesmo a fim de cair fora daquele pulgueiro.
-Você ainda está trabalhando lá na gráfica?
-Ainda... Tô voltando agora do trampo.
-Você é um cara trabalhador que eu sei.
-É... Ainda mais agora que vou ser papai.
-Caraca! Que massa, cara!
-Pois é...
-Já sabe qual é o sexo?
-É um moleque... Sete meses já.
-Parabéns, papai!
            Dei-lhe um abraço para cumprimentá-lo.
-Eu tô morando no Tatuapé agora. Passa lá em casa qualquer hora.
-Passo sim. Anota meu telefone e meu e-mail...
-Falae...
            O tempo realmente passa voando, e quando a gente se sente inútil, nem o vê passar.
-Pode deixar que eu te mando mensagem com o endereço.
-Beleza.
-Falou, mano!
-Boa sorte pra ti.
            Fiquei feliz em rever o Rubens. Sempre o admirei por ser um cara honesto e trabalhador, mesmo nunca ter sido reconhecido pelas suas qualidades. Às vezes eu chegava a pensar que viver uma vida politicamente correta não valesse a pena, mas cedo ou tarde a vida me mostraria que não era verdade.
            Na terça-feira pela manhã telefonei para minha mãe. Até estava meio apreensivo devido à sua saúde não andar muito bem, mas para minha surpresa ela demonstrou estar melhor do que eu. Nos falamos por quase meia hora, até minha irmã interromper nossa conversa com sua visita inconveniente.
            Desliguei o telefone e fui dar um passeio no jardim do flat. Mal pisei à pista de caminhada quando meu celular começou a tocar. O número do telefone identificado era da casa do Leonardo, mas eu sabia que não era ele porque estava trabalhando em sua clínica, ao menos que tivesse acontecido algo que o impedisse.
-Alô?
-Senhor Claus?
-Eu...
-É a Cíntia...
-Oi!?
            Cíntia era outra empregada do Leonardo. Ela quem cuidava da arrumação da casa, diferente da Vera, que só cozinhava e palpitava na vida dos outros.
-Fala, Cíntia?
-Por favor, venha até aqui... - Disse em voz baixa.
-O que houve?
-Não posso falar por telefone, mas se o senhor não vim pode se complicar.
            Alguma coisa séria estava acontecendo. Será que o Leonardo sofrera um acidente? Melhor nem pensar antes de saber o que realmente acontecia, pois hipóteses eram o que não faltava.
            Voltei ao meu apartamento, peguei à chave do carro e desci. Fechei os vidros do veículo e liguei o ar condicionado, pois o calor estava insuportável. Por mais que eu tentasse ficar calmo, manter o controle estava difícil, principalmente pelo tom de voz e mistério que a Cíntia contou-me.
            Cheguei à casa do Leonardo em menos de quinze minutos. Toquei à campainha e logo fui recebido pela Cíntia, que após abrir o portão, comentou apreensiva:
-Eu não quero acreditar que foi o senhor... - Falou levando sua mão a boca.
-Que foi eu o quê? - Questionei seguindo em direção à porta da sala.
            Nesse momento a Vera apareceu. Seus olhos cuspiam fogo, e segurando um saco plástico à mão, o jogou sobre a mesa da cozinha perguntando:
-Era isso que enterrava na noite em que a Gigi passou mal?
-O que é isso?
           Dentro daquele pacote continha o vidro de insulina que eu havia enterrado para que a Giovana passasse mal. Merda! Como será que ela foi achar aquilo?
-Não finja que não sabe. Vamos acabar com essa farsa.
-Gente... Eu não sei de nada. Por que estão me acusando?
-Eu falei pra você, Vera. Não foi ele... - Disse a Cíntia.
-Não sei... Acho muita coincidência...
-O que eu ganharia com isso? Me digam?
            Embora a Vera não tivesse convencida quanto ao meu argumento, parou de insistir no interrogatório. Fiquei preocupado. Caminhei até a sala, peguei meu celular do bolso e liguei para a Talita:
-Talita... Preciso da sua ajuda.
-Ai, agora não posso, estou muito ocupada.
-Você precisa me ouvir...
-Fala logo?
-A Vera me colocou contra a parede... Está desconfiada de que fui eu que dei sumiço na insulina...
-Desconfiada como?
-Ela achou o vidro enterrado no jardim... Se a Vera descobrir que nós estamos armando contra o Leonardo, pode ser quê...
            Nesse momento avistei a Vera parada próxima à porta da cozinha. Larguei o celular e fui atrás dela, que irada, falou:
-Eu sabia que tinha sido o senhor... Não vou deixar meu doutor ser enganado...
-Do que você está falando, velha alcoviteira?
-Vou agora mesmo contar toda a verdade pra ele.
            Pegando sua bolsa ela saiu. Imediatamente corri até a sala, peguei o telefone e voltei a falar com a Talita:
-Fudeu, Talita!
-Mas o que está acontecendo, garoto?
-A Vera...
-O que houve?
-Ela saiu daqui dizendo que vai contar tudo ao Leonardo...
-Seu incompetente!
-Eu vou atrás dela...
-Nada disso... Vai colocar tudo a perder.
-Então o que eu faço?
            Após um profundo suspiro ela disse:
-Vá até a clínica e não deixe que essa subalterna se aproxime do Leonardo.
-Como eu faço isso?
-Céus! Se vira, foi você que criou essa confusão toda.
-Ao invés de ficar me criticando, poderia me ajudar, né?
-Eu acho melhor você correr, ou quer que ela chegue antes de você?
-Tudo bem...
-Deixe que eu cuido do resto.
            Desliguei o telefone e tratei de correr pra clínica do Leonardo. Se aquela estúpida contasse algo a ele, nosso plano iria por água abaixo, e perder a boa vida que eu estava levando era algo que eu não pretendia tão cedo.
            Cheguei rapidamente, cabreiro, com receio de que ela houvesse chego primeiro que eu.
-Boa tarde!
-Olá, tudo bem?
-Tudo... O Leonardo está ai?
-Não... Ele deu uma saída.
-Ah!... Ele avisou aonde foi?
-Não disse. O senhor quer esperá-lo?
-Eu posso?
-Claro!
            Sentei-me ao sofá, e após pegar uma revista para distrair-me, perguntei apreensivo:
-Você sabe se esteve alguém aqui hoje perguntando por ele?
-Não sei, porque quando cheguei do almoço o doutor já não estava.
-Entendi. Obrigado!
Liguei em seu celular e deu caixa postal nas quatro tentativas seguidas que efetuei. Até então, a Vera ainda não havia passado pela clínica, e óbvio que eu não sairia de lá enquanto um dos dois não chegasse.
            Duas horas se passaram. Se aquela perturbada quisesse falar com o Leonardo em seu local de trabalho, tempo suficiente já havia se passado, fazendo-me concluir que ela não iria mais. Já o Leonardo, provavelmente não voltaria mais naquele dia, sendo assim, resolvi seguir pra casa, pensando e já me preparando para possivelmente voltar às estatísticas de desemprego do país.
            Ao cruzar à recepção perguntei ao recepcionista:
-Boa tarde, senhor Claus!
-Boa tarde! Alguma correspondência pra mim?
-Hoje não.
-Tudo bem... Ah!... Alguém esteve aqui me procurando?
-Não senhor.
-Beleza.
            Peguei o elevador que já aguardava parado no térreo. Eu não via à hora de chegar em casa, tomar um banho e cair na cama, de tão cansado. Minhas pernas estavam doloridas de tanto que corri, além de moles pelo medo que me consumia a consciência.
            Abri à porta da sala. Entrei jogando à chave sobre a bancada da cozinha. Fechei-a em seguida e acendi a luz. Encostei a cabeça à porta, de olhos fechados. Respirei fundo, tentando livrar-me da leve dor de cabeça que começava a me pegar. Ao abri-los novamente, deparei-me com uma horrível cena, cujo jamais havia visto na vida.
Caída sobre o tapete estava a Vera, banhada em uma poça de sangue, de bruços, segurando em sua mão esquerda um telefone celular. Abismado, dei dois passos à frente, e nesse momento aquele telefone começou a tocar. Maldição! Levei um susto. O que será que ela fazia dentro do meu apartamento? E o pior, como ela havia entrado em casa? Perguntas essas que não queriam calar, e certamente eu estava encrencado.
Amedrontado, peguei o aparelho de sua mão e notei que o número chamado era da casa do Leonardo. Inferno! Tudo para atrapalhar minha vida, meus planos. Pulando à poça coloquei-o sobre a mesa. Em seguida, corri até o quarto, sentei-me à cama e apoiei a cabeça sobre as mãos, sem saber o quê fazer, confuso.
            Telefonei para a Talita, trêmulo, implorando por ajuda.
-Alô? - Atendeu com a voz ofegante.
-Talita...
-O que foi dessa vez?
-A Vera...
-Não me diga que você deixou ela chegar na...
-Não, não... Ela está aqui.
-O que ela faz ai?
-Não sei... Quando cheguei encontrei ela caída na sala... Morta!
-O quê?
-Por favor, me ajude?
-Inferno! Você me traz mais problemas do que solução...
-O que eu faço?
-Não toque nessa infeliz, aguarde eu chegar ai.
-Tudo bem.
            Desliguei o telefone e permaneci no quarto, apavorado. O silêncio daquele apartamento logo foi quebrado pelo seu celular que começou a tocar novamente. Caminhei até a porta e o espiei, vibrando sobre a mesa até cair ao chão e se quebrar, um trabalho a menos para mim.
O silêncio voltou a se fazer presente naquele apartamento, interrompido apenas pelo barulho do vento batendo ao vidro das janelas. Certamente alguém já deveria ter notado a ausência daquela infeliz, e algo deveria ser feito antes que a polícia fosse comunicada e as buscas pela desaparecida começassem.
            Aquele sangue se secando ao chão estava deixando-me aflito. Calado, dei um profundo suspiro, levando um tremendo susto ao toque da campainha. Se alguém descobrisse algo, eu estaria fodido, pois não saberia explicar o que aquele corpo fazia caído na sala da minha casa.
            Com a perna bamba, caminhei até a porta. Espiei através do olho mágico quem era antes de abrir. Respirei aliviado quando vi a Talita, aparentemente nervosa.
            Puxando uma mala, ela falou "educada" como sempre ao entrar:
-Sai do meu caminho e me ajude aqui com essa mala.
            Após fechar à porta, perguntei:
-Pra que essa... Coisa?
-Como o senhorito pretende se livrar dessa marmota? Jogando pela janela?
-Sei lá...
-Se não tem ideia melhor, não reclame.
            Abrindo à mala, ela questionou:
-Vai ficar ai parado feito um soldado de chumbo, ou vai me ajudar aqui?
-O que eu faço?
-Me ajude colocá-la dentro dessa mala...
-Tá. Nossa!... É magra, mas pesada... - Exclamei carregando-a.
-Maldita foi à hora que eu te contratei.
-Agora não é hora de se lamentar.
            Nesse momento a campainha tocou. Levamos um susto. Imediatamente larguei as mãos da defunta. Quem seria uma hora daquela?
            Caminhando na ponta dos pés segui até a porta, espiando através do olho mágico quem era. Merda! Encostei-me ao lado da porta anestesiado, não acreditando que fosse verdade a presença de quem eu acabara de ver.
Fechando à mala, a Talita perguntou sussurrando:
-Quem é?
-O Leonardo! - Exclamei batendo o queixo.
-O quê?
-E agora?
-Desligue o seu celular agora.
-Por quê?
-Não pense, faça só o que eu mando.
            Cumprindo suas orientações desliguei meu celular. Ficamos calados, nos mantendo o mais imóvel possível para não chamar atenção de quem estivesse no corredor.
            Após tocar a  campainha por três vezes, o Leonardo. Aguardei alguns minutos e espiei novamente. Corredor vazio, barra limpa. Suspirei aliviado, mas ainda havia uma missão a ser cumprida, que era dar um sumiço naquele corpo maldito.
            Com o dedo à boca, a Talita perguntou:
-Ele já foi?
-Sim.
-Precisamos limpar todo esse sangue...
-É verdade, antes que seque.
-Pegue logo um pano úmido...
            Inferno! Eu não tinha nada a ver com aquilo e ainda sobrou-me a responsabilidade de ocultar a prova do crime. Motivos para suspeitar da Talita eu tinha de sobra, porque ela possuía a chave do meu apartamento, além de tranquilizar-me por telefone com palavras suspeitas e o ódio pela Vera.
Esfregamos aquele chão como loucos e, ainda assim, restaram algumas manchas no piso que insistiam em permanecer. Retiramos o pequeno tapete que estava encharcado e o colocamos junto com o corpo dentro daquela enorme mala, além do pano que nos ajudou a limpar.
-Isso tá parecendo aquele caso do crime da mala. - Falei puxando-a para próximo da porta.
-Com exceção de que não esquartejamos ninguém.
-Nem matamos.
-Quanto a isso eu já não sei... Não estava aqui na hora...
-O quê? Não acredita em mim?
-Temos uma relação profissional apenas, e não de confiança.
            Safada! Agora queria me deixar como suspeito na história para tirar o dela da reta.
-Esse negócio de mala não vai dar certo...
-Desencana. Não somos os primeiros nem seremos os últimos a apelar pra uma mala para ocultar um cadáver. - Disse a Talita com toda frieza.
-Ai, ai...
-Pior seria ter que explicar o que esse corpo faz caído na sua sala. Não é?
-Você acha que eu fui capaz de fazer isso?
-Querido, que outra explicação se dá para essa infeliz aparecer aqui enforcada?
-Eu não sei, é serio... Aliás, como você sabe que ela foi enforcada?
            Desconsertada, caminhou em direção à janela tentando justificar:
-Eu?... Bem, eu... Ora essa, eu não sei de nada... Foi maneira de dizer.
-Sei...
-Difícil de acreditar em seus argumentos, Claus...
-E o que você fez nessas últimas horas, hein?
-Como assim, o que eu fiz?
-Você disse que resolveria tudo e que era pra eu seguir até a clínica...
            Caminhando em direção à porta a Talita interrompeu o assunto:
-Ficar discutindo quem ou o quê essa mulher imbecil veio fazer aqui é perca de tempo. Precisamos nos livrar logo desse corpo antes que alguém o descubra.
            Arrastei aquela pesada mala e, antes de abrir à porta, questionei:
-E agora?
-Deixa que eu desço primeiro.
-Mas e eu?
-Você espera um pouco e desce em seguida, mas pegue o elevador de serviço.
-Tá.
-E não ouse aceitar qualquer ajuda dos funcionários.
-Tudo bem.
-Espero você no meu carro.
-Você deixou ele estacionado onde?
-Na saída da Joaquim Floriano.
-Tá... Logo estou descendo.
            Assim que ela saiu, tranquei a porta. Enquanto aguardava no silêncio da sala, olhava para aquele trambolho, ali parado, tendo a impressão de que a Vera pudesse acordar a qualquer momento e me acusar de algo.
Quinze minutos depois deixei o apartamento e fui carregando aquela enorme mala até o elevador de serviço. A porta se abriu e, mesmo havendo uma arrumadeira com um carrinho cheio de lençóis e panos, resolvi entrar sem dar muita trela.
            Ajeitando aquele trambolho no canto, ela disse:
-Senhor, esse é o elevador de serviço...
-Eu sei, não sou burro. - Respondi irritado.
            Desci até o térreo sem dizer um "a", pois como a Talita dizia, dar confiança para serviçal era o mesmo que dar queijo aos ratos, ou seja, eles montavam em cima.
            Arrastei aquele estorvo pelas calçadas, driblando os pedestres e atento ao movimento das pessoas que por ali passavam. Poderia ter dado mais trabalho se não fossem as rodas para facilitarem na locomoção até o carro da Talita, que estava parado na rua de cima.
            Com o olhar desconfiado ela olhava de um lado pro outro, sem tirar seus óculos escuros. Abrindo o porta-malas do carro, a Talita disse:
-Coloca logo isso ai dentro.
-Está muito pesada...
-Vai, força... - Disse ela ajudando-me.
            Fizemos tudo da maneira mais discreta possível. Eu estava muito nervoso, e se não fosse a Talita ajudar-me, não sei o que faria com aquele cadáver, ou quem sabe ele nem existisse.
            Entramos no carro e seguimos em direção à Marginal Pinheiros. Enquanto guiava, a Talita falou:
-Agora ligue para o Leonardo do seu celular.
-Pra quê?
-Você quer que ele desconfie de algo?
-Não.
-Então vai... Liga.
-E o que eu digo?
-Se vira... Se fosse pra eu fazer tudo, não teria contratado seus serviços...
            A desculpa teria que ser muito boa, pois o Leonardo não era idiota e qualquer deslize meu colocaria tudo a perder. Tive que me concentrar por alguns minutos, respirar fundo e discar torcendo para que ele não me fizesse muitos questionamentos.
-Alô, Leo?
-Claus... O que aconteceu?
-Por quê?
-Estava tentando falar com você...
-Comigo?
-Sim.
-Era algo urgente?
-Nós tínhamos combinado de jantar hoje. Esqueceu?
-Putz!... Desculpa, é que esqueci minha carteira na livraria onde fui comprar um livro...
-Que horas a gente se encontra então?
-Bem, ainda não sei... Podemos deixar pra outro dia?
-Você quem sabe. De qualquer maneira terei que jantar fora.
-Ué... Por quê?
-Porque a Vera não está em casa, nem deixou nada pronto...
            Nesse momento um frio na barriga bateu-me fundo.
-Vai ver ela foi ao mercado...
-Hoje não é dia de fazer compras... O pior de tudo é que ela não atende o celular...
-Tente depois.
-É o que farei.
-Beijos, nos falamos mais tarde.
-Tá bom.
            Desliguei o telefone exclamando:
-Fudeu!
-O que foi?
-O Leonardo já deu falta da Vera...
-Inferno! - Exclamou dando um soco no volante.
-Estamos perdidos.
-Cale essa boca. Até que eles encontrem esse corpo, nós já estaremos bem longe, distantes de qualquer suspeita.
-Assim espero.
            Começava a anoitecer e depois de andarmos por quase uma hora de carro, eu já me considerava perdido nessa cidade de concreto.
            Parando próximo a um lixão, a Talita disse puxando o freio de mão:
-Precisamos ser rápidos antes que alguém nos perceba.
-Tá...
            Abri à porta do carro tapando o nariz, pois o cheiro era insuportável. Ao tirarmos "o pacote" de dentro do porta-malas, reparei que no canto esquerdo havia uma mancha de sangue no carpete.
            Antes que eu dissesse, a Talita percebeu e reclamou:
-Inferno! Manchou meu carro...
-Depois você manda lavar a seco. - Falei fechando o porta-malas.
-Não sei até onde vai sua ignorância, mas sangue mancha, e pode ser detectado com uma luz especial.
-Mesmo depois de lavado?
-Mesmo assim.
-Caralho! Como essa infeliz foi aparecer na minha casa?
-Isso é uma função que cabe a polícia investigar.
-Será que tem alguém tentando me incriminar?
-Nesse mundo, tudo é possível. Agora vamos tirar logo isso daqui antes que alguém nos perceba.
            Juntos, arrastamos aquele trambolho até o incinerador, onde misturamos a mala ao monte de lixo que estava sendo queimado. Nos aproveitamos que os funcionários estavam distraídos com suas inchadas, dessa forma não perceberam nossa aproximação. Havia também a preocupação com os catadores de lixo, mas eles estavam tão ocupados que não perceberam nossa presença, ou não deram importância.
Assistimos de longe toda a prova do crime sendo destruída, afastando-nos de qualquer suspeita que viesse surgir.




Próximo capítulo:     | O filme proibido |
Dia 19/03



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