quarta-feira, 30 de março de 2016

LIVRO: PROFISSÃO AMANTE - CAPÍTULO 22



| A triste notícia |
  
            No outro dia acordei cedo. Tomei um rápido banho, embora faltasse bastante tempo para o início do exame. Sai do banheiro. Olhei no relógio e ainda eram onze da manhã. Não sei o porquê, mas aquele dia eu não havia acordado muito bem, uma angústia insuportável pressionava meu peito, como se eu afundasse no mais profundo dos oceanos.
            Peguei o pequeno estojo que havia comprado e segui para o local onde seria a prova, deixando o Leonardo dormindo como um anjo.
O sol incomodava-me os olhos, pois acordar cedo não era meu forte. Chegando ao ponto do ônibus, senti a leve brisa da manhã, sem nenhum carro pela rua. Que raridade! Seria muito bom se São Paulo fosse todos os dias daquela maneira.
Depender de transporte aos domingos era um inferno. A frota costumava ser reduzida, atrasando a vida dos que necessitam. Até que dei sorte e assim que cheguei ao ponto, ele passou. As ruas estavam desertas, todo mundo em casa se preparando para ver o jogo na TV. Minha vontade era também de estar em casa, tomando minha cerveja bem gelada, comendo um salaminho com limão, orégano e vendo o jogo, mas estudar também deveria ser um fator importante.
            Ao chegar, desci em frente à faculdade. Menos mal! Ter que andar embaixo de sol quente ninguém merece. O portão já estava aberto, e uma multidão conferia os nomes nas listas disponíveis logo na entrada. Como o meu começava com C, não foi difícil encontrar, pois as primeiras listas quase ninguém consultava.

Claus de Oliveira - Sala 12 - 2º andar

Embora faltasse mais de meia hora para o início da prova, subi pra sala e fiquei aguardando, sentado à carteira reservada para mim. Que silêncio! Os candidatos iam chegando aos poucos, ocupando seus lugares, nervosos e ansiosos.
Enquanto esperava, observava o ambiente. A sala não era muito grande, carteiras bem distribuídas, acústica favorável. O quadro negro era em formato oval, de forma que as luzes não refletissem atrapalhando a visualização pelos alunos.
-Bom, pessoal... Vou começar a distribuir a folha de respostas. - Disse a monitora com várias folhas nas mãos.
            Abri o estojo, separei a caneta preta e aguardei uma das folhas chegarem até mim. Eu estava apreensivo, meio inseguro. Para ser sincero eu não botava muita fé de que me daria bem.
-Após uma hora e meia do início da prova, quem terminar já poderá sair. O caderno de questões pode ficar com vocês. Devolvam somente a folha de respostas, sem rasuras e assinada. - Orientou a monitora.
            Dentro daquela sala havia várias pessoas que, provavelmente, dedicaram o ano inteiro aos estudos para realizar um dos vestibulares mais concorridos do país. E eu, que mal li os livros pedidos, não estaria à altura de concorrer com doze pessoas por apenas uma vaga.
            Geralmente, quando eu fazia prova, costumava levar dois lápis. Um pra comer e outro pra escrever, e naquele dia não poderia ser diferente. Silêncio na sala. Nervoso, eu não parava de balançar as pernas. Ao meu lado uma menina comia chocolate, tranquila, o que me deixou mais inseguro ainda.
            A prova não estava tão difícil quanto eu pensava, e isso era o que me deixava com medo, pois quando as questões estavam fáceis demais, eu sempre tomava pau. As questões iniciaram com Língua Portuguesa, com um enorme texto para ser interpretado. Ao passar o olho tive vontade de chorar, mas não era um bicho de sete cabeças.
            As horas estavam passando rápido. Olhei para a menina do canto e percebi que ela ainda respondia às questões, enquanto eu já estava na metade da redação, quase terminando. Apesar do tema ter sido livre, não foi muito fácil escrever no mínimo cinquenta linhas com dez palavras pré determinadas que deveriam estar presentes no texto.
            O olhar da fiscal da sala parecia de uma águia procurando sua presa. Cabelo preso com um rabo de cavalo, mascando chiclete de boca aberta, nem uma mosca escapava de seu olhar.
            Lá fora o sol estava de rachar. No interior da sala o silêncio chegava a incomodar, sendo quebrado apenas pelo virar das folhas do caderno de questões.
            Terminei de preencher a folha de respostas e ainda tive que aguardar dez minutos para sair, pois terminei um pouco antes do horário mínimo de saída. Que alívio! Não via a hora de chegar em casa e descansar um pouco, pois esforço mensal também desgasta, e pra falar a verdade, parecia que eu havia corrido uma maratona.
            Domingo tranquilo, de sol quente. Desci pelas escadas acabado. Nunca havia respondido tanta pergunta em toda minha vida num só dia. Cruzei o portão da faculdade e avistei poucas pessoas à rua. Silêncio. Era possível ouvir o canto dos pássaros provindos de uma enorme árvore à calçada. A brisa leve e fresca trazia o cheiro de terra molhada, somada à sombra, formavam uma combinação perfeita.
Caminhei uns passos à frente quando avistei o carro do Leonardo. Que surpresa! Ele não havia avisado que iria me buscar. Imediatamente expressei um sorriso que ia de orelha a orelha.
            Encostado à porta do motorista, deu um sorriso ao me ver sair:
-Leo!
-Opa... Como foi a prova?
-Acho que não fui muito bem. - Falei após um longo suspiro.
-Hum...
-Eu não esperava que você estivesse aqui.
-E você acha que eu iria te deixar voltar sozinho?
Dando partida, ele questionou:
-Você parece estar preocupado. Tô certo?
-É que... Achei que estava fácil demais a prova. Quando isso acontece... Mau sinal.
-Não pense assim.
-Mas é verdade. Nos tempos de escola eu sempre me fodi nessas provas fáceis demais...
            Parando no semáforo, ele perguntou:
-Está cansado?
-Um pouco...
-Está com fome?
-Sim.
-Então vamos almoçar.
-Mas você não está com as crianças em casa?
-Sim, mas elas estão dormindo ainda...
-Nossa! E se acordarem?
-A babá cuida deles nesse tempo que eu não estiver, afinal, ela ganha para isso.
-Então tá.
            Ao chegarmos à casa do Leonardo, já poderíamos sentir o cheiro bom de comida logo da porta. Que fome! Desci do carro e, antes que eu pudesse dar meu primeiro passo a frente, meu celular começou a tocar.
-Alô?
-Clau?
-Sim.
-É Jucinéia...
-Oi, Néia!
-Clau, a mãe tá muito mal.
            Gelei.
-O que ela tem? - Perguntei com o coração quase saindo pela boca.
-Ninguém sabe ainda... Tá todo mundo preocupado...
-Ah, meu Deus!
Vendo meu estado de preocupação, o Leonardo perguntou aproximando-se de mim:
-O que houve, Claus?
-Minha mãe teve que ser internada às pressas na emergência...
-O que ela tem?
-Ninguém sabe.
            O desespero começou a tomar conta de mim. Estava indo tudo muito bem para ser verdade. As lágrimas desciam de meus olhos como uma torneira aberta, além do coração disparado. Comecei a tremer. Minha cabeça já não pensava mais em nada, apenas na minha mãe.
            Preocupado, o Leonardo disse à Claudia que estava parada à porta segurando a mão das crianças:
-Leve eles para o quarto, Cláudia.
-Sim senhor.
            Enquanto ela levou as crianças para o interior da casa, o Leonardo se aproximou de mim, deu-me um abraço e disse:
-Não entre em desespero. Pergunte em que hospital ela está?
            Voltei a falar com minha irmã:
-Néia... Em que hospital a mãe tá?
-Eu não sei o nome...
Soluçando, falei ao Leonardo:
-Ela não sabe o nome.
-Em que cidade ela está?
-Juiz de Fora.
-Diga a ela que depois você retorna a ligação.
-Mas Leonardo...
-Faça o que eu estou pedindo, confie em mim.
-Néia... Depois eu te ligo.
-Tá bom, tchau.
-Tchau.
            Desliguei o telefone e entrei na casa amparado pelo Leonardo, que preocupado, tentava me acalmar. Seguimos até a sala de jantar, onde a mesa já estava posta.
            Puxando à cadeira, ele falou à empregada:
-Peça para que a Claudia traga as crianças para almoçar.
-Sim senhor.
Limpando as lágrimas eu disse:
-Não estou com fome...
-Mas você vai comer... Eu vou dar um jeito de ajudar sua mãe.
-Você promete?
-Claro. Agora enxugue suas lágrimas e vamos almoçar com calma.
-Tudo bem.
Com a ajuda da outra empregada, a Cláudia colocou as crianças sentadas à mesa, que foram logo questionando:
-Papai... Depois eu posso comer bolo?
-Só depois de almoçar.
-Oba!
-Claudia...
-Sim, senhor?
-Você aplicou a insulina na Giovana?
Sim, logo quando ela acordou.
-Então está bem.
Mal toquei na comida. Meus pensamentos estavam longe, e o coração apertado. Minha mãe era a única pessoa que eu amava de verdade, além do Leonardo. Só de pensar que algo de ruim pudesse acontecer a ela eu já entrava em pânico.
            Após o almoço fomos todos para a sala. Entregando-me um papel, o Leonardo disse:
-Escreve aqui o nome completo da sua mãe.
-Pra quê?
-Não faça muitas perguntas. Confie em mim.
-Tudo bem.
Anotei naquela folha o nome dela conforme ele havia pedido, em seguida o Leonardo saiu da sala dizendo que voltava logo. Enquanto as crianças brincavam com a babá ao tapete, permaneci sentado no canto do sofá, chorando sozinho. Uma angústia apertava meu peito enquanto o medo me fazia tremer.
Percebendo minha tristeza, a Giovana foi perguntar:
-Você está triste?
-Um pouco.
-Minha mãe disse que o papai do céu não gosta de ver ninguém triste.
-É?
-É... Sabe o que eu faço quando estou triste?
-Não... O quê?
Entregando-me um pingente, ela falou:
-Eu aperto essa pedrinha com força, ela sempre me ajuda.
-Sério?
-Sim... Foi o papai que me deu... É minha pedra da sorte.
            Seu gesto puro e inocente amoleceu meu coração. Não sei se a "pedra da sorte" surtia algum efeito, mas aquelas alturas eu estava depositando minhas esperanças em tudo que aparecia.
            Com o olhar puro a Giovana me olhava atenta, enquanto eu segurava sua pedra e pedia para que algo de bom acontecesse, e para minha surpresa, a noticia não demorou a chegar.
            Sorrindo, o Leonardo voltou à sala com um bilhete na mão. Entregando-me o papel ele falou:
-Pegue... Telefone para sua irmã e peça para que transfiram sua mãe para esse hospital.
-Tá.
-Quando chegarem lá, mande procurarem pelo doutor Garcino, ele já está ciente do caso.
-Quem é ele?
-Diretor do hospital, amigo de faculdade. Acabei de falar com ele, expliquei a situação de sua família e ele já deixou o hospital pronto para receber sua mãe.
-Nossa!
-Não se preocupe, é o melhor hospital de Juiz de Fora... Sua mãe vai estar nas mãos dos melhores médicos da região.
Emocionado, mal sabia como agradecê-lo. Tentando esconder as lágrimas, dei-lhe um abraço apertado.
-Obrigado!
-Não precisa agradecer, agora ligue logo para sua irmã.
-É verdade!
Peguei o telefone de sua mão e telefonei pra Jucinéia, pedindo para que ela e meus irmãos transferissem nossa mãe de hospital. Desliguei o telefone aliviado. Coincidência? Talvez, mas preferi acreditar na ajuda da "pedra encantada".
            Agradecido, devolvi a pedra para a Giovana, que me olhando disse:
-Muito obrigado, Giovana.
-De nada... Eu disse que era só pedir com o coração que ela te ajuda.
-É verdade!
Ainda preocupado, resolvi voltar pra casa e aguardar maiores noticias. Minha cabeça estava longe, enquanto meu coração batia apertado, assim como o meu peito que mal permitia respirar.
Levantei-me do sofá me despedindo de todos:
-Estou indo. Obrigado pelo almoço e desculpem o transtorno.
Segurando em meu braço, o Leonardo falou:
-Espere... Cláudia, eu vou levar o Claus até sua casa e volto logo. Cuide das crianças para mim.
-Sim senhor.
-Eu vou com você até sua casa. Espere aqui que eu já venho.
-Tudo bem.
Caminhei até a porta e, antes de abri-la, aguardei o Leonardo voltar. Apressado e com a chave do carro na mão, tocou na maçaneta dizendo:
-Você primeiro.
-Obrigado.
No caminho para casa permaneci calado, com os pensamentos longe. Certamente eu estava pressentindo algo, pois meu peito estava apertado há alguns dias, angustiado. Ao chegarmos, o Leonardo já foi logo dizendo enquanto fechava à porta:
-Vá separar umas roupas que vamos sair.
-Aonde?
-Vamos para Juiz de Fora ver sua mãe. Não demore, porque até amanhã preciso estar de volta.
            Corri pro quarto e em cinco minutos já estávamos no elevador, descendo para irmos ao aeroporto. Por dentro eu estava feliz e preocupado ao mesmo tempo. Depois de meses, finalmente eu iria rever minha mãe, poder lhe dar um abraço, matar a saudade. Só lamentei o fato da situação ser como aquela.
            Embarcamos às cinco da tarde no aeroporto de Congonhas. Foi o horário mais próximo que conseguimos o bilhete. O tempo inteiro fui pensando em como ela estaria, no que eu diria. De mãos dadas ao Leonardo, deitei minha cabeça em seu ombro e acabei adormecendo.
            Acordei com seus carinhos, avisando-me que o avião estava pousando em Belo Horizonte. Meu coração disparou. Desci daquele avião quase colocando o estomago pra fora, tamanha ansiedade. Segurando em minha mão, o Leonardo dava-me a força que eu precisava naquele momento.
Seguíamos para Juiz de Fora. No caminho, o Leonardo perguntou abraçado a mim:
-Claus... Você não quer passar em um hotel antes e descansar um pouco?
-Não... Preciso ver minha mãe.
-Tá bom.
            Assim que chegamos na cidade, seguimos direto para o hospital. Eu precisava ver minha mãe, não queria mais perder tempo. Durante o caminho, telefonei quatro vezes para o celular da Jucinéia, mas ninguém atendeu. Aquela infeliz deveria estar me pirraçando, pois era bem típico dela tal atitude.
            O tempo estava esquisito. Hora abria sol, intercalando com nuvens escuras e vento frio. Sentado no banco traseiro, apoiei minha cabeça ao vidro. Cruzei os braços. Parecia uma eternidade. Nunca chegávamos, e cada minuto que se passava meu coração apertava cada vez mais.
Por um momento cheguei a adormecer, apagando literalmente. Durante esse tempo, senti o toque da minha mãe em minha face, como se ela estivesse acariciando-me. Acordei assustado, pois foi tão real que achei ser a própria a fazer, e para confirmar, seu perfume ficou em meu nariz.
Minutos depois, finalmente chegamos. Desci do veículo sem que ele tivesse parado totalmente. Caminhei em passos largos até a recepção, onde questionei qual era o quarto onde minha mãe estava. Antes que a garota respondesse, um médico que cruzava à porta de emergência exclamou:
-Darvi!?
-Garcino!
Cumprimentaram-se com um aperto de mão seguido de um abraço. Em seguida, me cumprimentou também esboçando um pequeno sorriso tímido.
Olhando pra recepcionista, o doutor Garcino falou:
-Ele é um familiar da paciente do quarto 26.
-Ah sim!
Enquanto os dois conversavam, de médico pra médico, aproveitei o momento de distração e sai pelos corredores à procura do quarto vinte e seis. Que desespero! Minhas pernas estavam moles, e o coração só faltou sair pela boca.
Quando avistei o quarto vinte e um, cada número que eu avançava era uma lágrima que escorria. Corredor comprido, todo iluminado, chão brilhando. Por ali não havia ninguém circulando, apenas uma maca parada no corredor.
Finalmente o encontrei. Que medo! A porta estava entreaberta e, pelo que pude ver de fora, a luz do interior estava acesa.
            Empurrei-a lentamente, e ao entrar naquele leito, avistei todos meus irmãos em volta da cama, chorando. Respirei fundo. Senti uma leve brisa tocar meu rosto. Ao me verem, mostraram-se surpresos, pois não avisei que iria, embora eu tivesse tentado por diversas vezes, ligando para a Jucinéia que não me atendeu.
            A cama estava vazia, e os lençóis desfeitos. Naquele momento eu queria que o chão se abrisse, levando-me para o buraco onde não houvesse existência.
-O que está acontecendo? Cadê a mamãe? - Perguntei debulhando-me em lágrimas.
Silêncio.
-Cadê a mamãe? - Falei desesperado aproximando-me deles.
            Parado à porta, acompanhado do doutor Garcino, o Leonardo falou:
-Claus... Precisamos falar com você.
Gelei. Algo de errado estava acontecendo. Todos me olharam. Aquele clima não era normal, aparelhos desligados, todos chorosos. Senti frio, mas não era algo físico. A sensação foi de ausência de tudo, cheiro, cor, tato. Era como se apenas meu corpo estivesse ali, uma estátua de vidro gelada, sem sentimento, alma, vida, apenas forma.
Olhando nos olhos do Leonardo, perguntei chorando como uma criança:
-É o que eu tô pensando?
-Claus... Sua mãe acabou de falecer.
O desespero tomou conta de mim.
-Não! Nãaaaaooooo...
Cruzei á porta daquele quarto tomado pelo desespero. Que sensação horrível! Parecia que meu peito estava sendo esmagado por uma parede de concreto, tamanha pressão.

-Clau?
-Oi, mãe!
-Foi ocê que cumeu o bolo do teu irmão?”

-Feliz dia das mãe!
-Brigado, filho!”

            Desci à escada da entrada principal como um louco, atravessando a rua correndo, sem olhar para os lados. Ao chegar à praça em frente ao hospital, ajoelhei-me à terra, desesperado, conversando comigo mesmo.
-Mãe... Por que não me esperou antes de partir?... A senhora sabe que não sou de chorar, e deve saber também o quanto está doendo meu coração... Onde quer que a senhora esteja, olhe por mim, por favor! Não me abandone nesse mundo, sozinho...
            Nesse momento senti alguém tocar meu ombro. Era o Leonardo, que solidário, abaixou-se a minha frente, e acariciando minha face, falou:
-Sei muito bem o que você está sentindo, por isso não vou dizer aquilo que todo mundo costuma dizer em momentos como esse, sei que não adianta...
-Está doendo muito, Leo...
-Me abrace.
Chorando, dei-lhe um abraço forte, caído sobre a grama querendo me entregar à sorte. Nossa, que dor! Tive vontade de enfiar a mão dentro do peito e arrancá-la dali.
Abraçado a mim, o Leonardo contou-me:
-Com onze anos de idade eu perdi meus pais em um acidente de ônibus, quando viajávamos de férias... Depois de capotar duas vezes na chuva, algumas pessoas conseguiram quebrar o vidro e sair... Mas meus pais não tiveram tempo. Assim que minha mãe me ajudou, o ônibus pegou fogo. Foi horrível!... Eu vi meus pais morrerem, sem nada que eu pudesse fazer...
Que trágico! Eu não sabia daquele episódio de sua vida, pois ele jamais havia me contado sobre seus pais.
-Lembro até hoje das últimas palavras da minha mãe, dizendo: "Não se preocupe, filho... Mamãe vai estar sempre com você, aonde quer que você esteja."
Toquei sua mão.
-Todas às vezes que eu sinto falta deles, lembro-me das últimas palavras dela, e é isso que me conforta.
            Demos um forte abraço. Fiquei sensibilizado com a história do Leonardo. Perder os pais dói, mas vê-los morrendo deveria ser traumatizante, nem me imaginava passando por tal situação.
Limpando meus olhos, ele me disse:
-Quero que você saiba que ainda não perdeu tudo na vida, pois eu estou sempre com você.
-Eu não mereço você, sabia?
-Não diga isso...
-Mas é verdade... Eu não presto, não mereço tudo que você faz por mim.
-Pare com isso. Vem comigo que vou te levar para um hotel, pra que descanse um pouco.
-Prefiro ir pra casa da minha mãe...
-E ficar sendo bombardeado de recordações que te deixarão pior do que já está?
-Humpft...
-Você não precisa sofrer ainda mais. Vamos que eu te acompanho até o hotel e depois volto para ajudar no processo burocrático...
-Tá bom.
A vida estava me testando. Todas aquelas maldades que eu havia praticado, cedo ou tarde voltariam. Sei que eu não merecia tudo aquilo que o Leonardo estava fazendo por mim, mas eu realmente mudei, e era a primeira vez que eu amava alguém de verdade, sentimento esse que jamais iria querer perder.
            Dormi e nem vi as horas passarem, efeito do calmante que o Leonardo havia me dado antes de irmos para o hotel. Acordei por volta das seis da manhã do outro dia. As ruas ainda estavam escuras, e o alto das casas quase nem se via, escondendo-se atrás da neblina.
Eu estava sozinho, deitado naquela enorme cama, em meio a um silêncio que me doíam os ouvidos. Acendi o abajur ao lado em que eu estava. Peguei o telefone e liguei para minha irmã Jucinéia, pois era a única que falava comigo dentre meus irmãos.
-Alô!
-Néia?
-Oi, Clau.
-Você tá onde?
-Ainda no hospital...
-Bem, eu...
-Clau, como vai fazer com as despesas? - Questionou interrompendo-me.
-Que despesas? - Perguntei confuso.
-Do funeral.
-Veja ao todo quanto ficou, assim a gente divide entre os irmãos.
-Sinto muito, mas ninguém tem dinheiro.
-O que vocês querem dizer com isso?
-Não sei como vai fazer agora.
Inconformado, desabafei:
-Escute aqui... Vocês são muito folgados, sabia?
-Sua situação está muito melhor que a nossa, Claus. - Elevando sua voz comigo.
-O que vocês sabem sobre minha vida? Nada! Eu não tenho dinheiro para bancar tudo sozinho. Isso não é justo, a mãe não é só minha.
            Desliguei o telefone nervoso. Abri à cortina e o sol já começava a sair. As lágrimas desceram, sem que eu pudesse controlar. Sentei-me à cama e comecei respirar fundo, com a cabeça inclinada para o chão, quando o Leonardo chegou:
-Já acordou?
Fiquei calado.
-Claus... Aconteceu alguma coisa?
-Só um pouco indignado.
-O que houve?
-Falei com a minha irmã agora... Acredita que eles querem que eu arque com todas as despesas do funeral? Como se eu fosse milionário!... Eu não tenho dinheiro nem pra pagar a conta desse hotel!
Abraçando-me, ele beijou minha testa dizendo:
-Não se preocupe, isso já foi resolvido.
-Eles são muito folgados...
-Calma... Você já está abalado demais para se preocupar com esses detalhes.
-Você estava onde?
-Estava tratando dessa questão. Você não precisa se preocupar com mais nada. Já comprei tudo que precisava.
-Como assim?
-Já providenciei urna, flores...
-Urna?
            Comecei a chorar. Só de pensar que nunca mais veria minha mãe, fiquei desesperado.
Dei-lhe um abraço dizendo:
-Você é o melhor homem do mundo!
-Pare com isso... Agora eu vou tomar banho, em seguida eu vou te acompanhar até o velório, te deixo lá e sigo para o aeroporto de volta pra São Paulo.
-Eu não vou.
-Como?
-Eu não vou ao velório... Não quero ver minha mãe dentro de um caixão, dura feito uma pedra. Prefiro ter como última recordação o sorriso que ela me deu quando a vi pela última vez.
Recebi um abraço.
-Vem tomar banho comigo, então.
-Vamos.
O Leonardo era o anjo que Deus colocou em minha vida. Se não fosse por ele, minha mãe estaria perdida em alguma geladeira de IML, esperando para ser enterrada em qualquer lençol que acolhesse seu corpo, porque meus irmãos estavam pouco se importando com seu destino.
            Após o banho, telefonei novamente para minha irmã.
-Alô?
-Jucinéia, é o Claus.
-Clau!... A gente já tá aqui no velório... Que horas você vem?
-Eu liguei justamente para isso. Eu não vou ao velório.
-Que horror! Ela é nossa mãe, que falta de consideração da sua parte.
-O quê?... Falta de consideração tem vocês que nem se quer tem a dignidade de correr atrás do procedimento da própria mãe.
-Não é bem assim...
-E ainda jogam pra cima de mim toda a responsabilidade, cobrando-me com esse descaramento todo? Vergonha na cara, isso é o que falta pra vocês.
-Você me ligou pra me ofender?
-Ofendido estou eu que nem com os irmãos posso contar.
-Então você não vem no velório?
-Não. Essa não é a última imagem que eu quero ter da mamãe. Embarco hoje mesmo de volta pra São Paulo.
-Você quem sabe.
-Quero te pedir um favor.
-Qual?
-Aliás, dois.
-Qual?
-Quando forem guardar as coisas da mamãe, quero que separe para mim aquela pulseirinha de pedra que ela não tirava por nada.
-Mas que pulseirinha?
-Aquela de Nossa Senhora que eu dei pra ela quando estava na terceira série.
-Tá bom. E qual era a outra coisa?
-Ah! Quero que vocês nunca mais me procurem.
-Você está se excluindo da família?
-Vocês já me excluíram há muito tempo.

Desliguei o telefone e enterrei definitivamente meu passado. Por fora eu parecia forte, mas por dentro, um vale de lágrimas. Confesso que me senti aliviado pelo desabafo, tirando aquela gente folgada das minhas costas. Mas o lado ruim era a solidão, porque não teria mais ninguém, restando eu por eu mesmo.





Próximo capítulo:   | De volta |
Dia 31/03


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